O Regresso do Desespero escrita por Duchess Of Hearts


Capítulo 30
Praying for Nothing


Notas iniciais do capítulo

OIIEEE! NOSSA QUE SURPRESA, EU AINDA VIVO!!
Então, esse capítulo já tinha tipo, 3/4 dele escritos faz TEEMPO. E eu não ia postar ele assim, ia continuar e continuar ATÉ ACABAR A HISTÓRIA DE VEZ mas decidi que talvez vocês iam gostar mais se eu dividisse. Além disso, o capítulo ainda ia ficar com uns 12k de palavras então é melhor assim.

Eu estive gastando tempo de estudo de hoje para fazer isso, coisa que não vou repetir, por tanto esperem até fins de junho para a próxima parte, upupu. Enfim, DESESPEREM!



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“Can you even read the blackboard written clear as can be?

Can you even read his mind? See that kid's lost fantasy?

Can you even find the one who dyed his red heart to black?

Hey, who could it be?”

 

Como… O quê? – O olhar atónito de Connor saltava de um lado para o outro, buscando compreensão. Não estava resultando, aparentemente, porque ele a certa hora simplesmente soltou uma risada. – Tá, muito divertido. Eu desisto, você me pegou, agora pode parar com as gracinhas?

— Você realmente chegou ao ponto de criar essa piadinha para nos massacrar ainda mais? – Inquiriu Kyoishi, cuja expressão estava num misto indecifrável de emoções. – Isso… Não é engraçado.

Os nossos “colegas” nos ecrãs nada disseram, limitando-se a nos encarar com uma expressão preocupada. Para meu choque, Kurama estava exatamente com a mesma expressão com que chegara…

— Ahhh? – Naoto, por outro lado, fingiu confusão, as sobrancelhas quase se unindo em incredulidade – Vocês pensam que eu estou BRINCANDO? Que crueldade! Eles são realmente vossos colegas!

— Provavelmente vocês precisam de uma explicação. – Assumiu Evan, coçando a cabeça numa expressão desconcertada – Err, é um pouco difícil de explicar mas…

— A GENTE TÁ VIVO! – Cortou Reiko com entusiasmo. Após receber um olhar reprovador do evangelista, ele se retraiu – B-Bem… Melhor… Eu me calar, né…?

— O melhor mesmo seria você se matar, mas suponho que você já tenha tentado isso antes e não resultou, não é mesmo? – Naoto deu uma risadinha cruel – Mas sim, eles estão vivos… Bom, se você considerar o estado em que eles estão como “vida”.

— Tecnicamente, nós estamos imortais. – Explicou Chiyeko, torcendo o nariz com a mão sobre a anca. Subitamente, o seu olhar ficou enevoado e a expressão vazia – Um destino infeliz para nós, que usámos nossos impuros e nojentos poderes de bruxas.

— Ahhh? Shizue-chaan? – Chamou Kobayashi, numa expressão confusa – O que deu com você?

— Permitam-me explicar a situação. Talvez queiram tomar um chá enquanto conversamos sobre o assunto? – Sugeriu Eufrat, numa expressão calma. Ao ver que ninguém parecia afim de aceitar a proposta, soltou um suspiro desiludido e continuou falando. – De momento, nós não passamos de meros programas de computador.

— É um pouco difícil de explicar, mas… – Começou Eikichi, numa expressão séria – Digamos que foi dada uma segunda chance a todos nós.

— Como vocês já foram informados, Junko Enoshima nos usou como experimentos, não é verdade? – Continuou Evan num tom calmo, como se contasse uma história a uma criança – Bom, todos esses experimentos acabaram eventualmente por afetar nosso consciente.

— Junko-nee-chan estava tentando descobrir a melhor forma de quebrar uma pessoa. – Admitiu Naoto, abraçando a pelúcia de Monokuma infantilmente – E isso poderia acabar dando errado. Numa fase inicial, se algum de vocês morresse, ela poderia vir a ter problemas. Por isso, com a ajuda de um dos SHSL Despair que tinha talentos em todas as áreas possíveis, ela implantou um “chip” informático no vosso cérebro.

— Um… Um quê!? – Soltou Connor, assustado – A gente tem… A gente tem uma coisa no nosso cérebro!? Como que nós nunca notámos NADA?

— Lembra o que eu disse sobre “a mente humana vê o que ela quer ver”? – Retorquiu Kurama, numa expressão um tanto entediada – É exatamente isso. Se você tentar procurar uma cicatriz na sua cabeça, provavelmente vai encontrá-la. Só que você nunca descobriria isso sozinho, porque sua mente acreditava que não tem nada ali.

Levei inconscientemente a mão à minha nuca e palpei aquela zona. Após algum tempo, realmente encontrei uma zona que parecia ter uma textura diferente… E nem mesmo ter cabelos. Engoli em seco e tirei a mão, assustado.

— E-Então… Para que é que esse chip servia? – Perguntei, tentando alterar o assunto. Kurama foi mais uma vez quem respondeu.

— Quando falecemos, o nosso corpo não morre todo de uma vez. – Explicou, encarando o pódio à sua frente – Em vez disso, nossas células vão lentamente ficando sem energia e morrendo uma a uma. Contudo, reanimar uma pessoa que já entrou nesse processo de morte celular pode ser perigoso.

— Os Super High School Level Despair, obviamente, sabiam disso. Eles também sabiam perfeitamente que o que mais facilmente é afetado pela morte é… Bem, a nossa mente. Então, com esses chips instalados, nossas memórias eram guardadas em um computador e podiam ser “reinstaladas” no nosso corpo caso necessário. – Completou Teemu, mordendo o lábio inferior.

