Neither Saints, Nor Demons escrita por Maddy Ferguson


Capítulo 1
Capítulo I: Ah, look at all the lonely people


Notas iniciais do capítulo

Seja muito bem vindo (a), caríssimo (a) leitor (a). Aqui iniciamos nossa pequena jornada observando a vida de... Bem, vou deixá-lo (a) descobrir. Afinal, quem é que não gosta de um pouco do ar londrino entremeado a uma trama? E aos caros leitores fantasmas moradores da névoa da City, saibam que um mero sussurro em forma de comentário deixará essa pobre escriba muito feliz! Please, entre em contato comigo do além! :)Nesse capítulo (e quem sabe nos próximos, não? Tem que ler para crer! *0* ) fiz algumas pequenas homenagens a... Well, espero que gostem desse comecinho de história!



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CAPÍTULO I: Ah, look at all the lonely people

Father McKenzie writing the words of a sermon that no one will hear,
No one comes near

Eleanor Rigby - The Beatles

Diana postou-se diante da fachada estreita e de um branco sujo e descascado que pertencia a sua casa e suspirou. Precisava de uma dose boa de coragem e ânimo toda vez que voltava a seu ‘lar’. Por que somos obrigados a amar pessoas que não nos amam, só para obedecer a alguma ideia ancestral de ‘família’? Quantas histórias tão horríveis não se escondem por trás de cada pessoa perturbada, tudo por causa de um respeito idiota a um conceito ultrapassado e falso. Era horrível pensar assim, ela sabia, mas certamente havia bons motivos para isso, de forma que o que menos sentia era culpa. O que ela não gostava era de ser tão sensível emocionalmente a ataques tão frequentes, depois de tantos anos. Muitas vezes já tinha se perguntando se sua idade emocional não era muito menor que a sua idade de fato, os seus malditos vinte anos. Se sentia uma criança emocionalmente, e uma velha mentalmente. Era tudo, menos a tal jovem que o mundo insistia em dizer que ela era.

O sol já estava se pondo, naquele momento estranho onde a luz exterior é insuficiente, mas as lâmpadas permanecem pálidas, embora as da casa estivessem apagadas, exceto pelo clarão da TV na sala e a luz da cozinha. Afinal, era necessário economizar energia se não quisessem ser obrigados a esquentar a água para tomar banho depois. Já era novembro, e com a temperatura baixa do início do inverno londrino, isso só não era mais desagradável que a atitude que ela teria que tomar agora, se não quisesse ficar ali na rua, sentindo as suas costas doerem por causa do frio penetrando seu feio - e já fino pelo desgaste do uso - casaco marrom com gola de pele falsa. A etiqueta já toda esfarrapada indicava que aquela coisa tosca, embora companheira, tinha vindo da China. Diana suspirou, e consolou-se pensando que, apesar de sua vida ser realmente ruim, pelo menos não era obrigada a ficar inalando produtos tóxicos para ganhar uma libra por dia, se muito, como provavelmente faziam as crianças desesperançadas que produziram seu casaco. Isso lhe deu um pouco de ânimo apesar das circunstâncias piores que de costume, e ela abriu o pequeno portão enferrujado e se dirigiu a sua casa. Ainda hesitou mais uns segundos, mas ao ouvir obscenidades dirigidas a ela vindas da rua, entrou na casa. Afinal, nada naquela casa poderia lhe fazer tanto mal quanto algum pervertido anônimo naquela rua escura e suja, pelo menos a primeira vista.

No minúsculo ‘hall’ de entrada, tirou as botas e calçou um par de pantufas que pareciam ter sido feitas com couro de rato, de tão cinzentas e velhas. Ainda com a bolsa transversal no ombro, dirigiu-se a cozinha para tomar um copo de água.

– Olá, mãe – disse ela, distraidamente. Lucy Deverich ergueu os olhos de sua Bíblia para ela com a cara de censura de sempre, mas seu parco instinto maternal deve ter falado mais alto e ela cumprimentou a filha cordialmente, embora sem direito a um mísero sorriso.

Quando a mãe baixou os olhos para prosseguir sua leitura, Diana olhou para ela de soslaio e se sentiu triste. Bem ou mal, a mãe era ainda a única pessoa que ela realmente gostava na família, mas não iria ceder ante a insistência religiosa dela. Os princípios de Diana eram o frágil esteio da sua vida, e não iria para uma igreja qualquer só para agradar alguém. Algo sobre a mesa chamou a atenção da garota.

