-Sabe, deveria mesmo procurar um profissional. –sugiro com os olhos fixos em meu pai, que andava de um lado para o outro sem parar.

-Clove. Eu estou bem, sua mãe já é passado pra mim.

Apoio a cabeça na mesa de madeira fria. Não, minha mãe ainda não era passado para ele. Não tinha como ser. E talvez, se ele não estivesse andando de um lado para o outro com um retrato dela nas mãos, eu conseguisse acreditar nele.

-Acha mesmo que ela esta namorando? –pergunta enfim.

-Pai. –resmungo.

-Ok, desculpa. –ele finalmente para de andar e coloca o retrato de minha mãe em cima da mesa.

Levanto a cabeça e olho para ele, que tentava estampar um sorriso genuíno no rosto. Tentava.

-O que vai quere para o jantar? Vamos, pode falar, qualquer coisa mesmo.

Quando ele sugere isso percebo como o problema era realmente grande. Meu pai só cozinhava com a minha mãe, e ele só olhava e passava os ingredientes para ele. Eu poderia morrer de fome em algumas semanas.

Dou um sorrio que mais pareceu uma careta de enjoo.

Algo simples, algo simples!

-Macarrão?

-Macarrão! –e ele sai quase correndo em direção da cozinha.

Não demora muito para os barulhos de panelas batendo começarem. Tento apurar meus ouvidos para eu conseguir escutar com mais precisão o que estava se passando na cozinha, mas depois de apenas uns dois minutos a porta se abre e a voz arrastada de Marvel chega até meus ouvidos:

-Cheguei... –e um “bum” da porta se fechando com força. –Ei!

-Aqui, Marvel! –grito de volta e seus passos se aproximam.

-Onde esta o papai? –pergunta ele.

Faço um movimento com a cabeça em direção da cozinha e ele franze o cenho.

-Cozinhando? Qual é? –reclama. –Vamos morrer de fome!

-Shh. –repreendo. –Isso faz bem pra ele, se ele descobrir que é horrível nisso só vai piorar as coisas. –sussurro.

Ele revira os olhos.

-Mas e se ele explodir a cozinha de novo? –sussurra de volta.

-Os bombeiros já sabem o nosso endereço de cor.

-Isso não é exatamente uma coisa boa é?

-Não, mas... Ah Marvel! É por ele.

Ele resmunga alguma coisa que não consigo ouvir.

-Que seja. –e vai em direção da sala de TV onde seu videogame estava instalado.

Depois de mais algumas panelas se chocando decido subir para o meu quarto.

-Morre. Morre. Morre. –Marvel gritava com seu vídeo game. Eu apenas reviro os olhos, já acostumada com isso.

Meu quarto estava a mesma zona desde que acordei hoje de manha para mais um dia chato na escola. Ainda conseguia escutar as panelas se chocando aqui de cima, não duraríamos muito com as mesmas panelas por muito tempo.

Sento-me em frente de minha escrivaninha e suspiro mais uma vez. Penso em minha mãe, assim como fazia muitas vezes desde que os dois se separaram. Não estava do mesmo jeito que meu pai, só não conseguia pensar em como minha mãe encontrara esse cara com quem jê estava namorando. Talvez a resposta fosse muito obvia, eu apenas não queria acreditar.

Apoio minha testa na mão e meus olhos param fixados na escrivaninha e logo encontra um caderno que não deveria estar ali.

“Como foi seu dia hoje?” Estava escrito com um pedaço de papel em cima do caderno verde. Reviro os olhos deixando meus braços caírem pesadamente em cima da mesa.

-Pai! –berro. –O que falamos sobre esses cadernos?!

-Obrigada Clove! –berra Marvel de volta. –Acabou de fazer seu irmão mais novo ser devorado por um bando de zumbis!

Ignoro-o e rasgo o bilhete em pedaços. “O Lado Escuro da Força”, esse era o nome que minha mãe havia dado a isso, meu pai ria com o nome, mas eu não. Não queria escrever, não queria escrever como ele. Ter um livro publicado não era o meu sonho, nunca foi. Talvez esse fosse o problema de ter um escritor famoso como pai.

Pego o caderno e jogo-o no fundo de meu armário junto com os outros. Nunca precisei comprar um caderno para a escola. Assim que fecho a porta do armário sinto a casa estremecer com o barulho de algo explodindo.

-Clove! –meu pai e Marvel gritam no mesmo segundo que o alarme de incêndio começa a tocar.

-Droga.

Corro em direção do andar de baixo aonde o cheiro de queimado era extremamente forte. Marvel e meu pai estavam abanando o fogão com panos de prato.

-Onde esta o extintor? –pergunto.

-Na garagem. –responde Marvel. –Vai rápido.

Corro mais rápido do que eu estava acostumada até a garagem e pego o extintor voltando depressa para a cozinha.

-Vai logo! –apressa Marvel.

Tento destravar.

-Como esse troço funciona?! –pergunto nervosa.

-Deixa que eu faço. –diz meu pai tirando o objeto de minha mão, e tenta destravar. –Como esse troço funciona?!

-Me da isso! –Marvel finalmente puxa o extintor de suas mãos e destravando o extintor com facilidade e o vapor branco atinge totalmente o fogão e o resto da cozinha.

Quando acaba ele joga o objeto no chão e nós ficamos paralisados olhando fixamente para a parede queimada.

-Então... –começa meu pai. –Quem quer pizza?

...

A pizza não demorou muito a chegar. Tentava manter a conversa fluindo na mesa. Não sei se Marvel estava mais bravo por nosso pai novamente ter quase botado fogo na casa ou o fato de ter perdido no videogame.

-Como foram na escola?

-Recebi o teste de historia. –responde Marvel.

-E como foi?

Ele fica em silencio e olha para sua pizza.

-Acho que não deveria ter comentado.

Papai suspira.

-E você Clove?

Recebi um dez em uma redação.

-Tirei sete no teste de física. –respondo apenas.

-Um sete? Hum legal. E... andou escrevendo mais alguma coisa?

Fecho os olhos com um suspiro.

-Eu não escrevo, pai.

-Um passarinho azul me disse que alguém tirou um dez na ultima redação na aula de literatura. –assobia Marvel.

Olho feio para ele e chuto sua canela por baixo da mesa.

-Serio? –pergunta meu pai curioso.

-Não. –minto. –Não fiz nenhuma produção, e não pretendo fazer.

-Sei... –ele ri e meu pai apenas nos observa com o olhar ansioso.

Termino de comer a pizza rápido, quase a empurrando garganta a baixo.

-Tenho que ir. –digo me levantando. –Tenho... uma prova amanha na primeira aula.

Antes que algum deles coseguisse falar alguma coisa eu já estava correndo escada a cima, entro no quarto e fecho a porta com força.

Não, eu não iria para o lado negro.