— É possível que os experimentos feitos em Death tenham sido precisamente para testar esta hipótese… Digo eu. – Comentou Natasha, soltando um risinho nervoso ao perceber que o garoto não gostara da menção.

— Tique taque. Tique taque. – Soltou Ai, nervosa – O tempo escasseia, contudo… E a um certo ponto, n-nossos corpos n-não podem mais ser reanimados. Tique taque.

— Foi isso que aconteceu com a gente. – Explicou Kayo com um sorrisinho bobo. Suzuki foi quem continuou o seu discurso – Nós não fomos reanimados a tempo, e por isso nossas memórias… Nossa “consciência” ficou guardada em formato digital.

— Então, basicamente… – Concluiu Kyoishi, ainda com uma expressão surpresa – Vocês são inteligências artificiais?

— Não apenas inteligências artificiais. – Cortou Naoto, numa expressão séria. Mais uma vez, abandonara o seu tom de criança para outro muito mais sério e sombrio. – Seus ideais, seus desejos, gostos, desgostos, paixonetas, memórias… Tudo isso foi transferido para o computador. Se tem algo que você pode chamar de “alma” … Seria isso.

— Durante todo esse tempo… Nós fomos colocados num lugar dentro de um computador, enganados ao ponto de acreditar que estávamos no além. – Mencionou Eikichi, semicerrando o punho – Naoto foi tão longe quanto ao ponto de criar uma Kurama falsa… E implantar memórias falsas de nós conhecendo nossos familiares na vida após a morte para que acreditássemos nisso até ao último momento.

— Contudo, eventualmente nossas memórias voltaram. – Acrescentou Shizue – Vocês sabem, o chip transfere absolutamente tudo. Incluindo memórias que estavam presas no nosso subconsciente.

— Alguns de nós se aperceberam que algo estava errado… Só que não chegámos a entender exatamente o que estava acontecendo até muito mais recentemente, após a morte de Reiko. – Afirmou Eufrat, as sobrancelhas se aproximando com a expressão de raiva – Mas é claro… Até mesmo isso pode ter sido o plano de Naoto desde o início…

— Exatamente! – Naoto piscou o olho, alegre – O bom de vocês estarem dentro de um computador é que eu posso vos controlar muito mais facilmente. Mas não se preocupem! Eu não mexi mais em vocês, nem tinha intenções disso.

Deu uma risadinha doentia.

— Só queria ver o vosso desespero ao perceber que nem depois da morte vocês merecem descanso! – Riu maniacamente, o sorriso rasgado não se estendendo aos olhos, que estavam abertos de uma forma bizarra – Além disso, quem sabe o que vocês poderiam tentar fazer caso percebessem que eram programas de computador? Talvez tentassem hackear o sistema da escola? Óbvio que eu não ia permitir isso!

— Re… Repugnante. – Soltou Reiko, encarando a criança com uma expressão enojada.

— E pensar que uma criança faria tudo isso. – Comentou Natasha, fazendo beicinho – Ohh, Clyde, isso é desespero! ~

— O mais profundo desespero, Bonnie. – Respondeu Evan, meneando afirmativamente com a cabeça – Porém nós conseguiremos ultrapassá-lo. E uma coisa podemos garantir:

Os dois se aproximaram o máximo possível do canto das suas telas, como que se tentando tocar através delas.

Nem os deuses, nem as estrelas nos salvarão. – Disseram os dois ao mesmo tempo, dando um risinho divertido.

— Isso é tão bizarro que eu não sei nem por onde começar! – Afirmou Connor, agarrando os seus cabelos como se os tentasse arrancar – Eles parecem as mesmas pessoas, mas aí do nada eles agem completamente fora de personagem! Não tem lógica nenhuma!

— Isso é porque eles, de facto, estão loucos. – Relembrou Teemu, soltando um suspiro enquanto segurava o seu pingente budista. – Essas pessoas… Bem, digamos que não foram santos.

— Exatamente! – Riu Naoto, numa expressão feliz – Todos eles, sem exceção… torturaram, mataram e destruíram, não por desespero, mas porque lhes era conveniente. Afinal, era isso que o tão amado “nada” que defendiam dizia: não lutar por nada, apenas pela própria sobrevivência.

— Mais do que uma vez tivemos de assassinar pessoas inocentes simplesmente porque estavam no nosso caminho. – Explicou-se Chiyeko com naturalidade. Deu uma risadinha baixa para ela mesma – É isso que as bruxas fazem, afinal. E não é como se houvesse tal coisa como “pessoas inocentes”, não é mesmo?

— Hahah! Alguns de nós, inclusive, ganhámos vícios interessantes! – Riu Reiko, corando como se estivesse admitindo que assistia filmes indecentes – Tipo eu, que em honra do meu talento, ganhei o hobbie de pescar objetos valiosos em piscinas de corpos!

Por muito mais coisas chocantes que estivessem acontecendo uma a seguir à outra, cada vez mais a minha expressão de choque aumentava. Reiko? Chiyeko? Eles os dois admitiram fazer coisas tão hediondas com tamanha naturalidade? Encarei o resto das pessoas nas telas, procurando algo que indicasse que não podiam estar falando sério. Evan, Natasha, Eikichi… Todos eles riam de uma forma perturbada ao lembrar dos seus atos. Com certeza, pelo menos um deles… Mas até mesmo a inocente e fofa Ai parecia corar num misto de orgulho e vergonha. Ao notar o meu olhar confuso, ela acenou afirmativamente.

