Rede de Mentiras escrita por Gaby Molina


Capítulo 3
Capítulo 3 - Colegas de andar


Notas iniciais do capítulo

R.I.P My Chemical Romance, sempre :(



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A drink for the horror that I'm in,

For the good guys, and the bad guys,

For the monsters that I've been.

Three cheers for tyranny,

Unapologetic apathy,

Cause there ain't no way that I'm coming back again.

— Sleep, My Chemical Romance

Fletcher

Clarissa já era pequena, mas parecia determinada a sumir, de tanto que se encolhia na cadeira de plástico. Sentava-se afastada das outras pessoas, provavelmente achando que ninguém perceberia, mas era evidente que ela olhava para todos ali como possíveis psicopatas que a matariam enquanto dormia.

— Como podem ver, temos uma nova colega — Cintia, que era responsável pelas sessões de terapia em grupo, apontou para Clarissa. — Qual o seu nome, querida?

— Clarissa York — ela murmurou, e eu não teria entendido se não soubesse o nome dela.

— Bem, sempre começamos a sessão falando sobre o nosso dia. Alguém tem algo a compartilhar? — Silêncio. — Ethan?

Ethan, que estava um pouco distraído, deu de ombros.

— Bem... Eu estou relendo O Sol É Para Todos, mesmo que não tenha gostado tanto da primeira vez. Ah, e conheci a Clarissa. É bom ter uma fã de Bukowski por aqui — ele sorriu.

Notei que Clarissa se encolheu ainda mais, mas estava corada. Engoli um riso. Tão previsível.

Eu estava inquieto. Não conseguia ficar parado naquela cadeira, e tudo o que queria fazer era me levantar e correr ao redor daquela sala repetidamente e sem nenhuma razão aparente.

— Fletcher? — Cintia me fitou, com seu tom de pacificadora. — Você está bem?

— Fantástico — resmunguei. — Fui jogado para fora da minha cama, vítima de uma tentativa de enforcamento, o frango do almoço estava salgado e eu estou com muito sono, mas não vou conseguir dormir se tentar agora.

— O frango estava ruim, mesmo — Clarke, uma garota de cabelo roxo com quem eu conversara poucas vezes, concordou.

Olhei em volta, me dando conta de algo.

— Cintia... Onde está a Elena? — franzi o cenho.

— Eu... não sei, Fletcher.

Clarissa

Fletcher pulou daquela cadeira tão rápido que eu me assustei. Sem tempo para respirar, correu para fora da sala.

— Ceeeerto... — Cintia continuou como se nada tivesse acontecido. — De onde você é, Clarissa?

— Londres.

— Ah, sim. E por que gosta tanto de Bukowski?

— É uma escrita sem rodeios, sem toda a utopia idiota dos livros de ficção.

— É claro — concordou ela, estritamente para ser gentil, pois seu olhar denunciava que ela não entendera nada do que eu dissera.

Eu estava esperando pelas perguntas constrangedoras, como "Quantas vezes você mentiu hoje?", ou referências "inocentes" a polígrafos.

— Aonde Fletcher foi? — perguntei, tentando sair do centro das atenções.

— Deve ter ido procurar a Elena — disse Ethan. Havia algo na voz dele que não identifiquei. — Cintia, já está escurecendo.

Dava para ver que ele tinha alguma influência ali, por ser um dos mais velhos. Cintia assentiu e nos dispensou para o jantar.

Ethan tocou em meu pulso e senti uma daquelas coisas Sparkianas.

— Vou ver se ela está bem. Quer vir junto?

— Elena? Por que ela não estaria?

— Hmmm... Eu não tenho certeza. São só... coisas que as pessoas falam. De qualquer forma, ela não gosta muito de mim.

— Por quê? — indaguei, porque Ethan parecia o tipo de cara que era legal com todo mundo.

A pergunta pareceu atormentá-lo.

— Eu não sei. Venha.

Corremos para a sala de jantar. Fletcher e Elena estavam sentados na ponta da mesa. Ethan me arrastou até lá e nos sentamos ao lado deles.

— Oi — Ethan abriu um leve sorriso para Elena que, por sua vez, apenas estreitou os olhos e continuou comendo. O rapaz se voltou para Fletcher. — Ela está legal?

— Posso responder por mim mesma se estou legal ou não, Blackery — Elena protestou.

— Aparentemente, não pode, já que está me ignorando — o tom de voz dele esfriou, mas então ele apenas soltou um suspiro e suavizou: — Você está bem, Elena?

— Estou ótima.

— Ah, estamos conversando agora?

— Não força, cara — Fletcher pediu, fitando-o.

Ethan revirou os olhos e foi buscar comida. Elena murmurou alguma coisa que não entendi e Fletcher riu, brincando com os dedos de uma das mãos dela. Comecei a me sentir deslocada e fui até a cozinha.

— Eles dois... Eles... — comecei, sem saber direito como formular a frase.