– Foi ao banco de alimentos de novo?

Lucy olhou-a, já armada para o combate, através de suas olheiras enormes:

– Fui. O pagamento do seu pai já acabou, por causa dos empréstimos. E você sabe como seu avô é.

Diana comprimiu os lábios com o gosto amargo do orgulho pisoteado na boca. Odiava que a família dependesse do governo até um ponto tão humilhante. Se você perde seu orgulho de pobre, sua dignidade acaba completamente.

– Se você ao menos tivesse me emprestado aquelas trinta libras... – murmurou Lucy, ainda lendo.

A filha olhou para ela irritada. Ela nunca tinha recusado a dar parte do seu parco salário de balconista naquela loja de conveniência imunda, mas para os fins que achava certos. Comprava boa parte dos materiais escolares e roupas dela e dos irmãos, além de custear o transporte deles completamente.

– Mãe, você sabe muito bem o motivo. Eu não vou colocar comida na boca daquele velho maldito, então pare de me recriminar! – retrucou, já gritando.

A mãe olhou-a de tal maneira que Diana pensou que iria levar um tapa na cara.

– Quando é que você vai respeitar seu avô? – gritou ela, batendo a Bíblia na mesa com certa violência contra um livro tão sagrado como ela alegava – Custa tanto assim seguir o mandamento de respeitar sua família, Diana?

– Não existe tal mandamento – rebateu a garota friamente – E o que existe diz para respeitar pai e mãe. E mesmo não sendo nada cristã, isso eu faço. Quanto aquele velho miserável, ele não é minha família. – e saiu, rumo a seu quarto. No corredor, ouviu seu avô rindo – um som maligno e chiado semelhante ao riso de uma hiena infernal.

No quarto que dividia com sua irmã, encontrou-a com as pernas para cima, fones no ouvido e uma carranca na cara comprida. Não a cumprimentou, sabendo que não teria resposta. Mas inesperadamente, ouviu a voz de Bella:

– Diana, chegou uma carta para você.

– Uma carta? De que tipo?

Um ar de pena, que Diana nunca tinha visto no rosto daquela adolescente violenta, fez seu coração disparar.

– Da universidade – prosseguiu ela – Houve um tremendo barraco hoje aqui por causa disso. – Diana sentiu como se Bella quisesse dizer ‘sinto muito’, mas sabia que o orgulho da irmã tinha truncado a frase.

Como se não bastasse eu ter sido demitida hoje, pensou ela, desesperada. Sabia que uma briga homérica estava se aproximando. Decidiu apressar o parto do maldito evento, então.

Desceu para a cozinha. A mãe estava com uma cara tão horrível que dirigiu-se a sala. Lá, no meio de uma bagunça repugnante, estavam sentados, diante da TV, seu pai e seu avô, os rostos iluminados pela luz fantasmagórica do aparelho, as bocas abertas num estado semi-vegetativo. Sentiu uma ponta de dó de seu pai, condutor de metrô, o rosto cheio de rugas e cansaço depois da jornada diária exaustiva. Os cabelos dele eram mais brancos que o do sogro, vinte e cinco anos mais velho. Isso não a surpreendia. Todos sabiam que os cabelos brancos vêm com as responsabilidades, e seu avô sempre fora um vagabundo da pior qualidade.

– Soube que chegou uma carta para mim – disse ela, ao pai.

John Deverich desviou a atenção da TV durante meio segundo para responder, com um ar de autômato:

– É? Olhe ali na mesa.

Diana começou a procurar a carta entre latas velhas de cerveja, restos de cereais, embalagens vazias e centenas de folders publicitários. Quando a encontrou, levou um choque. Ali só havia um envelope vazio e violado, com o brasão da universidade, endereçado a “Ms. Diana Deverich”.

– Quem abriu essa merda de envelope? – disse ela, coma voz alterada.

– O quê? – perguntou John sem desviar os olhos da televisão, enquanto sua mãe gritava da cozinha para que ela parasse de xingar e o irmão mais novo tirava o fone dos ouvidos, entrincheirado num colchonete num canto da sala. Ele sabia que o alarme da briga do dia tinha sido dado.

– Está procurando essa merda aqui? – Diana ouviu o avô dizer, mostrando a carta.

– Me dê essa porcaria de carta aqui! – gritou ela.

– Pare de gritar, caralho, Diana! – disse John, sem desgrudar os olhos da televisão.