— E-Eu também… matei algumas pessoas… Desculpe, Isao… – Apesar do pedido, parecia pouco arrependida, ainda mantendo o sorriso bobo no rosto. Não consegui mais olhar para a cara dela, aterrorizado com as palavras que acabaram de ser proferidas. Por muito que eu tentasse, eu não queria acreditar… Mas a verdade estava ali, bem na minha frente, me jogando na cara a crueldade do nosso mundo.

— De facto, nós fomos quebrados… absurdamente quebrados. – Concordou Eufrat, que era a única que mantinha a compostura em todos eles. – Chegámos ao ponto em que só restava um vestígio dos valores humanos que tínhamos antes.

— Nós não apoiávamos desespero nem esperança… Por isso, não havia necessidade de ter tal coisa como “valores”. – Concordou Evan, desanimado – Eu acredito que não seja fácil de acreditar. Eu mesmo, quando me apercebi no que me tinha tornado, fiquei extremamente desiludido.

— E-Então… Então porque é que você não tentou mudar!? – Soltou Connor, exasperado. Em resposta, o loiro deu um risinho baixinho, semelhante ao de Ai.

— Bom… Eu fiquei desiludido, mas não TÃO desiludido, percebe? – Disse ele, corando com vergonha – O tipo de desilusão de um pai quando percebe que o filho não gosta da camisa que comprou para ele… Esse tipo de coisa.

— Apesar de tudo, mantemos as nossas memórias de um passado em que éramos mais sãos, por isso não conseguimos ser 100% indiferentes à nossa condição. – Explicou-se Ichiro, encarando o vazio numa expressão pensativa – Mas a verdade é que… Apesar de sabermos que não é a melhor coisa, não é realmente algo que nos interesse. De verdade, nós eramos… Zero.

Os seguidores do “nada”, os Zero. Era isso mesmo que tinha acontecido com os nossos colegas? Por causa da morte… Eles viraram aquelas pessoas horríveis? Olhando em volta, vi apenas expressões aterrorizadas daqueles que estavam vivos. Até mesmo Kobayashi, nunca afetada por nada, encarava a situação numa expressão atónita.

— Mas não foram só eles. – Relembrou Kurama, numa expressão séria – Vocês também fizeram as mesmas coisas. A única diferença… É que não se lembram.

— Por culpa de Naoto. – Acusou Evan prontamente, numa expressão séria. – E pensar que você usaria exatamente os mesmos motivos que usaram para nos enlouquecer… Você de facto É doente.

— Os mesmos… Motivos? – Soltei. Alguma coisa ali não batia certo. De toda a conversa, em que eu e os restantes sobreviventes nos limitámos a observar a cena em choque, alguma coisa finalmente pareceu me chamar a atenção para interromper novamente.

Naoto soltou um sorriso, claramente agradado pela minha questão.

— Ohh, sim. Os motivos que eu usei para vos fazer se matar uns aos outros… Foram também já usados antes para vos enlouquecer, como parte dos “experimentos” do desespero. – Naoto deu uma risadinha baixinha – Bom, não foram usados completamente da mesma forma, mas… Foram os mesmos.

— C-Com’assim… Os mesmos? – Inquiriu Akatsuki, receosa da resposta.

— Para Natasha e Evan, eles foram inúmeras vezes torturados e enganados a respeito da sua família. – Explicou-se Naoto com naturalidade, como se falasse de algo banal. – Se não me engano, a vida de Ichiro foi destruída por causa do seu segredo que ele foi obrigado a revelar. Shizue foi torturada com a ideia de que os seus valores não valiam de nada… Essas coisas. Como eu disse, foi de um jeito diferente, mas os motivos…

— Eram todos direcionados especificamente a certas pessoas em particular, nunca no geral. – Afirmou Teemu, numa expressão séria. – Eu mesmo me apercebi disso quando recuperei as memórias. Em suma, todos os motivos que nos foram dados… A ideia sempre foi desde o início que os assassinos e assassinados fossem quem foram.

— Bom, nem tudo correu exatamente como eu esperava. – Acrescentou a criança, torcendo o nariz um pouco desiludida – Nos meus planos, mais um de vocês morreria… E devo dizer, Shizue-chan quase me estragou os planos todos com aquela tentativa de assassinato mega-perigosa! Se ela tivesse acidentalmente matado outra pessoa em vez de Kurama… Heheh, eu poderia ter problemas!

O garotinho bateu palmas e deu uns saltinhos, alegre.

— Mas Shizue-chan não o fez! Fiquei tããoo feliz!

— Você queria que nós especificamente sobrevivêssemos? – Perguntou Kyoishi, erguendo a sobrancelha em confusão – Mas porquê…?

— Quanto à razão para as ações de Naoto Hiroi, não consigo sequer cogitar. – Afirmou Kurama, respondendo à questão. – Mas ele queria com certeza… Que um certo grupo especial de pessoas sobrevivesse.

— Vocês já devem ter percebido que nós nem sempre nos chamamos pelos mesmos nomes, não é? – Eikichi fez uma careta de desgosto, incomodado por ter de explicar aquelas coisas – Isso é porque… Quando finalmente conseguimos escapar do desespero de Junko Enoshima, nós abandonámos as nossas antigas identidades.

— Todos pegámos novos nomes. – Explicou-se Eufrat – Esses nomes seriam conhecidos exclusivamente entre nós, pelo que pessoas de fora não reconheceriam de quem estávamos falando caso nos espiassem.

— Por exemplo… Eu decidi escolher o nome “Puppet”, porque representa um pouco os experimentos que fizeram comigo. – Explicou-se Reiko, soltando um suspiro pesado e deixando o sorriso se desvanecer do rosto. – Um mero fantoche… era algo que eu não conseguia ultrapassar, então aceitei-o como parte de mim.

