Sob os Olhos do Napoleão escrita por Ana Barbieri


Capítulo 14
Capítulo 14




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/520202/chapter/14

Capítulo 14

─ Ele está aqui para vê-la. – disse Carter deixando apenas uma fresta de luz entrar no quarto.

Por quanto tempo fiquei deitada naquela cama? E desde quando fechava as janelas para ficar completamente imergida no escuro? Já havia passado uma semana que estava ali? Não... ainda era apenas o quinto dia e foi apenas no terceiro dia que vi o que vi. Desde então, permaneci deitada na cama completamente alheia a qualquer movimento corrente na casa. Ouvia o som do tiro e via o corpo de Ozzie estirado no chão toda vez que tentava fechar os olhos para dormir. Então chorava. Lágrimas de frustação misturadas com a raiva faziam com que minha pele ardesse ao menor toque.

Uma atitude um tanto ridícula para alguém que sempre se gabou tanto por sua falta de sensibilidade. Porém, cá estava. Anne Holmes, a gentil, porém, aparentemente cética esposa do pomposo detetive de Londres, chorando a morte de um garoto com quem se lembrava de ter trocado apenas alguns pares de palavras ao longo dos anos porque, de repente, sentia uma grande empatia por todas as crianças estranhas que lhe cediam um olhar inocente. Até que ponto toda aquela expectativa em ser mãe era benéfica?

Outra batida na porta... ah, sim. Minha presença é solicitada por sua majestade. Olhei-me no espelho antes de sair; não há mais sentido em manter as mexas que ainda insistiam em se manter no antigo coque ali. Liberei-me do peso dos grampos e afastei alguns fios para trás das orelhas. Deveria estar assustadora, mas para o inferno com o protocolo! Não tenho nenhum desejo em ver Moriarty e se ele insistia naquela caçada ridícula, que se acostumasse a me ver aos farrapos. Na verdade, a transformação da elegante senhora Holmes para uma reles cativa deve diverti-lo bastante.

Desci as escadas sendo escoltada ao encontro da morte... Moriarty só conseguia levar morte onde quer que fosse. E mesmo ela era, por vezes, mais indulgente. Ele, no entanto, não teve sequer o benefício da minha cortesia. Permaneci com os olhos baixos no chão até me sentar à mesa, dessa vez posta para o almoço. Servi-me, indiferente ao fato dele me acompanhar ou não. Manteria a boca cheia de comida... mesmo naquelas circunstâncias seria mais fácil engolir carne do que veneno.

─ Seu rosto não contém mais nenhum resquício do tapa, senhora Holmes. – observou Moriarty. Ignorei, mastigando lentamente uma vagem. – Vejo que ainda está magoada comigo. Estive com o senhor Holmes esta manhã.

Holmes... o mero soar daquele nome em meus ouvidos já foram capazes de fazer com que meus olhos traíssem a minha decisão de ignorar o professor. No fundo, estava ressentida com a demora de meu marido, mas não o suficiente para não me importar. Havia um respingo de sangue numa das narinas de Moriarty... e, na verdade, seu nariz está um pouco avermelhado... um de seus olhos estava um tanto inchado... A imagem fez voar a minha imaginação, fazendo com que eu tornasse a abaixar os olhos a fim de esconder a sombra de um sorriso... o primeiro sincero em dias... Holmes o havia atingido em cheio.

─ Eu não esperaria outra atitude dele, se teve o sangue frio de contar-lhe o que se passou aqui há dois dias. – disse depois de beber um gole d’água. – Doeu muito?

─ Depois de tudo, ainda tem coragem de rir de mim? – advertiu o professor, mirando Carter com o canto dos olhos. Limitei-me a dar de ombros, voltando a cortar a carne em pequenos pedaços antes de comer.

─ Só estou lisonjeada. – admiti. – Em todos esses anos, Holmes só bateu em um homem por minha causa e isso foi pouco antes de nos casarmos.

─ Já era uma leitora assídua de Edgar Allan Poe na época? – perguntou ele usando um tom mais aveludado, o que só fez com que a pergunta soasse ainda mais estranha. Puxei o copo com a água e bebi para ganhar tempo para pensar. Qual o súbito interesse dele em meus gostos literários?

─ O senhor me surpreende, professor Moriarty. – disse baixando o copo lentamente na mesa. – Todo esse tempo achei que tivesse feito toda a sua pesquisa a meu respeito. – acrescentei erguendo uma das sobrancelhas.

─ Já quis viver num dos contos dele, senhora Holmes? – continuou o professor, cruzando as pernas.

─ Tenho muito gosto em ler os contos sobre o senhor Dupin, professor. Mas, não gostaria de ser... estrangulada por um orangotango, por exemplo. – respondi engolindo em seco.

─ Ah, mas o seu favorito nunca foi Assassinatos na Rua Morgue, não é, senhora Holmes? – indagou ele com um sorriso frio. Limitei-me a erguer um pouco os lábios, sentindo as mãos tremerem.

─ De repente, estou me sentindo um pouco indisposta. – disse erguendo-me subitamente da cadeira. – Com licença.

