O Poder da Serpente escrita por Red Tulip


Capítulo 6
6. Coisas estranhas - Marcos


Notas iniciais do capítulo

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Abro os olhos de repente, encarando o teto. Estou ofegante, meu coração martela em meu peito, e o ritmo das batidas faz com que eu me lembre da rapidez das asas de um beija-flor. Tum-tum-tum-tum. Acelerado, forte, alto. Por pouco não consigo ouvir meus próprios pensamentos. Por alguns instantes, minha mente me engana e faz com que eu não saiba o que é sonho e o que é realidade. Respiro fundo por diversas vezes, ainda olhando para o teto, para que meu coração volte a bater em um ritmo normal. Inspiro, expiro. Inspiro, expiro. Estou transpirando, um pouco. A luz que entra pela janela é alaranjada, e percebo que o sol está se pondo. Inspiro, expiro. Inspiro, expiro. Devo ter dormido por volta de umas três horas, que é a média de tempo em que consigo dormir. Nunca passa muito disso. O sonho – pesadelo – ainda está muito vivo em minha cabeça, e é sempre o mesmo, todas as noites, desde quando eu era uma criança. Inspiro, expiro. Sempre começa calmamente, e então as imagens vão se tornando nítidas e intensas, cada vez mais insuportáveis. O pior é que são cenas em que eu realmente estive presente. Acontecimentos em que eu participei contra a minha vontade. Dos quais eu daria tudo para que estivessem longe de mim, para que fossem apagados. Inspiro, expiro. Quem me dera se isso fosse apenas uma imagem falsa da minha mente. Julgo-me um pouco melhor, e decido prestar atenção em qualquer outra coisa.

Olho para as paredes desse quarto, tentando calcular o número de tijolos com que foram erguidas. Meus pensamentos estão cheios de números, mas nenhum resultado parece me satisfazer. Qual é o tamanho dos tijolos usados? Quantos centímetros de cimento ligam os tijolos uns nos outros? Foram mesmo usados tijolos e outros materiais comuns de construção para levantar essa mansão? Suspiro, frustrado. De repente algumas das mais simples contas se dificultam devido à quantidade de fatores consideráveis. Irritado, eu olho a paisagem que a janela me mostra.

Uma brisa muitíssimo calma entra pela janela, e a imagem dourada ainda é meio que surpreendente até para uma pessoa bastante acostumada com uma vista assim. O dourado-alaranjado que parte do sol lança sua luz pelo chão, fazendo com que as cores fiquem brilhantes, de certa forma. Não sou muito bom em descrever cores, mas ainda assim é bonito. Poderia muito bem servir de inspiração para esses pintores antigos e famosos até hoje, se tivessem presenciado uma vista dessas. Mas a vida que pode ser vista dessa janela tem seu limite marcado pelo muro que percorre o território da mansão de Guepard. Tudo o que há na parte de dentro desses muros é uma explosão de vida e cor, exalando cheiros agradáveis e a sensação de paz, fazendo com que você relaxe e queira deitar na grama e ser banhado pela luz solar, se sentindo bem consigo mesmo. O que se encontra além do muro é resultado de ataques e destruição. Casas cinzentas, queimadas, lotadas de coisas destruídas, dando um ar assombrado nas ruas. Tantas pessoas que sofreram nessas casas, tanta gente morta por muito pouco, tanta coisa perdida, tanta história esquecida. É de conhecimento geral, pelos habitantes de Encantriz, que toda destruição foi e ainda é causada pelos monstros que por aqui andam, e por um inimigo maior, muito antigo. A Serpente.

Pelos meus olhos se passa a lembrança da primeira vez que vim aqui. Eu estava em uma das minhas primeiras missões, ainda muito novo, em busca de monstros. Era um tempo em que Morgana era muito mais aventureira do que bonequinha, e Jonathan tinha uma vida social considerável fora da biblioteca. Pelo menos naquele tempo ele saía de lá para fazer pesquisas. Hoje ele não faz mais isso.