— Eu e Evan, contudo, decidimos ser mais práticos. – Afirmou Natasha entusiasticamente. Parecia particularmente radiante por poder explicar aquele detalhe, inchando o peito de orgulho. – Escolhemos os nomes “Bonnie” e “Clyde”.

— Nós achámos que isso encaixava com a gente. Um casal de assassinos, completamente desconectados do mundo... Bom, não havia melhor forma de nos descrever. – Apesar de manter a atitude calma e típica de Evan, as suas palavras chegavam a ser assustadoras.

— Tudo isso foi possível apenas por um motivo. – Afirmou Ichiro, com uma expressão séria. Subitamente, todos os outros abandonaram as suas atitudes bobas. – Esse motivo é…

A Esperança de King.

— A esperança… De King? – Repetiu Kobayashi. A sua expressão estava indecifrável. Após alguns momentos, ela deu uma risada tão alta e escandalosa que me assustou. Ficou rindo por muito tempo, eventualmente tendo inclusive de limpar lágrimas que lhe vinham aos olhos. – Vocês esperam mesmo que Takane acredite numa coisa assim tão ridícula!?

— Você não tem o direito de troçar do nosso King. – Afirmou Ai num tom cortante, subitamente perdendo a sua postura nervosa e tímida. Não parecia sequer a mesma pessoa.

— Ahh? Ara, ara! Realmente, dá para entender que Hiroko-chan está completamente diferente! – Riu Kobayashi, divertida. – Essas novas versões de todo o mundo são tãão kawaiis!

— King era, por assim dizer, o nosso líder. – Explicou-se Eikichi, com uma expressão taciturna – Foi única e exclusivamente graças a ele que nós conseguimos sobreviver ao desespero. Sem ele… Todos nós seríamos SHSL Despair.   

— Ele que ditava as nossas ações. – Acrescentou Teemu, coçando a nuca nervosamente – Mesmo depois de escaparmos de Junko Enoshima e os seus… ajudantes, ele continuou nos orientando para evitar que nós fossemos pegos pelos SHSL Despair ou até mesmo a Future Foundation.

— “Evitem chamar a atenção” “Matem todos aqueles que estiverem na vosso caminho”… Era esse o tipo de dicas que King nos dava. – Concluiu Eufrat, tomando um gole do seu chá calmamente – Agora que penso nisso, ele nunca realmente nos ordenou nada. Só nos dava dicas, que nós estávamos livres para seguir ou não. Definitivamente um ótimo rei para nós.

Fez-se um silêncio na sala até que Kyoishi subitamente decidiu interromper.

— Mas então… O que é que isso tem a ver com nós especificamente sobreviver ao período escolar de matança mútua? – Inquiriu, numa expressão confusa. Kurama logo se apressou a responder.

— King não estava sozinho, também. Ele tinha constantemente a ajuda de quatro guardiães… Se auto-titulando os quatro cavaleiros do apocalipse.

Quatro cavaleiros do apocalipse? Quando ela mencionou esse nome, logo as conexões começaram a surgir na minha cabeça.

«Ou, como vocês me chamaram outrora, “Pestilence”, o primeiro cavaleiro do apocalipse.”

— Você… É um deles, Kurama? – Soltei, pelo que a garota ao meu lado limitou-se a acenar afirmativamente.

— Precisamente. De facto, a minha inteligência fenomenal foi destruída pelos experimentos que fizeram em mim… Mas eu ainda consegui manter alguns dos meus intermináveis conhecimentos, particularmente com venenos e, bem, doenças. – Explicou a moça, o rosto inexpressivo não se movendo minimamente enquanto falava – É claro, Teemu Fear Wichard também era um dos tais “quatro protetores”.

— Era isso que estava no meu perfil, afinal. – Concordou Teemu, parecendo cada vez mais incomodado com algum assunto em particular – Por isso que Monoku… Naoto o escondeu. Eu era Death, o quarto cavaleiro.

— Death era muito, MUITO inteligente! – Comentou Reiko, com um entusiasmo excessivo – Bom, a posição dele seria tomada por Pestilence, se ela não tivesse, er… Perdido algumas capacidades cognitivas quando fizeram os exp…

— De qualquer jeito, Death era o estratega do grupo. – Cortou Kurama, o rosto se contorcendo ligeiramente numa expressão irritada. – Além dele, tínhamos mais dois cavaleiros. O segundo cavaleiro era War, posição ocupada por Riya Akatsuki.

— E-Eu? – Soltou a estratega, surpreendida – Qu’é que cê tá praí falando?

— Hihih… Riya-chan era perfeita para o cargo! – Afirmou Kayo, corando timidamente – Ela tinha conhecimento em todo o tipo de armas… Metralhadoras, pistolas, espingardas, lança-mísseis, bombas… Ela conseguia proteger o nosso King com facilidade!

— E finalmente, tínhamos Famine, o garoto mais assustador dos quatro guardiões. – A génio mexia nos cabelos distraidamente, como se tentasse fazer pouco caso do que dizia. Porém, havia uma certa tensão na sua expressão. – Connor Fukusaku.

— Pika? – Respondeu o cosplayer, simplesmente.

— F-Famine era… Um pouco estranho, não é verdade? – Riu Reiko, tentando abafar o caso. – De qualquer forma, isso…

— Ohh, mas vocês sabem qual era a missão do Connor, não sabem? – Inquiriu Naoto, soltando ligeiros “upupu” enquanto nos observava atentamente. Kyoishi foi quem respondeu.