Sem qualquer objeção ele me deixou sair, o que foi suficiente para me deixar desconfiada. Subi as escadas refletindo o significado daquele interrogatório estranho... Quando entrei no quarto, apressei-me em abrir as cortinas... na luz, consegui ver... em cima da minha cama... paralisada, não fui capaz de mais nada a não ser gritar...

†††

─ Um cão? – riu Lestrade, e o fato de todos os seus homens estarem nos fitando conversar tornava tudo aquilo ainda mais irritante. – Senhor Holmes, está me dizendo que um animal irracional possui mais chances de encontrar a senhora Holmes do que a força policial da Scotland Yard?

─ Considerando o fato de que se passaram cinco dias e que até hoje não há sequer o menor indício de onde pode ser o local do cativeiro... Bem, acho que já deixei demais esse caso nas mãos dos senhores. – respondi cordialmente. É claro que até então estive ocupado em outros pormenores...

─ E o que lhe dá tanta garantia de que o cão terá sucesso apenas seguindo o cheiro dela desse livro? – indagou um dos oficiais mais novos. Não me lembro de tê-lo visto alguma vez...

─ Tive o prazer de verificar a precisão do nariz de Toby mais de uma vez, senhor...

─ Thompson. – respondeu Lestrade. – Estava num dos grupos que mandei a procura do lugar onde a senhora Holmes está sendo mantida. – explicou.

─ Ah sim. – assenti, fitando o rapaz demoradamente. – Uma pena que não conseguiram descobrir nada sobre o paradeiro dela. – acrescentei.

─ O tal professor sabe encobrir suas pistas muito bem. – disse com uma calma exagerada. Tentei encontrar sinais de uma possível mentira ou de nervosismo nele, mas, o homem parecia limpo... não deveria ser ele. – E com quem vai pegar esse cão, senhor Holmes? Suponho que ele fica guardado a sete chaves... – ou... quem sabe não é tão inteligente quanto pensa.

─ Um velho conhecido meu, senhor Sherman, costuma me emprestá-lo quando preciso. O tirei de uma enrascada uma vez. – respondi. – Ele mantém um pequeno, digamos, zoológico em Lambeth, mas Toby fica com ele em sua casa. Número 7, Pinchin Lane.

─ Exato e estamos indo até lá pegá-lo nesse instante. – cortou Watson, mirando Lestrade.

─ Boa tarde, cavalheiros. – despedi-me, saindo na frente de meu amigo. – Watson, vá para casa e descanse. Eu também vou tentar dormir um pouco... Sairemos às seis. Prevejo uma grande noite para nós, meu caro. – expliquei quando já estávamos quase chegando em casa.

─ Certo, certo, mas é claro! – concordou meu amigo, prontamente. Caro Watson, sempre posso contar com sua lealdade.

De fato, suspeito que ele não esperava que eu fosse conseguir dormir. Nem mesmo eu espero, mas algo me diz que teríamos que agir naquela noite ou estaríamos perdidos. O tempo é deveras precioso e deve ser aproveitado da melhor forma possível... mas se quisesse enfrentar Moriarty deveria tentar descansar um pouco a cabeça, por mais que me custe admitir. Era muito raro, dormir durante a resolução de um caso. Ainda mais um de extrema importância. Entretanto, o empecilho naquela situação era vislumbrar a cama e tentar manter os meus pensamentos longe da ocupante do lado direito dela.

Evitei a direção daquela cômoda com os pertences de Anne e me joguei diretamente sobre o travesseiro, sem me preocupar com o que a senhora Hudson diria se me pegasse de sapatos sobre os seus preciosos lençóis brancos. Fechei os olhos e tentei esvaziar a mente. Seria muito fácil alcançar a primeira gaveta da minha mesa e pegar o meu estojo contendo a solução de sete por cento de cocaína. Mas então me lembrava das tantas discussões que tivera com Anne a respeito dele. Virei-me para o lado direito e puxei o travesseiro dela para a direção do meu nariz...

Ela estava ali, sentada na beirada da cama, sorrindo para mim. Aparentemente estava bem, mas seus olhos refletiam o nada... um transe fantasmagórico horrendo e não o brilho decorrente do excesso de ironias ao longo do dia.

O tempo está acabando, mon detetive pompeux. – disse ela, e a calma com que proferiu tais palavras fez com que a minha boca secasse. Sem ação, simplesmente observei enquanto ela enfiava a mão dentro do meu paletó e retirava a sua aliança do bolso interno.

Em seguida, abriu um pouco mais o sorriso e saiu andando em direção à sala. Ainda sem ar, segui-a com desespero. Estava jogando o anel no fogo...

O que está fazendo? – indaguei tentando alcança-lo com a mão, mas fui impedido pelas chamas que de alguma forma aumentaram sozinhas. Anne me fitava com um sorriso delicado e uma aura de paz doentia...

É melhor assim. – disse ela. – Nós tentamos, Sherlock... e falhamos.

Do que diabos você está falando, mulher?! – inquiri irritado.