– Acho que você devia ouvir as palavras que essa bicha almofadinha mandou pra você – disse o velho Alfred Jones, cinicamente – Pelo menos ele percebeu a verdade – continuou, com uma gargalhada chiada e imitando uma voz afeminada – “Prezada Ms. Deverich, lamentamos informar que, infelizmente, suas notas foram insuficientes para atingir o mínimo exigido para ingresso em nossa universidade...”

Diana sentiu os olhos encherem de lágrimas que ela não queria derramar. Era doloroso ver seu sonho despedaçar-se, mas receber essa derrota pelas mãos daquele caquético imundo era mais do que ela poderia suportar. Sua índole não era orgulhosa, mas não admitia ser humilhada. Não por ele. Disse:

– Me dê isso.

– Ainda não terminei de ler, idiota. Quem é o miserável agora, vadiazinha?

– PAI! – gritou Lucy, da cozinha.

– Se não me der essa porra de carta, eu te mato, seu velho desgraçado, filho da puta!!! – gritou, Diana, finalmente perdendo o autocontrole.

– Parem com essa desgraça de baixaria! – gritou o pai, desligando a TV com um murro. A sala ficou escura. Bufando, John continuou gritando – Se continuar com essa boca suja, Diana, vai ficar sem os seus dentes, porcaria inútil!

– Não me importo! – rebateu ela – Venha, quebre eles!

– Dá essa merda de carta pra ela logo, Alfie – disse John, ainda raivoso, mas um tanto envergonhado.

– Claro, sempre sou eu que estou errado. Fui eu que foi demitido do emprego por ser lerdo e não consegui entrar numa universidade por ser um retardado da porra! – gritou o velho.

– Você nunca pôs os pés numa universidade nem trabalhou, muito pelo contrário, sempre foi um vagabundo que só serviu para falir a empresa da minha avó e gastar a fortuna da família nas putas, whisky e cocaína! Culpa sua que somos miseráveis como somos hoje! – gritou Diana, chorando histericamente sem nem sentir – Você devia estar morto, demônio, filho da puta, desgraçado!

– Você foi demitida?! – John berrou, os olhos tão arregalados que quase iluminavam a sala na penumbra. Obviamente ele só ouvira o erro dela.

– Óbvio que foi. Quem empregaria uma imprestável dessas? Daqui uns dias vai estar numa esquina gemendo como a puta barata que sempre foi – disse o velho, enquanto rasgava a carta e cuspia no chão.

O que se seguiu foi um pandemônio tão irracional que Diana teve dificuldade de entender mesmo depois de muito tempo. Tudo o que se lembrava foi que em algum momento tinha partido para cima do velho com um vaso de vidro que foi arrancado de suas mãos por um empurrão que não soube de onde veio. Isso não a impediu de esmurrar e arranhar a cara dele com as unhas que sempre mantinha longas, o que rendeu a ele uma dentadura quebrada, um olho roxo e uma sobrancelha cortada. O sangue correu abundante pela cara de Alfred, enquanto Diana sentia seus cabelos serem puxados violentamente e levava um pontapé nas costelas. Sentiu o gosto do seu próprio sangue no fim, mas não soube discernir se foi por causa do chute, ou do corte aberto no lábio quando foi atirada contra a mesa de vidro.

***

Eram três da manhã, a hora em que os monstros, as almas atormentadas, os demônios e coisas mais obscuras saem dos cemitérios de Londres para patrulhar suas ruas escuras e sem vida. Diana sentou-se nos degraus da igreja. Como flocos de neve perenes, alvos grãos de arroz ainda cobriam a escada defronte a grande porta dupla, minúsculas testemunhas do casamento que tinha sido realizado ali, mais cedo. Diana se encolheu sobre si mesma... E Diana chorou.

Tudo o que possuía cabia numa mala pequena e velha, algo deprimente considerando que era tudo que possuía na vida. Era verdade que tinha saído de casa por vontade própria, mas poderia será que se poderia chamar de vontade própria ter que sair para o desconhecido, por medo de ser morta – tanto fisicamente quanto psicologicamente? Pelo menos tenho aquelas trezentas libras no banco, pensou ela, tentando consolar-se, em vão. Pelo menos não vou passar fome e nem ficar na rua até arrumar um emprego. Arrumarei um emprego.