A primeira pessoa que eu vi foi Doralice cuidando do jardim. Ninfas não aparentam a idade que têm, e sei que ela já viveu por bastante tempo. Mas ela tinha a mesma aparência de agora. Ela sorriu para nós e nos perguntou se estávamos atrás de um monstro – não me lembro de que tipo era. Quando nós assentimos, ela apontou o caminho, dizendo que o monstro havia pisado no jardim, assustado algumas pessoas e saído correndo, como quem brinca de esconde-esconde. Não era um monstro perigoso, mas monstro é monstro, e não se deve esperar que eles façam algo pior. Pelo menos não em Encatriz. Quando enfim voltamos depois de ter caçado tal monstro, exaustos, ela sorriu novamente, agradecendo por termos salvado a vida dela – nós éramos crianças agindo como super-heróis, foi muito legal da parte dela se fingir de vítima – e nos deu lanches, biscoitos e sucos refrescantes e maravilhosos como recompensa. Estávamos famintos, então foi um prêmio muito bom e satisfatório. Desde então, pelo menos com Doralice, sempre tive uma boa relação. Ela é uma ótima amiga. E essa é uma boa lembrança. Eu estava em um tempo bastante difícil. Havia acabado de chegar em Smok, e ninguém, muito menos ela, me julgou pelo que eu tinha feito. Todos haviam compreendido e me acolhido, como a grande família que são, mesmo sem ter o mesmo parentesco. Aquilo com certeza me distraía um pouco, mas nada realmente fez com que eu me esquecesse. Nada nunca fez com aquele dia terrível se apagasse da minha memória.

Estou depressivo demais, reconheço. Respiro fundo.

Cansado de olhar pela janela, viro-me para a garota que ainda dorme ao meu lado. Kiria está agarrada à bolsa de couro como se isso fosse um bichinho de pelúcia muito querido. Seu longo cabelo está desarrumado, e lhe cobre o rosto parcialmente, com suas ondas escuras. Sua expressão é quase totalmente tranquila, mas seu corpo está todo desalinhado, como se ela tivesse sido jogada na cama de qualquer jeito. Não faço nada, apenas fico sentado em minha cama olhando-a dormir, sua respiração calma, lenta. Ela se mexe muito pouco. Movimenta um pouco a mão, estremece um pouco, mas em todo o resto do tempo ela está imóvel como uma pedra, em um sono profundo.

Encontrar Kiria daquele jeito faz com que eu me sinta culpado, afinal eu não impedi a morte daquela mulher e impedi que Kiria fizesse alguma coisa. Mesmo não sendo seguro lutar com alguém da Serpente, e ainda desarmado. Não consigo me lembrar direito o que se passava na minha cabeça naquele momento, mas sei que eu não conseguia pensar em nenhuma estratégia rápida para o nosso “encontro” rápido. Kiria deixa no ar desse quarto toda essa sensação de sofrimento, de uma dor profunda, de tristeza. Antes de eu mesmo conseguir dormir, eu a ouvi chorando enquanto dormia, baixinho, sem ter consciência o suficiente para poder se controlar. E eu conheço algo parecido com o que ela se sente, pois eu já senti algo assim. Suspiro. Tudo o que ela não precisa é que alguém sofra junto com ela.

Ela viajou pelo mundo inteiro, e tudo o que eu sempre quis foi sair um pouco desse país. Sim, ela não viajou por aí por que quis, simplesmente o dever do trem em que ela morava era não deixar que as pessoas fiquem muito tempo em um lugar apenas, pelo risco de ataques e surtos de doença, que hoje em dia acontecem bastante em qualquer lugar. E eu amo Encantriz, mas eu já andei praticamente pelo país inteiro e nunca fui pro exterior. Sempre quis, sem nunca poder, ir para algum lugar fora daqui, para respirar um ar diferente e talvez, quem sabe, clarear a mente com alguma aventura nova, diferente.

Ela não teve uma vida boa, muito provavelmente. Assim como eu, perdeu os pais muito cedo, mas só teve uma pessoa em quem confiar, pelo que entendi. Enquanto eu me encontrava em uma nova família, conhecendo gente nova, construindo uma vida.

Tenho muitas perguntas para fazer, mas sei que ela não vai saber responder. Por que ela está sendo perseguida pela Serpente? Seria engano? Creio que não. O que há de tão interessante nessa garota para que um inimigo mortal para todos esteja atrás dela? Não importa o que seja – talvez importe, mas, como não sei o que é, deixemos isso na lista de coisas “sem importância” – mas tenho absoluta certeza de que não é coisa boa.

Eu não consegui contar a ela que o sangue de Melina destruiu o primeiro recipiente de vidro. Para algo que ficou horas e horas exposto, o sangue ainda estava bastante líquido, e algo próximo de quente. Isso, é claro, não acontece com pessoas normais, mas eu nunca vi isso acontecer. É frustrante ter que esperar chegar em Smok para poder entregar isso a Jonathan e agir. Essa dependência faz com que eu me sinta um inútil.