Eu o forcei a esse casamento e o transformei num maridinho inglês qualquer. – explicou ela, calmamente... Por St. George, seu sorriso nunca me irritou tanto. – É melhor voltar ao que era antes, não percebe? Estou libertando você. Assim, pode voltar a ser o homem extraordinário que era antes e nem um pouco parecido com um homem comum. – acrescentou fazendo uma mesura muito polida com a cabeça.

Você não é a minha Anne... Isso é um sonho, só pode ser! Você nunca diria isso em seu juízo perfeito! – exclamei me jogando no sofá.

Não há motivo para bancar o cético agora, querido. – disse ela, ajoelhando-se aos meus pés, unindo suas mãos as minhas. Talvez fosse mesmo um sonho... mas havia calor na mão dela, embora não pudesse dizer o mesmo dos seus olhos... Ergui o rosto para fitar as portas da contradição... não havia nada ali. – Você nunca quis se casar, Holmes. Nunca quis esse filho...

Pare de me torturar dizendo asneiras, Bergerac...

Dizer que é mentira em voz alta não vai fazer com que se torne verdade quando estiver em silêncio, Sherlock. – advertiu ela, apertando mais as minhas mãos. – Nunca esteve em seus planos se tornar um homem comum. Sempre esteve em seus planos ser o famoso Sherlock Holmes! O cérebro cujo corpo é mero apêndice, capaz de desvendar qualquer caso sem precisar sequer sair de Baker Street. Mas o que vai ser quando tudo isso acabar? O casal Holmes de Nothing Hill? Não... eu não vou fazer isso com você.

Bergerac...

Estou lhe dando a sua liberdade! A chance de voltar a ser o homem que você sempre foi! Mycroft e Moriarty disseram que...”

─ PRO INFERNO COM O QUE MYCROFT E MORIARTY DISSERAM! – berrei, fazendo menção de abraça-la, mas, não estava mais ali. Arfava, sentindo o suor escorrendo pelo meu rosto. Estava mais uma vez desperto... fora tudo um sonho...

─ Senhor Holmes, está tudo bem aí? – ouvi a senhora Hudson chamando do lado de fora.

─ Sim, não entre! – respondi mais grosseiro do que gostaria.

Estava com o coração acelerado, sentindo uma necessidade louca de tê-la em meus braços e gritar para aquela cabecinha oca inconsequente quantas vezes fosse necessário que eu a amava... mas tudo o que tinha agora era um reles travesseiro com o cheiro dela em mãos. Ondas de frustração e raiva oscilavam dentro de mim, enquanto afrouxava o nó da gravata, apressando minhas mãos para dentro do bolso... ainda estava ali... “mon cher souvenir”... “Você nunca quis se casar”... De forma alguma aquela era a minha Anne...

O que deixava a dúvida... então, o que foi tudo aquilo? Uma materialização da sua consciência lhe jogando perguntas que havia negado a se fazer desde o sequestro? Mas isso era sandice! É claro que eu sabia que as circunstâncias seriam afetadas pelo nascimento do bebê, tudo sempre esteve muito claro. Entretanto, também é sabido que as palavras “homem comum” haviam ganhado um lugar especial na minha mente desde que foram proferidas por meu irmão e meu inimigo. Eu as deixara sortir um efeito maior do que gostaria em meu subconsciente... mas isso não significava que quisesse voltar ao que era antes.

O que eu queria mesmo era ela! “Mon cher souvenir”, a minha difícil, porém doce senhora Holmes. E naquele momento não era apenas querer, mas sim precisar. Toda Londres passara a me ver como um homem comum depois do casamento... todos eles... exceto Anne. Para a petulante Bergerac eu sempre seria o excêntrico Sherlock Holmes de Baker Street. Para o inferno com os outros. A opinião dela era a única que importava.

De repente, senti algo pingar sobre a minha calça... uma lágrima... a senhora Hudson insistiu novamente, dessa vez com maior cautela, perguntando se tudo estava bem. Ora, Sherlock Holmes estivera chorando... isso poderia ser visto como algo bom? A máquina fria e calculista chegando ao auge das emoções? Tratei de caminhar até a sala para tranquiliza-la.

─ Desculpe-me pelo susto, senhora Hudson. – disse depois de secar o rosto, deixando-a entrar.

─ Ah, achou? Estive mexendo na coleção dela e esse estava sumido. – comentou a senhoria, com o livro de Poe nas mãos. – É a edição com o Gato Preto.

─ Sim, o favorito de...

Parei, tomando o exemplar das mãos da senhora Hudson, folheando as páginas do referido conto... mas...

─ Senhor Holmes?

─ Mande uma mensagem para o Watson. Diga a ele para me encontrar na Biblioteca Britânica. – respondi com pressa, correndo para ajeitar minha gravata antes de sair. “Possa Deus escudar-me do Pai dos Demônios...”


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Então? O que acharam? Estamos chegando na reta final... as últimas horas antes do grande finale de Moriarty.

Holmes tendo sonhos estranhos e chorando depois? Sim, nós podemos fazer isso no universo das fanfics! Espero que tenham curtido! Reviews sempre serão bem vindas! Bjoooos e até a próxima!