Ethan suspirou.

— Eu não sei. Eu realmente não sei — ele passou a mão direita pelo cabelo louro-escuro, bagunçando-o. — Mas acho que você vai acabar descobrindo, já que vai dormir lá. Mas não me conte, não sei se quero saber.

Ethan fitou Elena durante todo o jantar, ignorando Fletcher. Ele parecia esperar por qualquer pretexto para ser gentil com ela, sem se importar com as respostas frias que recebia. Podia estar tudo na minha cabeça, mas parecia que Ethan gostava dela. E não era pouco, não.

* * *

O banheiro era coletivo. Um por andar. Peguei meu pijama, minha toalha e meu sabonete e enfrentei a coisa. Eu estava imaginando que seria como um banheiro de albergue ou sei lá, mas na verdade não era tão ruim. Eu estava prestes a tirar a blusa quando Fletcher saiu de um dos boxes.

— Ah, oi Clarissa — Fletcher sorriu, enrolado em uma toalha da cintura para baixo. Ele afastou o cabelo escuro liso e molhado do rosto, levantando-o.

Tentei retrucar, mas minha voz não saiu. Em vez disso, ele continuou:

— Quando estou tomando banho, aproveito o sabão do shampoo para fazer penteados. Mas só dá para fazer moicanos ou coisa do tipo. Você também faz isso? Porque, quero dizer, seu cabelo é bem maior do que o meu, então dá para fazer muito mais penteados.

Agora eu estava totalmente sem palavras.

— O quê?! — balbuciei. — Eu... Não, eu não faço isso.

— Ah — ele pareceu um pouco decepcionado, como se eu fosse um talento desperdiçado.

— Você é meio psicopata, Kingston.

Ele sorriu.

— Só meio? — ele passou por mim, se aproximando da porta. — Então estou no lucro. Ei, vou tirar a toalha daqui a cinco segundos, então acho melhor você correr para o chuveiro.

Ele não precisou dizer duas vezes. Eu me tranquei na cabine. Ouvi a risada dele e seus passos se afastando. Imaginei o que a sra. Lover diria se visse Fletcher pelado no corredor, e não soube dizer se a ideia de ele trombar com ela me perturbou ou me fez sorrir.

* * *

Sentei-me em minha cama, penteando meu cabelo embaraçado. Elena suspirou e se aproximou:

— Não, não, não! Não puxe com tanta força, vai quebrar os fios.

— Nunca tive muita paciência para desembaraçar calmamente.

— Não é à toa que seu cabelo não tenha brilho — ela tomou a escova de mim e começou a pentear uma mecha de meu cabelo.

Fazia muito tempo desde que alguém penteara meu cabelo, a sensação era estranha. A porta se abriu e tudo o que ouvi depois disso foi:

— Ah, estamos brincando de cabeleireiro? Posso participar?

Elena riu um pouco.

— Dá o fora, Fletcher.

Fletcher ignorou-a, se jogando na própria cama.

— Vai ter que tirar seu salão de beleza de cima do colchão da novata, Ellie.

Ela parou de pentear meu cabelo. Eu não sabia dizer se havia terminado ou desistido.

— Droga, eu esqueci — disse, tirando seus estojos de maquiagem de cima do meu colchão. — Temos lençóis limpos em algum lugar... Fletcher?

Ele ergueu uma sobrancelha.

— Se estão aqui, não estão mais limpos. Já viu o estado deste lugar?

Elena suspirou.

— Maravilha. Vou ver se alguém tem sobrando...

— Não — enrubesci. — Deixa, eu vou. Não quero dar mais trabalho.

Fletcher pareceu se divertir com a ideia.

— Tudo bem, então. Boa sorte, Clarissa.

— Valeu — agradeci, sem saber por que ele falava aquilo o tempo todo, e saí do quarto. Bati na porta ao lado.

Uma garota de cabelo roxo e roupas pretas atendeu.

— Está perdida? — ela ergueu uma sobrancelha.

— Não, érrr... Eu só queria saber se você tem um lençol para me emprestar.

— Um lençol? — ela repetiu. — Eu tenho cara de ONG que sai espalhando comida e lençóis para necessitados?

Recuei.

— Eu... Eu não queria incomodar, eu só...

Ela deu mais um passo à frente e eu dei mais um passo para trás, acertando algo duro que, no caso, era o peitoral de Ethan Blackery.

Nenhuma reclamação.

— Opa — ele franziu o cenho. — Clarke já está te assustando, Clarissa?

— Eu não assusto ninguém — a garota, Clarke, retrucou.

— Claro que não, você é bem encantadora — Ethan falou isso de um modo tão gentil que até me convenci de que ele não estava sendo sarcástico. Ele se voltou para mim. — O que foi?

— Bem, acho que isso encerra este diálogo adorável — Clarke abriu um sorriso amarelo e bateu a porta.