— Tendo em conta o que vimos… Ele provavelmente torturava as pessoas, não é verdade?

— Correto. – O tom infantil da criança desaparecia à medida que ia falando. – Connor Fukusaku… Tal como leram no perfil dele e viram no vídeo, ele era.. viciado em tortura.

Piscou o olho e deitou a língua de fora como se estivesse tentando fazer uma pose fofa para uma foto.

— Mas esse vício não surgiu de qualquer forma! Os testes a que ele foi submetido é que o criaram. – Posou os cotovelos em cima do pódio, sorridente – Connor-kun foi obrigado a torturar Reiko-kun… E em troca, ele recebia mais uma refeição diária. Além disso, era injetado com serotonina e dopamina durante o ato, fazendo com que ele sentisse muuuito prazer no que fazia! ~

Fez um beicinho triste.

— Pobre Connor-kun… Não é assim que treinam os cães, também? “Fareje a bomba e receba um biscoito”! ~ Upupu, Connor-kun não é mais que um cachorrinho fofiiinho, que foi treinado para fazer coisas horrendas! E por causa das injeções de serotonina e dopamina, ele acabou se viciando, sempre sentindo a necessidade de torturar mais, mais e mais para conseguir aqueles níveis altos de neurotransmissores que ele outrora teve! Upupu, de facto um fim triste para alguém como você que ama tanto os seus amigos: torturando-os até à loucura!

Connor, no seu pódio, não reagia. Em vez disso, continuava com o gorro sobre a sua cabeça, inquirindo uns meros “Pika?” de vez em quando, como se nem percebesse que falavam dele. Contudo, após observá-lo melhor, notei uma singela lágrima caindo do canto do seu olho. Certamente, ele compreendia as palavras de Naoto, só que tentava ignorá-las. A criança também percebera isso, pelo que continuava comentando sobre as atrocidades que o mesmo cometera.

— Connor-kun eletrocutou Reiko-kun que ele chegou a ficar inconsciente! Connor-kun afogou inúmeras vezes o próprio pai, salvando-o bem no último segundo antes dele perder a vida apenas para repetir o processo de novo, e depois…

— A gente já entendeu. – Cortou Akatsuki, o olhar flamejante fazendo a criança se calar, aborrecida. – Passand’à frente, cês tão dizendo que Naoto tentou salvar ‘ses 4 guardião ou alg’assim?

— Hmm, e onde que Takane entra nisso? – Inquiriu a loira, entediada. Subitamente, os olhos dela brilharam com entusiasmo – Ohhh! Takane já sabe! Ela é a rainha… Ou King, não é mesmo? Kawaii! ~

— Pessoas que não pertencem ao grupo não deviam ser autorizadas a falar. – Comentou Naoto com um sorriso falso nos lábios, encarando a designer diretamente nos olhos. – Mas boom, você tecnicamente faz parte da turma, por isso… Força aí, Takane-nee-chan!

A loira rangeu os dentes, irritada com as insinuações da criança e o seu sinal de “ok” irónico. É claro, a minha reação foi a de meramente mandar o meu vigésimo olhar confuso do ano.

— Não faz parte do grupo? – Inquiriu Kyoishi, levando a mão ao queixo numa expressão pensativa. Teemu logo se apressou a intervir.

— De facto, eu não tenho memórias nenhumas de Kobayashi em tudo o que aconteceu. – Afirmou ele, pensativo. – Inicialmente, achei que simplesmente as minhas memórias DELA não tinham voltado, mas na verdade…

— …Takane Kobayashi não fez parte dos alunos que sofreu os experimentos dos Super High School Level Despair. – Quem falou isso, num tom frio e cortante, foi Chiyeko. Os olhos, enevoados, encaravam o vazio à frente dela. – Isso significa que ela não tem tal coisa como um codinome nem mesmo idolatrava o nosso King. Ela não era uma bruxa. Em outras palavras… Não fazia parte do nosso grupo.

— Ahh? Mas Takane não faz parte da vossa turma? – Inquiriu a garota, numa expressão desconsertada, talvez até um pouco desiludida. Contudo, era óbvio que ela apenas fingia as emoções que exprimia. A justiceira, contudo, apenas abanou negativamente com a cabeça, mantendo-se tão inexpressiva como um quadro.

— Sim, você fez. Contudo, você tinha outro papel nessa história de perseguição às bruxas…

— KT era não uma vítima, mas sim uma das que criou as confusões todas que ultrapassámos. – Completou finalmente Eikichi, de braços cruzados e olhos fechados. Soltando um suspiro pesado, abriu-os e encarou o grupo. – KT era uma Super High School Level Despair. Ela foi, na verdade, o passe grátis para Junko poder usar a nossa turma para os seus experimentos.

— Takane-nee-chan era uma das melhores Super High School Level Despair! Ela pode ter só se tornado uma porque estava curiosa para ver o que era o sofrimento do desespero, mas ela reaaalmmmeeente ajudou! – Afirmou Naoto, dando uma volta em cima do banco, entusiasmado – Takane-nee-chan inclusive foi quem pegou fogo no refúgio de papai! Obrigado por isso, me ajudou muito!

No meio dos grunhidos irritados de Kobayashi por estar sendo constantemente troçada por uma criança, acabei me apercebendo de um pormenor estranho na sua conversa.

— Espera aí… Ela que pegou fogo no asilo dele? – Inquiri, surpreso. Ao ver o aceno afirmativo da parte de Naoto, parei antes de continuar. – Isso… Isso foi depois de estarmos aqui trancados!

