Vinte e Três escrita por Momoi


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente. Fiz essa história com base em um problema muito comum e frequente na nossa sociedade e que foi presente também na minha família. É uma fic de leitura calma e aconselho ouvir escutando isso: https://www.youtube.com/watch?v=4Z8edzPei1c Eu sei, estranho. Mas se você ler ouvindo, vai perceber que a escrita segue totalmente o ritmo do vídeo. Espero que gostem. Boa leitura!

E queria deixar um agradecimento para a Little Neko que betou a história pra mim ♥



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O barulho do relógio era a única coisa que me servia como lembrete de que eu deveria começar a falar. Meus olhos fechados não me permitiam ver as paredes brancas, o piso de mármore e nem a mulher de seios grandes a minha frente, mas eu sabia que estavam ali. Minhas mãos suavam e ficavam pegajosas, mesmo que estivesse fazendo frio. Eu queria estar em casa. Ainda que fosse fazendo algo que eu não gosto. Certamente eu preferiria estar lavando a louça a estar sentado aqui.

O tique contando os segundos começou a parecer passar mais depressa depois que comecei a prestar atenção. Se minha contagem estivesse certa, eu estava ali há quarenta minutos. Eu poderia ter levado o cachorro para passear neste tempo. Ou ,quem sabe, arrumar a cama que deixei por fazer essa manhã. Eu sabia que Sasuke não iria arrumar.

Finalmente abri meus olhos e levantei a cabeça. A atenção da mulher se voltou pra mim com a esperança de que eu falasse algo, mas eu não falei. Ajeitei minhas costas no apoio acolchoado e senti uma dor aguda na nuca por ter ficado tanto tempo olhando para o chão. Olhei para os dedos femininos que tamborilavam a prancheta ao ritmo do relógio.

―Você realmente deveria falar algo, senhor Uzumaki. ― Pela primeira vez no dia, eu a encarei. Seus olhos eram de um azul tão claro que a faziam parecer cega. Seus cabelos pretos estavam exageradamente lisos e franja totalmente alinhada na testa. Sua pele era branca e bem cuidada. ― Já é a quarta consulta que você vem e fica calado.

Não respondi. Meu olhar subiu para o relógio antes de voltar para o chão. Faltavam sete minutos. Ela suspirou.

―Naruto ― Voltei a olhar em seus olhos e a menção no meu nomeme fez perceber que eu não sabia o nome dela, mas não liguei para isso. ― Se for para ficar em silêncio, é melhor ir para casa.

Acenei com a cabeça, concordando, e levantei. Não esperei que ela me acompanhasse até a porta para sair. Eu não estava ali porque queria. Era Sasuke, seu ex-colega da faculdade de psicologia, que insistia para que eu fosse visitar aquele consultório. E mesmo que ambos soubessem que eu não abriria a boca para falar, persistiam na tentativa inútil de me ajudar.

Cacei as chaves do carro no meu bolso da frente e me assustei ao não achar, apenas para lembrar que havia guardado no de trás. O carro apitou ao ser destrancado e uma onda de insatisfação me bateu quando vi que, ao lado do meu, estava estacionado o Hummer que eu tanto queria, mas não tinha dinheiro para comprar. Ignorei, entrando no meu próprio automóvel, bem mais barato que o dos meus sonhos, e dei a partida. O carro morreu uma vez em um sinal vermelho perto de casa e outra enquanto eu tentava estacionar na garagem.

Entrei no meu apartamento e senti vontade de sair novamente. Sasuke estava fazendo couve para o almoço, e eu odeio couve. O cachorro pulava em mim, fazendo festa, e a menina de quatro anos nem se preocupou em parar de brincar para vir falar comigo. Tirei meu casaco e deixei os sapatos na entrada. O piso frio em contato com meus pés me causou um arrepio. Marchei em direção ao sofá escuro e reparei uma macha na almofada, provavelmente, feita por mim. Sentei, mesmo que não estivesse cansado.

―Hinata acabou de me ligar ― Ele não se virou para falar comigo, mas fiquei feliz em descobrir o nome da psicóloga ― Ela me disse que você ficou em silêncio o tempo todo. De novo.

Fiz um som mais parecido com um murmúrio, apenas para mostrar que eu estava ouvindo enquanto afagava as orelhas do pastor alemão sentado na minha frente. Ele suspirou alto e a garotinha parou de brincar apenas para olhar para seu pai, depois para mim. Meus olhos encontraram os dela que logo foram desviados.

Escutei o fogão sendo desligado e a panela sendo largada de qualquer jeito em cima da pia. Eu achei que ele viesse em minha direção para discutir, mas isso, felizmente, não aconteceu. Sasuke abriu os armários e tirou três pratos de lá. Demorou um pouco para que ele me chamasse. Eu não queria ir, então continuei sentado.

A televisão desligada não me prendia o interesse e meu cachorro já havia saído de perto. As únicas coisas que me prendiam a atenção eram o barulho do relógio, os talheres batendo no prato e algumas frases soltas de Sasuke dizendo para Chiharu comer os vegetais e largar a Barbie enquanto estivesse à mesa. Senti por diversas vezes seu olhar sobre mim durante o almoço, mas não o olhei de volta. Continuei encarando meu reflexo na tela apagada da TV.