— Um lençol — falei. — Vim tentar arranjar um lençol.

— Ah, tenho um sobrando lá no quarto. Vou pegar e já levo para você, está bem? — Ethan baixou os olhos verdes para olhar para mim.

— Seria ótimo — esbocei um sorriso.

Ele se afastou e eu voltei para o meu quarto. Elena e Fletcher riam de uma história com muitos nomes desconhecidos que não fiz questão de acompanhar.

Depois de alguns minutos, ouvimos uma batida na porta.

— Eu atendo — Elena cantarolou, se levantando.

— Deve ser só... — tentei impedir, mas ela já abrira a porta.

O humor deixou seu rosto completamente.

— O que você quer?!

Só vim entregar um lençol para a Clarissa — Ethan ergueu os braços, defensivo. Por que ela desgostava tanto dele, e por que ele parecia sentir exatamente o oposto em relação a ela?

— Novata — o tom dela era sério e censurador. — Você tem visita.

Levantei-me e caminhei até a porta. Elena me encarou por um momento, e então fingiu se ocupar em arrumar Deus sabe o que no quarto, apesar de estar evidente que ela estava apenas jogando a calça jeans de Fletcher em um canto diferente.

— Bem, aqui está — Ethan me entregou o lençol, um pouco constrangido.

— Obrigada — sorri. — É muito gentil da sua parte.

— Não foi nada — ele sorriu também. — Bem... Te vejo por aí.

— Até.

— Tchau, Fletcher. Tchau, Elena.

Elena bufou e Fletcher riu. Ethan acenou uma última vez e desapareceu pelo corredor.

— Argh, ele é tão irritante — Elena revirou os olhos e se voltou para mim. — Não é?

Antes que eu pudesse responder, Fletcher se intrometeu:

— Não acho que a novata concorde com você, Ellie.

Abracei o lençol, fazendo minha melhor cara de desentendida.

— Não sei o que quer dizer.

Ele ergueu o corpo, sentando-se na própria cama e falando em falsete:

Oh, obrigada, Ethan. É muito gentil da sua parte. Vamos cavalgar nossos cavalos no pôr-do-sol e nos casar ao amanhecer.

— Eu nunca disse isso — defendi-me.

Ele ergueu uma sobrancelha, cravando os olhos escuros em mim.

— Estava muito estampado na sua cara — ele se deitou novamente. — Aposto que ele não sabe que você é menor de idade.

— Eu não... — recuei. Não estava acostumada a pessoas questionando minhas mentiras. — Afinal, como você sequer...?

— Ele tem quanto, vinte e um? — Elena interviu. — Não é como se ele fosse um pedófilo de quarenta anos.

— Legalmente falando, ele é um pedófilo — Fletcher retrucou.

— Você tem dezoito. Legalmente falando, você também é.

— Eu não estou dormindo com a novata, estou? Então, se quer me prender, não vai ser por isso.

— Meu Deus, eu não estou dormindo com ninguém — interrompi, com certeza completamente corada. — Podem esquecer isso? Quero dormir. Sozinha.

— Dormir parece o paraíso, não é? — ele suspirou, afundando o rosto no travesseiro. — Boa noite, meninas.

— Boa noite, Fletch — disse Elena, se deitando também.

Estendi o lençol e um cobertor e permiti-me descansar os olhos por alguns minutos.

* * *

Acordei no meio da noite sentindo como se tivesse dormido por quinze horas e meu corpo simplesmente não conseguisse mais ficar jogado naquela cama, apesar de a falta de luz denunciar que não eram nem seis da manhã ainda.

Afastei meu cabelo do rosto e observei Elena dormindo pacificamente. Fletcher tinha cara de alguém que roncava, mas ele não estava roncando.

Isso provavelmente se dava ao fato de que ele não estava lá. Será que os psicopatas daquele lugar torturavam pessoas aleatórias de madrugada? Isso faria sentido.

— Elena — sussurrei, balançando-a o mais gentilmente que consegui. — Elena, o Fletcher sumiu. Acorda.

Logo havia um par de olhos azuis irritados cravados em mim.

— Me acordou para isso?

— Eu só... Quero dizer... — recuei.

— E, afinal, quem diabos é você?

Estreitei os olhos.

— Está brincando, certo? Não é engraçado. Eu sou nova, não sei se é costume dele ter aventuras noturnas por aí ou sei lá, mas eu só...

— É sério. Eu não sei quem você é, mas dê o fora do meu quarto.

— Mas...

Ela se levantou, agora completamente irada.

— Tem cada psicótico nesse lugar, puta merda! Vamos, fora.

Sendo dez centímetros mais alta que eu, ela me jogou para fora da cama e me arrastou até a porta. Eu sabia que acabaria sendo expulsa alguma hora, só não imaginava que seria na primeira noite.

Suspirei e me arrastei pelo corredor, sabendo que só havia uma pessoa que talvez me concedesse algumas respostas.


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