Talvez arrumasse um emprego. Tinha experiência, tinha qualificações... Mas enquanto isso, seu maior sonho estava tão distante e inacessível quanto a cruel lua minguante que se recusava a iluminar uma criatura tão miserável como era ela.

Diana se lembrava claramente de quando decidira ser médica. Era 31 de agosto de 1997. O mundo chorava pela perda da princesa a quem Diana devia seu nome, mas ela chorava por outra pessoa. Diana chorava por aquela que lhe dera seu nome, aquela mulher realmente nobre que, ao contrário da princesa, não era pranteada ao redor do planeta. Era pranteada apenas por uma menininha que mais sentia do que entendia o que estava acontecendo, nos braços de uma mulher de rosto duro como o de uma gárgula da Abadia de Westminster postada ao lado um homem que achava que as tristezas devem ser afogadas com álcool para evitar que elas transbordem pelos olhos. Alfred Jones, o responsável por aquela desgraça, não se dignou a ir no velório daquela que fora sua esposa por vinte sofridos anos, preferindo ir a um prostíbulo cheio de tristes jovens magras e de narizes roídos pelo vício em cocaína.

Esse era o motivo primordial para Diana odiar tanto seu avô a quem espancara hoje. Diana nunca tinha batido em ninguém, ainda mais numa casa onde os mais velhos eram tidos como superiores, por mais abjetos que fossem. Os socos naquela cara flácida foram a vingança por tantos anos de sofrimento, e acima de tudo, pelo inferno na terra que aquele homem impusera a pobre Cora Jones, sua avó – primeiramente, destruindo a empresa da esposa e mergulhando a filha Lucy, o sócio e genro John e a si mesmo e a Cora na miséria, motivado por seu orgulho – se considerava um excelente administrador – e devido a sua vida devassa e dispendiosa demais para que a pequena Leighton & Co. resistisse. Depois, as surras constantes em Cora. Mesmo quando ela descobriu possuir um câncer de mama. Alfred se recusou a pagar o tratamento, e sua brutalidade acelerou o processo da morte da avó de Diana.

Quando deram as costas ao pequeno e humilde túmulo de Cora Jones (née Leighton), amada esposa e mãe, Diana soltou-se da mão de Lucy e parou.

– Venha, Diana – disse a mãe, cansadamente.

– Mãe?

– Sim?

– Como se chamam as pessoas que não deixam os outros morrerem?

John e Lucy se entreolharam. Ela desatou a chorar, enquanto ele se abaixou e encarou a menina.

– Pessoas assim não existem, Diana. Mas existem pessoas que cuidam das outras, e por vezes, elas conseguem salvar algumas da morte.

– É? Qual o nome deles?

– São os médicos. Eles ajudaram muito sua avó, mas era a hora dela. Mas se pudessem, eles a teriam salvo.

– Eu sei. Todos salvariam a vovó se pudessem.

– É.

– Eu vou ser uma médica, então.

John se levantou.

– Vá para casa com sua mãe, Diana. Eu irei mais tarde.

Naquela noite, John adormeceu jogado numa sarjeta, fedendo a cerveja.

Aquela universidade era só uma tentativa mesmo. Tenho uns dez anos para continuar tentando. Vinte, se for preciso.

O frio estava apertando. Diana abriu tirou os óculos e enxugou as lágrimas dos olhos. Pegou a mala e apertou-a contra si.

– Ei, quanto é, delícia? – ouviu uma voz rude dizer, seguida de gargalhadas tão rudes quanto. Do outro lado da rua, num beco escuro, espreitavam três homens, fazendo gestos obscenos e se dirigindo a ela. Ela permaneceu parada, sem ação. Mas quando um deles abriu a braguilha e começaram atravessar a rua, o instinto de sobreviência de Diana a fez entrar em pânico e correr para a pesada porta de carvalho da igreja, que esmurrou com os dois punhos enquanto gritava:

– Socorro, por favor, abra! Socorro, pelo amor de Deus! Socorro, alguém me ajude! Abra! Socorro!

Ela estava apavorada demais para notar, mas numa casa vitoriana ao lado da igreja uma luz se acendeu, e finalmente, a porta da igreja se abriu. Diana correu para dentro, antes de sequer ver quem a abrira.

– Quê, o padre vai proteger a vadiazinha? Eu não contaria com isso! – gritou um deles, ao pé das escadas, enquanto os outros riam.

– Saiam daqui, bando de vagabundos, deixem a garota em paz!

– Eu paguei, quero meu serviço agora! Manda a puta pra cá!