Eu já fiz bastante merda na minha vida. Eu sei que sou um merda. E Kiria parece ser uma garota toda certinha, e olhar para ela faz com que eu me sinta um merda mais inútil ainda, o que com certeza é pior. E não sei se é apenas imaginação minha, mas de repente parece que o quarto ficou mais quente, abafado, e eu não consigo respirar direito. Todas essas perguntas sem respostas parecem enforcar a minha garganta e direcionar a minha cabeça para a parede mais próxima, fazendo com que o quarto fique insuportável. Levanto-me e saio.

O andar em que estamos tem dois corredores, que se encontram em uma cruz. Estamos no corredor norte, e não sou especialista em detalhar mobílias, então fica por isso mesmo. Começo a andar.

Hoje no almoço, Guepard agiu de forma inesperada. Normalmente – e não sei o motivo – ninguém nunca quer saber sobre as garotas com quem eu me envolvo. Ele não pressionou muito a Kiria, reconheço. Mas eu vi o pedido de ajuda em seus olhos e a tensão em seu corpo. Eu notei a hesitação em suas palavras, ainda que fossem mínimas. Guepard é muito velho para notar essas coisas, e Doralice só dirigia parte de sua atenção à conversa na mesa. Mas Kiria se saiu muito bem para quem me conhece tão pouco.

O que eu contei a Guepard sobre os Caçadores Selvagens não é inteiramente mentira. Tudo estava calmo demais e eu precisava de adrenalina, eu precisava de agitação. Eu não consigo suportar quando as coisas ficam quietas por muito tempo.

Eu havia decidido andar por qualquer lugar, procurando alguma coisa para fazer, como eu sempre faço. E então passei perto dessa tribo, que já tinha um pouco de raiva de mim, pois eu dormi com a filha do líder deles, Prya. Confesso que provoquei um pouco, mas se todo pai viesse me fazer pagar pelo que fiz com suas respectivas filhas, eu já me encontraria morto há muito tempo, mesmo eu sendo um lutador incrível com uma força impressionante, a ponto de ser quase invencível. Se eles ao menos soubessem que essas garotas não são as santas que eles pensam, e que na verdade são elas que dão em cima de mim... Não que eu quisesse impedir.

E então eu estava perto dos trilhos, correndo deles apenas para que eles ficassem ainda mais irritados e tentando garantir uma boa luta, e o trem foi se aproximando... Chegando cada vez mais perto... E eu pulei dentro ainda correndo, e então todas as luzes se apagaram e houve uma explosão que, eu juro, não foi culpa minha. E naquela escuridão, eu fui andando tentando achar um bom abrigo, até entrar em uma cabine com uma garota que mais parecia um garoto, e então... Enfim. Tudo o resto aconteceu, e nem sei o que houve com os Caçadores.

Então me pego pensando no que teria acontecido se não tivesse encontrado com Kiria. Se eu tivesse entrado em qualquer outra cabine. É assustador e impensável. Paro de pensar nisso, pois aconteceu o que aconteceu e não há razão para pensar diferente.

Nunca acreditei nesse negócio de destino, de a história das pessoas ser escrito por uma força maior, como muitos dizem. Somos nós que fazemos nossa própria história, nossas próprias escolhas, pois somos seres humanos e nos gabamos muito de nosso livre-arbítrio para pensar em outra coisa.

No entanto, eu tenho ouvido muito ultimamente essa frase “Os tempos bons estão vindo”, e variações dela. Muito, nos últimos dias. Isso é algo que as pessoas vêm dizendo há milênios, desde a Grande Rainha Drinaia, para ter esperança de que o poder da Serpente acabe. Sempre se disse isso quando um potencial herdeiro da rainha mostrava sinais de que poderia recuperar o poder do dragão. Disseram isso umas três vezes, e nada aconteceu. Estão dizendo isso agora. Mas eu não consigo acreditar. Provavelmente é só uma promessa vazia. Mas eu não digo para as pessoas pararem de acreditar. É melhor acreditar em uma promessa vazia do que não acreditar em nada. Mas não vejo nenhuma salvação para mim.