— Ah? Então como que Kobayashi acabou aqui dentro? – Inquiriu Connor, franzindo o sobrolho e encarando a loira, que se limitou a lançar um olhar furioso.

— Takane… NÃO ESTÁ ACHANDO PIADA NENHUMA A ESSA MERDA! – Gritou, batendo com o punho no pódio com tanta força que ele tremeu com o impacto. Contive o impulso de recuar um passo, assustado. – Não saber nem o que aconteceu com ela mesma… E SER HUMILHADA DESSE JEITO…!

— C-a-l-m-a! – Soletrou o garotinho que, aparentemente, não estava minimamente intimidado. – Você está aqui porque quis, Takane-nee-chan!

— Sim, realmente, ela não estava aqui no meio dos alunos que foram resgatados pela Dra. Hiroi. – Concordou Eufrat, pensativa – Mas pouco depois de sermos resgatados, fomos aprisionados por Naoto, por isso não sabemos ao certo o que aconteceu até esse “período escolar de matança mútua” começar.

Podia parecer algo estranho inicialmente, mas eu na verdade tinha a resposta à minha própria pergunta. Aquela resposta, contudo, tinha sido vista apenas por mim e Reiko, que aparentemente não se lembrava direito desse pormenor. De facto, da forma que ele estava na altura, não era estranho que ele sequer tivesse ouvido o conteúdo daquela carta com atenção.

 

“Cara Dra. Megumi Hiroi

Necessitamos de uma resposta sua urgente. Alguns dos nossos vigias creem ter visto os aparelhos de segurança de Hope’s Peak sendo desativados por breves momentos e alguém entrando no edifício. Contudo, a doutora expressamente nos informou que não permitiria a entrada de ninguém, pelo que precisamos de uma confirmação da sua segurança.”

 

— Na verdade, ela entrou depois de nós, isso é perfeitamente plausível. – Afirmei, baixando o olhar para pensar. Contudo, quando o fiz, o casaco de Teemu envolvendo o corpo do meu falecido irmão entrou no meu campo de visão, obrigando-me a conter o vómito que surgiu com todas as memórias que surgiram.

Respirei fundo. Ainda não estava na hora… Eu tinha outras preocupações para enfrentar primeiro. Todos os meus pensamentos e dúvidas quanto ao que aconteceu com ele tinham de ficar para depois, pela segurança de todos nós. Com isso em mente, continuei.

 - Mas isso significa que outras pessoas tinham de estar aqui já, entrando ao mesmo tempo que nós. – Afirmei com segurança, virando o olhar para Kurama. A garota retribuiu apenas um olhar confuso em resposta. Aparentemente, nem ela sabia ao certo a onde que eu queria chegar.

Inicialmente, quando eu li a última carta, o facto de mencionarem alguém suspeito entrando em Hope’s Peak não soou minimamente estranho para mim. Na verdade, até fazia sentido, porque eu não sabia que Kobayashi não estivera connosco desde o início e que a Kurama que conhecíamos não era a verdadeira. Assim sendo, não demorei a assumir que, de facto, a entidade suspeita era Seiko Yukimura, o nosso último motivo para assassinato. Só que essa pessoa foi confirmada naquele preciso momento pelo próprio Naoto de que era, de facto, Kobayashi.

Além disso, agora havia ainda mais uma pessoa que eu na altura não estava ciente da sua existência. Essa pessoa… era aquela garota que estava ocupando o lugar de Kurama durante todo esse tempo, a sua dita sósia. Quando exatamente que ela entrou em Hope’s Peak?

De qualquer forma que eu olhasse para esse problema, haviam sempre pelo menos três pessoas precisando de entrar em Hope’s Peak que não faziam parte do nosso grupo e supostamente não estavam lá desde o início. Podia não ser um detalhe importante, mas o brilho nos olhos da criança que nos criara todo esse problema para começar me indicava que ele queria que eu prosseguisse com o meu raciocínio.

— Quando é que a sósia de Kurama e Yukimura entraram em Hope’s Peak? – Inquiri. O garotinho bateu palmas, entusiasmado.

— Como esperado, Isao-nii-san! Se preocupando com figurantes que não interessam a ninguém! – Piscou o olho e ergueu o polegar, como que orgulhoso de mim. – Alguém faz ideia? Alguéém? ~

— Yukimura estava connosco desde o início! – Afirmou Kayo de forma convicta – Todas as noites, eu tinha dificuldades em dormir… então ela me preparava um chá. Era uma pessoa muito prestável.

— E pensar que você recusava os nossos chás constantemente. – Soltou Eufrat, desapontada – Pensava que você não gostava, Jack. Fui completamente enganada.

— Prefiro que me chame de “Ripper”, por favor. Jack soa muito comum, eu sou bem melhor que isso. – Respondeu Ichiro num tom frustrado – E eu GOSTO de chás, mas vocês viviam me convidando no momento mais inoportuno. De qualquer jeito, ela me tinha dito que, tendo ficado sem a sua mestre, foi obrigada a fugir e decidiu ajudar a Future Foundation… E foi aí que ela decidiu tornar-se a serva da Dra. Hiroi.

— Isso pode ter sido o que ela te contou, mas é MENTIIRAAA! ~ – Riu Naoto abertamente, levando Ichiro a lhe lançar um olhar flamejante em retorno que o garotinho ignorou. – Seiko-nee-chan, depois da morte de Celestia Ludenberg, virou uma serva de Junko-nee-chan e dos SHSL Despair! Assim sendo, ela estava sobre as MINHAS ordens o tempo todo, apesar de fingir estar obedecendo à mamãe!