O padre olhou para ela.

– Não faça isso, senhor, não é verdade – murmurou ela, tremendo.

Mas não houve tempo para debates, pois nesse momento surgiram dois policiais correndo rua acima e os marginais sumiram tão rápido quanto demônios diante de um crucifixo.

– Deixe que vamos pegar esses filhos da puta! – berrou um dos policiais para o padre, ainda correndo atrás dos três homens.

Com o perigo iminente passado, o padre voltou sua atenção para Diana. Não disse nada, mas seus frios e indecifráveis olhos verdes por trás dos óculos redondos pediam por explicações.

– Fugi de casa – disse ela, impulsivamente – E me sentei aqui nos degraus para pensar no que fazer, quando eles apareceram. Iam me atacar.

– Eles te machucaram? – perguntou ele num tom que denotava mais curiosidade do que preocupação, ao perceber as manchas de sangue na roupa dela, o lábio cortado e a falha do tufo de cabelo castanho arrancado na cabeça da garota.

– Eles não. – disse ela – Isso foi lá em casa.

O padre encarou-a analiticamente por um longo momento. Diana não soube o que pensar ou dizer. Aquele homem simplesmente era... Indecifrável demais, não havia outra palavra. Depois de um longo tempo, ele finalmente disse, pensativo:

– Poderíamos começar com você me dizendo seu nome.

– Diana. – ela reconheceu que não estava sendo muito cautelosa, ao ouvir o som de sua própria voz.

– Diana – disse ele, num tom impessoal – Diana, o que faremos a seu respeito?

Ela ficou em silêncio.

– Devo chamar a polícia? Ou ligar para sua família?

– Se isso significa que duvida de mim, não duvide mais. Eu sou confiável. Mas se o senhor quiser, volto para aquela rua. Em todo caso, obrigada por ter me salvado.

– Parece enfrentar corajosamente os perigos das circunstâncias que a rodeiam.

Diana encarou-o, intrigada.

– O que quer dizer? – ante o silêncio dele, ela prosseguiu – Não faço isso porque quero. É só o necessário. Se eu quiser sobreviver. Se eu quiser realmente viver.

– Mas não tinha esse comportamento até hoje, quando fugiu de casa.

– Engana-se – disse ela, com uma ponta de irritação – O que fiz naquela casa foi bem mais que enfrentar e se livrar das circunstâncias. As tolerei, e creia-me, isso é muito mais difícil.

– Não é o que costumam dizer, não é? Isso poderia ser apenas uma mostra de fraqueza, e por que não, covardia. Sempre dizem para tomar alguma atitude. Mesmo que isso seja mais doloroso, e nocivo.

Ela emudeceu. Por que estava naquilo ainda? Deu as costas ao padre enquanto dizia:

– Em todo caso, obrigada. Creio que é hora de eu ir.

– Irá a procura de alguma coisa, Diana? – disse ele, e ela estacou – Um sonho, talvez? Isso seria bonito, e deveras raro. – ela olhou-o por sobre o ombro, assustada – O que você procura, Diana?

– Está tentando me catequizar, padre? – perguntou ela, acidamente. Não podia deixá-lo ver o quão espantada estava, e ser cínica era geralmente um bom disfarce. Deixava as pessoas cegas de raiva, e consequentemente, incapazes de perceber coisas mais profundas que a raiva. Era uma lição que aprendera para sobreviver em casa.

Não funcionou com o padre.

– É o que realmente acha que eu estou fazendo, Diana?

Um meio sorriso apareceu no canto dos lábios daquele rosto erudito, enquanto ela o olhava, petrificada – mas curiosamente, não sentindo medo.

– Que comportamento mais reprovável, assustando uma pobre menina, reverendo – interveio uma terceira voz, feminina, madura. Diana estremeceu e voltou seus olhos para a escada se deparando com uma curiosa idosa de cabelos brancos presos em tranças e roupas coloridas esvoaçantes que cairiam bem numa bruxa saída de algum mito antigo.

– Eleanor – disse ele, numa voz levemente agradável e formal.

– Padre McKenzie. Vejo que encontrou companhia. Quem é nossa jovem amiga?

Como a garota não respondesse, ele disse:

– Ela se chama Diana. Parece procurar um lugar para ir.

– Todos nós o fazemos o tempo todo. Especialmente quando se trata de um destino.