Soube que o almoço de ambos havia terminado quando a garota veio correndo de volta para a sala, continuar com sua brincadeira, e pelo barulho da louça sendo lavada. O barulho do relógio continuou.

―Seu prato está na mesa. Vou esquentar para você. ― A voz grossa ecoou pela sala.

―Eu to sem fome. ― Respondi, fazendo-o desistir da tarefa. Minha voz saindo mais rouca do que o esperado pelo tempo que fiquei em silêncio.

―Por que não me disse antes? Eu não teria colocado se soubesse que não ia comer. ― Vi de soslaio que seu corpo ainda estava imóvel. Suas mãos ainda segurando o prato enquanto a porta do micro-ondas estava aberta.

―Não pedi para você colocar. ― Não quis soar grosseiro, mesmo que tenha sido inevitável. Achei que ele não fosse responder, mas sua fala veio, mesmo que demorada.

―Tudo bem, eu jogo fora então. ― Ouvi o som do garfo raspando o prato e o saco plástico do lixo recebendo o alimento. Sasuke não me olhava, mas minha visão se prendia em suas costas.

Seu corpo estava relaxado, mesmo que seus movimentos parecessem robotizados. Seu cabelo estava desalinhado e sua blusa de mangas, desbotada. Ele se virou apenas para subir as escadas e, ao olhá-lo de frente, eu pude reparar melhor o seu rosto. As olheiras estavam mais fundas e escuras que o normal, sua pele tão pálida e seca que parecia papel. Suas maçãs do rosto estavam sobressaltadas, mostrando o quão magro estava. O avental amarrado em seu tronco o deixava ridículo. Parando para analisar, eu não conseguia mais ver os motivos que me fizeram me apaixonar por Sasuke e decidir morar com ele.

Para ser sincero, eu nem ao menos conseguia enxergar motivos para nada. A criança brincando no chão, o cachorro ao seu lado e o prato de comida colocado para mim, deveria ser algo que me deixava feliz. Era um ambiente familiar tão natural e esperado, que parecia estranho eu detestar tanto.

Antes de chegar ao andar de cima, ele se virou, me olhando pela primeira vez.

―Hinata disse que se quiser, pode voltar lá ainda hoje. Eu gostaria que você fosse. ― Seus olhos em um preto opaco pelo cansaço. Devolvi o olhar e gostei da sensação de estar tendo um contato direto com Sasuke, o que não durou muito, pois ele continuou a subir até sumir da minha visão.

Voltei meu rosto para frente, o relógio ainda batia e Chiharu agora tentava imitar uma voz masculina para seu boneco Ken. Ela não conseguiu. O porta-retrato do lado da televisão me mostrava uma foto minha e de Sasuke no nosso aniversário de namoro em Amsterdam, e por um minuto, senti saudades dele.

Talvez Sasuke estivesse certo. Talvez eu devesse voltar ao consultório da tal Hinata e falar todos os meus problemas. Pensando melhor, percebi que eu nem ao menos saberia listar o que estava se passando comigo e por quanto tempo, por isso, tratei de pegar o caderno de anotações da mesinha do lado do sofá.

“Contagem de problemas durante os anos”

Comecei. A caneta preta deixava minha letra mais feia. Procurei no potinho uma caneta azul, mas só achei um lápis sem ponta, uma lapiseira quebrada, outras canetas pretas, um clipe ao fundo e alguns centavos perdidos. Dei de ombros e continuei ainda que com a letra feia.

“Vinte e três anos: Meu pai é atropelado por um carro.O motorista com um nível de teor alcoólico quatro vezes maior que o limite legal. Meu pai desmaia na calçada, bêbado demais para sentir qualquer coisa. Um pedestre chama a ambulância, mas ela não chega a tempo. O médico me diz que ele está sem pulso. Eu não chorei, mas me perguntei de quem foi à vida que passou diante de seus olhos se ele vivia alcoolizado demais para se lembrar de algo da sua própria.

Vinte e dois anos: A prima de Sasuke morreu e a filha dela veio morar com a gente. O nome da menina era Chiharu.

Vinte e um anos: Minha mãe insistiu para que eu fosse passar o natal lá junto com Sasuke. Decidi aceitar. Meu pai insultou Sasuke. Eu costumava trocar presentes com meu pai todos os anos, mas nesse em particular, trocamos socos.

Vinte anos: Largo a faculdade e começo a trabalhar porque eu e Sasuke decidimos morar juntos. Eu levei meu cachorro comigo.

Dezenove anos: Eu disse para meu pai que estava namorando um homem. Mesmo que ele soubesse da minha opção, descobrir que isso estava se concretizando talvez tenha mexido um pouco com ele, ou apenas achava que eu tinha dito aquilo durante uma fase estranha na adolescência. Ele me bateue me expulsou de casa.

Dezoito anos: Eu não levava um amigo para minha casa há quatro anos. Meus pais começaram a estranhar quando Sasuke dormia frequentemente lá, mas não reclamavam. Eles brigavam mais entre si.