Ele deu mais uma risada cruel, os olhos brilhando com um orgulho doentio.

— Upupu… Minha mãe, imbecil como ela era, acreditou fielmente que Seiko-nee-chan queria realmente ajudá-la e caiu bem na armadilha de trazê-la para aqui junto de mim e vocês!

— De qualquer jeito, isso retira um problema, não é verdade? Só falta saber o que aconteceu com a sósia…

— Não é possível que ela entre junto de KT? – Sugeriu Natasha, levando o indicador aos lábios enquanto pensava – Quero dizer, seria a explicação mais prática, não é mesmo?

— Mas na carta só mencionam uma pessoa entrando. – Contrapus – A não ser que não tenham notado nada…

— Takane… Provavelmente trouxe a garota numa mala ou assim. – Afirmou a loira, rangendo os dentes. – Sim, isso é definitivamente uma coisa que Takane faria. Capturar a garota e trazê-la escondida para dentro, para que não soubessem…

— Precisamente! – Naoto parecia estar em êxtase. Não parava de dar saltinhos, bater palmas e fazer sinais encorajadores para todo o mundo, como que vendo o seu super-herói favorito destruindo o vilão. – Viu, Takane-nee-chan? Você é quem mais me ajudou com esse período escolar de matança mútua!

— Então foi assim que ela entrou…

— Mas que interessa essa triste moça? Nós nem sequer sabemos o nome dela! – Afirmou Naoto, encolhendo os ombros em desinteresse. – Só foi escolhida porque se assemelhava à Natsuri!

— O seu desprezo pela vida de pessoas inocentes é nojento. – Afirmou Evan, cruzando os braços com seriedade. Contudo, depois ele deu uma risadinha leve. – Bom, não é como se eu fosse diferente, não é mesmo?

— EVAN! – Ralhou Connor, chocado. O loiro encolheu os ombros em resposta. – I-Isso é demasiado!

Vamos regressar ao início, sim? – Cortou Kurama no seu normal tom frio e apático. – Basicamente, Naoto Hiroi pretendia salvar os quatro guardiões, Takane, King e…

— Pera aí q’ainda tem um troço aí qu’eu nã’ entendi. – Afirmou Akatsuki. – Tipo, certo, a gente é o quatro guardião tudo e Takane é SHSL Despair. Mas quem é ‘se tal de King?

A expressão de Kurama pareceu surpresa. Claramente, ela nunca sequer ponderara a possibilidade de nós sequer sabermos QUEM era King. Ela baixou a cabeça, como que com medo de falar.

— Certamente, se vocês perderam as memórias, não se iam lembrar, não é verdade? – Murmurou para si mesma, pensativa. Após algum tempo, levantou o olhar, segura de si mesma. – Me perdoem. A pessoa que tomou a posição de nosso rei, o nosso King, é Isao Kimoto.

Assim, com toda a naturalidade do mundo, as palavras da génio me atingiram como um soco na barriga. Não disse nada, mas senti os olhares caírem todos sobre mim – olhares de pena da parte dos mortos e de surpresa da parte dos vivos. Naoto também pareceu surpreso.

— Ahh…? Realmente, ficámos tão entusiasmados que pulámos a personagem principal dessa história, a verdadeira razão para estarmos aqui, não é mesmo? – Inquiriu, inclinando a cabeça para o lado enquanto me analisava atentamente. Os seus olhos pareciam inspecionar as minhas reações pormenorizadamente, aumentando o meu desconforto cada vez mais. Sentia cada centímetro da minha pele sendo observado, cada mínimo movimento… Quando dei por mim, transpirava de tanto nervosismo, as minhas mãos tremendo. – Sim, Isao Kimoto… Aquele que, sem qualquer sombra de dúvida, sofreu mais do que todos os presentes juntos.

— O que… O que fizeram com ele? – Kyoishi pareceu assustado demais para perguntar. Ninguém sequer ousou respondê-lo além da própria criança, que abandonara o seu lado infantil por completo.

Isao sofreu desespero, um desespero tão grande e horrendo que o destruiu completamente. Ahh, um nível de desespero que me deixa com inveja… E ao mesmo tempo, assustado. – Olhou para o lado, como que imaginando a cena na sua mente. – Vocês já sabem o que eu fiz com a sósia de Natsuri, não é mesmo? Eu coloquei as memórias da original na mente dela, fazendo-a acreditar piamente que era a verdadeira Natsuri. Contudo, para fazer isso, tive de apagar as memórias já presentes na sua mente previamente.

Abraçou-se à pelúcia de Monokuma que tinha nos braços, encarando-a pensativo.

— É como formatar um computador, por assim dizer. Agora… imaginem se eu pegava nas memórias de Natsuri e as colocasse na mente da sua sósia sem apagar nada antes, o que aconteceria? – Ele elevou o olhar, cortante e aterrorizante. – Como que ela diria quem era a verdadeira ela? Quais memórias eram realmente dela, e quais eram invenções? Foi isso que fizeram com Isao-nii-chan. Junko-nee-chan, após terminar todas as torturas horríveis que fez a todos os colegas da sua turma… implantou TODAS as memórias deles na mente de Isao.

Ele suspirou pesadamente. Agarrava a pelúcia de Monokuma cada vez com mais força.