Aquela conversa enigmática começou realmente a incomodá-la, e Diana procurou uma desculpa para poder abandonar o estranho par de desconhecidos.

– Agradeço pela ajuda, mas acho que está na hora de eu ir. Preciso encontrar algum lugar para ficar, o mais rápido possível.

Eleanor olhou para o padre com ar sabedor. Ele disse:

– Já não teve o suficiente de riscos desnecessários para essa noite? Aqueles três não são os únicos com desejos torpes circulando pelas ruas dessa cidade a essas horas.

– Isso não contando com coisas piores – disse ela, colocando a mão no ombro de Diana, com um toque quente e acolhedor. – Não é a nós que você deve temer, minha cara.

– Mas então... O que eu devo fazer? – disse Diana, se entregando. Algo na sua intuição começou a lhe dizer que aqueles dois velhos não poderiam lhe fazer nenhum mal. Talvez nem o desejassem. A verdade era que ansiava por bondade humana, e acabava se agarrando ao menor indício dela.

– Por hoje, durma em minha casa. É essa pequena casa aqui do lado. De lá ouvi seus gritos e chamei os policiais.

Diana se sentiu ligeiramente envergonhada por duvidar deles, e baixou os olhos.

– Me desculpem.

– Não se desculpe, desconfiar é o que nos mantém vivos. Em todo o caso fico feliz por termos resolvido esse impasse e arranjarmos esse abrigo para você. Não deve ficar mais vulnerável a perigos do que já está. Antes de irem, porém, acho que uma bebida quente lhes faria bem – sugeriu o padre – Tomem uma xícara de chá comigo, estava preparando-o antes da confusão.

Mais tarde, quando foram entrar na casa vitoriana ao lado da igreja, que a propósito, pertencia a Ms. Eleanor – Rigby, como descobrira ouvindo a conversa dos dois durante o chá – a senhora comentou, ao abrir o portão:

– Não fique ressentida com o padre McKenzie. Ele é um solitário, e nós solitários somos desconfiados por natureza. Eu, porém, tenho uma intuição mais aguaçada do que ele para a alma das pessoas. Isso não deixa de ser irônico, quando se leva em conta a vocação dele.

Os nomes deles pareciam estranhamente familiares para Diana, mas ela não conseguia identificar de onde os conhecia. Contemporizou:

– Não poderia ficar ressentida com ele, o reverendo salvou-me. Assim como a senhora. E entendo perfeitamente os solitários. Pertenço a eles desde que me lembro – deparou-se com o olhar azul e impenetrável da senhora, e de repente, lembrou-se de onde conhecia os tais nomes – Oh! Puxa, seu nome é Eleanor Rigby?

– Você é realmente atenta – assentiu a senhora, com uma ponta de divertida acidez que Diana, em seu espanto, ignorou.

– Eleanor Rigby e padre McKenzie! – disse ela, assombrada – Exatamente como na música!

– Música? – perguntou a senhora, com uma expressão chocante de total desconhecimento no rosto. Diana explicou, contrangida:

– A música dos Beatles...?

A senhora olhou para ela como se a garota estivesse falando grego, embora algo mais complexo parecesse espreitar por trás de seus olhos. Diana achava meio inconcebível que uma mulher britânica daquela idade não soubesse quem eram os Beatles, mas, imaginando que talvez a memória de Eleanor estivesse fraca, calou com o assunto. Mesmo com a sensação que que a senhora lhe escondia alguma coisa.

Eleanor sorriu com o canto dos lábios e entraram na casinha, onde ela acendeu apenas a parca luz do corredor, de onde subiram para o andar superior. A despeito de todo o estramento e suspeita que ainda sentia, aquela noite seria a primeira em muitos anos em que Diana dormiu bem e de certa forma feliz, o coração aquecido por ter encontrado um pouco de compaixão no mundo e o corpo pelas macias cobertas concedidas a ela por Eleanor.

O problema é que quando Diana acordou no dia seguinte, não havia na casa o menor sinal da velha senhora. Ou de nenhum outro ser vivente.

Ms. Eleanor Rigby havia simplesmente desaparecido.


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Notas finais do capítulo

E chegamos ao fim do capítulo! Obrigada a você que chegou aqui. Que tal dar alguma sugestão, ou mesmo apenas dizer o que acha do capítulo? Aliás, é graças a sua presença que essa história poderá prosseguir!Nos vemos em breve! Creio que veremos Diana também. Mas será que veremos Eleanor Rigby? Well...