Enquanto penso em tudo isso, estou andando pelo corredor e entrando de quarto em quarto, mexendo nas coisas. Os quartos estão mesmo ocupados, como Doralice havia dito. Malas e malas, e outros pertences mais, e sei que logo, logo haverá outra reunião de magos na mansão de Guepard. O mago é conhecido por realizar grandes feitiços com a ajuda de muitos outros magos. Isso é tão frequente que as pessoas já nem ligam tanto para isso. Sei que é errado mexer nos pertences dos outros, mas estou fazendo tudo isso sem pensar direito no que faço, e a curiosidade em saber o que há nas malas é mais forte que eu.

São roupas normais e roupas especiais para a prática de rituais. Encontro cartas e mais cartas e não me interesso por elas. Penas, tintas e rolos de papéis para serem preenchidos. Muitos livros com ilustrações estranhas, que reconheço como instruções para feitiços e artigos sobre o sobrenatural. Pós de coisas estranhas, ervas de vários tipos, pedras, flores e frutas secas, líquidos de muitas cores dos quais não me atrevo a cheirar para tentar descobrir do que raios são feitos. Vários artefatos que não sei nomear, estatuetas e várias outras coisas mais das quais meu estudo sobre magia não é aprofundado para que eu saiba. O que se aprende em Smok sobre magia e toda essa área de feiticeiros, bruxos, magos é apenas o básico para alguns casos.

No entanto, no meio de todas essas coisas normais que acredito que todo mago/feiticeiro/bruxo tenha, encontro certas coisas em que eu sei que fazem parte de rituais de invocação e magia negra, os dois proibidos em todo o mundo. São coisas como: ossos, órgãos de alguns animais, pele morta e veneno de cobra, velas negras, terra de cemitérios, símbolos negros, garras e unhas e outras coisas. Minha respiração acelera um pouco e recuo. Passados alguns instantes em que tento recuperar a normalidade em meus batimentos cardíacos, coloco tudo no lugar e saio do quarto.

Por que os colegas de Guepard teriam tudo isso? Isso é ilegal. O que eles farão com essas coisas? Será que é com isso que Doralice está preocupada?

Desço a escada lentamente, tentando não fazer barulho, e ando pela casa à procura de Doralice. Quero conversar com alguém, e Guepard não me parece uma boa opção. Estou já acostumado com a enormidade da mansão. Suas cores e seus símbolos já não me impressionam tanto. Não que eu venha aqui várias vezes. Mas creio que às vezes chega um momento na vida em que, de tanto ver coisas extravagantes, você acaba se acostumando a elas. É um pouco terrível saber que nada realmente me impressiona; saber que já espero que as coisas sejam estranhas. Isso faz com que eu fique um pouco estoico em relação a tudo.

Encontro Doralice em um quarto entre a cozinha e a lavanderia. Ele é cheio de tecidos, linhas de diferentes cores e texturas, cheio de objetos de costura. Ela está sentada no chão, distraída com todo o exterior, rodeada de roupas como se fosse uma ilha no meio do oceano, concentrada em uma peça de roupa bastante usada. Vejo seu olhar focado em conseguir costurar pontos mínimos. A língua está pra fora, de concentração, e não acho que ela se dê conta disso. Não quero atrapalhá-la, mas logo ela me vê, e sai do transe.

“Olá”, diz ela. “Pensei que estivesse dormindo”.

“E estava. Mas não consegui dormir por muito tempo e quis me mexer, andar por aí. O que está fazendo?”, pergunto.

“Hum, consertando as roupas de Kiria. Eu sei que quando ela chegar em Smok tudo isso vai ser inútil ao chegar perto de Morgana. Mas sei lá, só quero fazer alguma coisa por vocês, em gratidão”.

“Você sabe que realmente não precisa fazer nada disso. Não deve nada a ninguém. E também já passou da hora de você sair daqui, e você sabe que Smok sempre terá as portas abertas para os amigos”, eu digo. “E eu não quero pressionar nem nada... Mas o que Guepard anda fazendo?”.

Ela para de respirar por alguns segundos. Olha para qualquer canto, menos para mim. No meio de todas essas cores, sua pele parece ainda mais pálida, e por consequência seus cabelos ficam ainda mais escuros. Ela sempre foi gentil para todos, mas sempre foi triste ver que ela se escondia na sombra do pai, aparentando não saber o quão especial e incrível ela é. Ela não é o tipo de pessoa que tem medo das coisas, mas me parte o coração e me deixa extremamente preocupado ver o quão assustada ela está. Ela sempre foi minha amiga, e junto com Jonathan, foi uma das poucas pessoas que nunca me julgou pelo que sou, pela merda que eu me tornei. Ela é uma dessas pessoas que sempre vê o melhor nos outros, e sempre a admirei por conta disso.