— Boom, e pensar que EU sofri, esquecendo todas as minhas memórias felizes. Você, Isao, sofreu muito mais. Você tinha as memórias de 14 pessoas na sua cabeça. Todas elas lutando dentro de você para vencer. Eu mesmo cheguei a ver um pouco do seu estado. “Quem me fez isso?”, você perguntava. “Quem são meus amigos?” “De onde venho?” “Quem são meus pais?” “Qual é o meu nome?”… Você não sabia. Você não sabia sequer dizer a sua própria identidade. As suas memórias lutavam e lutavam com as dos seus colegas, as de seus amigos. E o pior de tudo…

O olho preto do Monokuma de pelúcia saltou, de tão apertado que ele estava sendo pela criança. Segui o pequeno olho até onde ele caiu, junto à mão do meu irmão... O casaco de Teemu estava invisível aos meus olhos. Conseguia observá-lo. As costelas esmagadas, a cabeça deformada, a papa sem nexo que deveria ser os seus órgãos vitais escorrendo por entre os seus orifícios… A mancha de sangue quase negro se espalhando por baixo dele. As minhas pernas tremiam, o meu olhar não conseguia se soltar daquele cadáver nojento a que eu uma vez chamara de irmão.

— As memórias que mais lhe saltavam à memória eram as torturas dos seus colegas. Você as sofria de novo e de novo e de novo e de novo, como se tivesse vivido elas mesmas. Todas ao mesmo tempo, você continuava e continuava e continuava sentindo a dor que eles todos sofreram. – As costuras do Monokuma começavam a ceder perante a pressão. O seu enchimento saía lentamente… Não, não era mero enchimento de algodão. Eram órgãos. Orgãos saíam de dentro do Monokuma: intestinos, olhos, dentes, cabelo. Ouvi gritos. Gritos… Aqueles gritos eram de Eufrat.

Contudo, quando olhei para a garota, a sua boca sequer se abria. Ela apenas me encarava com uma expressão preocupada na respetiva tela. Mais gritos. Gritos de Kyoishi. De Ai. Teemu. Connor. “Pare, por favor”, suplicava Reiko. Engoli em seco. Os gritos continuavam. “Não aguento mais” “Isso é horrível” “Não machuque os meus pais” “Isso queima” “Não quero, não quero” “O que você vai me fazer com isso?” “Estou cansado” “Não consigo respirar” “Estou cega, estou cega!” “Eles não!” “SE VOCÊ CONTINUAR, NÃO VOU SOBREVIVER” “NÃO… NÃO!” “ME PERDOE, ME PERDOE, ME PERDOE” “PARE, EU TE SUPLICO” “APENAS ME MATE, EU NÃO AGUENTO MAIS!

Os gritos continuavam na minha mente, me obrigando a tapar os ouvidos – só que era o mesmo que nada. Os berros desesperados dos meus amigos, cada vez mais altos, continuavam a ecoar na minha mente.

— Você mesmo já deve ter notado, não? – Perguntou Naoto, cuja sua voz por algum motivo se sobreponha às dos meus colegas – Você nunca teve sonhos em que eles falavam com você ou algo do tipo? Nunca… Previu o que ia acontecer? Nunca se perguntou se realmente esses sonhos eram realmente coincidência? Eles estão dentro de você, Isao-nii-chan. Por muito que apague suas memórias, eles continuam dentro de você, dentro do seu subconsciente. Te atormentando, te torturando.

O Monokuma caiu ao chão, desfeito numa poça de sangue. Os órgãos se espalhavam pelo chão, como que ganhando vida deles, se contorcendo em desespero por recuperar a vida.

— Nee, Isao-nii-chan. – Chamou Naoto novamente. Olhei para a sua face. No seu rosto, bichos andavam. Baratas. Centopeias. Elas entravam pelas suas narinas, saíam pela boca. Mas a criança pouco reagia. – Você sabe, você só está aqui por culpa deles. É tudo por culpa deles. Eles te traíram, Isao-nii-chan. Você não queria vir para aqui, mas eles te suplicaram em seguir a hospitalidade de Megumi Hiroi. E depois, quando estavam aqui, eu sugeri que vocês tivessem as memórias apagadas. Você sabia que eu estava tramando alguma. Mas eles te traíram. Todos eles são traidores. Traidores do seu King.

Porque é que ninguém estava dizendo nada? Porque é que ninguém FAZIA NADA? Limitavam-se a ficar me observando como meras estátuas. Um abraço foi me dado por trás. Quando virei o olhar, vi um belo rosto feminino que me sorria amavelmente. Os olhos tão azuis quanto o oceano espelhavam o meu rosto, os lábios finos e róseos sorriam docemente. O cabelo, loiro e preso em duas marias chiquinhas, era dourado e ondulado. A beleza daquela pessoa… me cativava. Por um momento, tudo desapareceu. Era apenas eu e ela. Junko Enoshima.

— Não se preocupe, Isao… – Dizia ela, sorrindo levemente. Encostou os lábios ao meu ouvido, tocando-o suavemente. – Você vai conseguir superar isso. Você vai matá-los a todos.

— Eu vou… Matá-los a todos. – Concordei, acenando afirmativamente com a cabeça. – As vozes vão se calar se eu os matar.

Sim. – Concordou a outra, flutuando ao meu pé. O seu abraço, quente, maternal… O seu conforto, a sua voz doce ao meu ouvido... – É o que te foi destinado.

— É o que me foi destinado. – Repeti, acenando afirmativamente de novo. – Primeiro eles. Depois os outros. E todos os outros. Toda a humanidade…

Toda a humanidade vai desesperar nos seus braços. – Completou Junko baixinho, se colocando à minha frente e me beijando. A sua língua entrelaçou-se com a minha enquanto o seu perfume adocicado penetrou pelas minhas narinas. Ela sabia o que era o melhor para mim. Quando se afastou, sorriu-me.

 

 

Meu querido, querido irmão.


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Notas finais do capítulo

Upupu.