Dezessete anos: Meu pai parou de trabalhar, minha mãe também parou de trabalhar. As brigas eram constantes e eu não conseguia estudar para a faculdade. Comecei a ir para uma cafeteria do lado da minha casa para isso e tive conversas mais significativas com os atendentes do que com minha família. Conheci Sasuke.

Dezesseis anos: Meu pai bateu na minha mãe, eu tentei impedir, mas ele me bateu também. Minha mãe me deu um cachorro, então esqueci o ocorrido.

Quinze anos: Minha mãe acorda para limpar o vômito do meu pai no meio da madrugada, começa a preparar o café da manhã ao ver que eram quase 5h e age como se ela não tivesse perdido o apetite. Minha teoria de que meu pai era alcoólatra apenas havia se concretizado. Eu me culpo, minha mãe se culpa, eu culpo meu pai, minha mãe culpa a todos e meu pai ainda está desacordado bêbado no chão. Eram as finais da NBA, mas ninguém assistiu.

Quatorze anos: Eu invento a teoria de que meu pai voltou a beber talvez ele tinha descoberto que eu sou gay. Ele e minha mãe discutiram. Minha mãe disse que era apenas uma fase e pediu para ele se acalmar.

Treze anos: Meu pai entra pela porta como se fosse uma avalanche. Tropeçando e derrubando coisas como molduras e mobílias.

Doze anos: Meu pai e minha mãe discutem. Minha mãe fala que quer se separar pelas bebedeiras dele. Meu pai chora e eu não o vi mais bebendo aquele ano.

Onze anos: Encontro seu cartão de alcoólatras anônimos na bancada. Agora eu sei o que significa. Fico feliz que ele estava tentando parar então vou falar com ele, mas ele estava bêbado com uma garrafa de uísque.

Dez anos: Achei meu pai desacordado encostado na porta de um bar fechado no meu caminho para a escola. Liguei para minha mãe. Ela nos buscou e eu não fui para a aula.

Nove anos: Meu pai me leva em um jogo de basquete. Ele diz que vai comprar uma cerveja e que era para eu esperar ali. Esperei por cinco horas. Minha mãe me buscou. Depois descobri que meu pai foi para um bar, ficou bêbado e me esqueceu por lá.

Oito anos: Eu voltei para casa e meu pai bebia socialmente agora. No meu aniversário, ele bebeu vinho com meus tios, mas meu tio disse que ele não devia estar fazendo isso. Meu pai e meu tio brigaram e eles saíram mais cedo da minha festa.

Sete anos: Meu pai começou a participar de muitas reuniões. Eu sentia falta dele. Minha mãe me disse que ele estava indo para os alcoólatras anônimos. Ela me perguntou se eu sabia o que era e eu concordei. Eu não sabia. Minha mãe disse que eu ia passar um tempo com a minha avó.

Seis anos: Meus pais nunca bebem vinho em encontros familiares. Meus tios sempre bebem, mas nunca oferecem para eles. E meu distraio com a televisão e acabo me esquecendo de perguntar o porquê.

Cinco anos: Eu queria ser o super-homem, ou o meu pai, que pra mim, eram a mesma pessoa na época.

Quatro anos: Meu pai parou de me contar histórias para eu dormir e não me levava mais no parquinho. Ele chegava a casa tarde demais para fazer essas coisas. Mas eu amava meu pai.

Três anos: Eu tive um pesadelo por causa do Scar de Rei leão. Eu corri até o quarto dos meus pais com meu cobertor na mão. Quando passei pela cozinha, vi a sombra do meu pai pela luz da geladeira. Ele estava só de cueca e levava uma garrafa até a boca. Era madrugada.

Dois anos: Meu pai contava história todo dia para eu dormir e me levava no parquinho.

Um ano: Minha primeira palavra foi “papai”.

Zero: Minha mãe estava grávida de mim. Eu me pergunto se ela esperava, como tantas outras mães fazem, que seu bebê fosse crescer e se tornar como seu pai. E que aos vinte e três anos, com o nível de teor alcoólico quatro vezes maior que o limite legal, atropelaria e mataria, sem dor, um homem bêbado demais para sentir algo.”

Relendo o que estava escrito, eu percebi que realmente era melhor eu voltar ao consultório da médica peituda que eu havia esquecido o nome novamente.Porém, ao invés disso, me levanto e me dirijo para a cozinha, ignorando o choro de Chiharu pelo cachorro ter roubado sua boneca e abro a geladeira para alcançar minha garrafa de uísque.

Volto para o sofá, bebendo direto do gargalo. Sasuke desce com cara de quem havia acabado de acordar e pega a boneca de volta. Ele pega Chiharu no colo e tenta acalmá-la. Reclama comigo e fala em separação. Eu olho para meu reflexo na tela desligada da televisão e vejo meu pai, mas eu não ligo por estar bêbado demais para me preocupar.


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Notas finais do capítulo

Foi isso. Espero que possam me falar a opinião de vocês positiva ou não (no caso, construtiva, ok? ok) Obrigada a todos que leram! :)