“Você sabe que pode me contar. Eu sei que é errado, mas eu olhei nos pertences desses colegas de Guepard. Sei que você não vai me denunciar”, acrescento, quando ela me olha assustada e quase acusadoramente. “Quando dei por mim eu já estava fuçando nas malas. Doralice, eu vi coisas ilegais ali. Coisas para invocações e magia negra. Você pode me explicar o que está acontecendo?”.

Ela respira fundo algumas vezes antes de poder me responder, e ainda assim quando o faz não é olhando diretamente para mim. “Olha, eu te juro que não entendo de verdade o que está acontecendo. Mas há algumas semanas, uma pessoa veio aqui e ameaçou o meu pai por motivos que eu não entendi muito bem. Disse que se ele não fizesse tal coisa, ele iria morrer. Desde então, ele tem andado bastante estranho. Distante, amargo. E tem feito muitas reuniões envolvendo magia negra. Eu não entendo o que está acontecendo, mas eu não suporto mais permanecer aqui enquanto ele mexe com essas coisas. Não aguento vê-lo cedendo a essas ameaças, ele que sempre foi esperto e soube fugir dessas coisas, não sei por qual motivo ele está fazendo isso, e tenho medo de que isso me afete. Tenho medo de que isso me machuque, de que tenha consequências horríveis, e sei que haverá, pois é esse o destino de quem lida com essas coisas. Marcos, eu realmente não aguento mais viver aqui, e sei que, sozinha, eu não vou poder ajudar meu pai. Mas não aguento, não consigo suportar.”

Seu tom é de pura súplica, e de repente sinto-me como se eu fosse incapaz de fazer alguma coisa para ajudar, alguma coisa para reverter essa situação de algum jeito.

“E então vamos simplesmente partir, e seu pai não fará nada?”, pergunto.

“Esse é o plano. Ele não pode me segurar aqui, de qualquer jeito. Sou um espírito livre”, diz ela. “Quando vocês pretendem sair?”.

“Perto da meia-noite, talvez. É menos perigoso sair de noite, ainda mais com a Kiria, que muito provavelmente não sabe se defender e não sabe com o que estará lidando”.

“Tudo bem”, ela responde. Passados alguns instantes em silêncio, em que ela volta a se concentrar na roupa, sei que o assunto já acabou. E então ela se volta para mim, novamente, e pergunta, já com outro tom: “Vocês não estão namorando de verdade, estão?”.

Respiro e consigo até rir um pouco, sentindo um peso sair de minhas costas, aliviado. “Não, não. Foi tudo tão óbvio assim? Que eu e Kiria não estamos namorando e tal?”.

“Não. Vocês disfarçaram bem. Mas eu te conheço bem e sei que você não é assim com seus romances. Por que estavam fingindo?”.

“Eu não queria que Guepard prestasse atenção nela. Queria de algum jeito desviar a atenção, mas acabou dando errado, e não entendo o motivo. Kiria está em perigo, e tenho que saber o motivo. Achei que pudesse protegê-la até que eu soubesse de algo. No entanto, nunca realmente entendi a razão de ninguém ligar para quem eu namoro”.

Ela ri. “Vamos combinar, Marcos. Você não namora ninguém. Você passa a noite com essas meninas atiradas. E a cada hora está com alguma diferente. Você não espera de verdade que as pessoas se deem o trabalho de decorar vários nomes e se importar com cada uma que aparece, sendo que no próximo minuto ela pode não estar mais com você”.

“Ei!”, protesto. Mas estou rindo também. É uma verdade cruel a ser jogada na minha cara. Talvez seja isso o pior: ela tem toda razão. Eu nunca fui de me apegar a alguém. Nunca fui sincero sobre meus sentimentos com essas garotas, e elas também nunca se envolveram comigo em busca de algo sério. Foi apenas diversão, com todas elas, e sei que isso faz com que eu seja um merda. Sempre esperei que ir dormir de bom humor pudesse me garantir uma boa noite de sono, sem pesadelos. Nunca deu certo.

Quando olho para a janela daquele quartinho, vejo que o sol se pôs completamente, e que as estrelas estão lutando para garantir seu brilho em meio à escuridão da noite. Em pouco tempo, estarei a caminho de Smok. Estarei voltando para casa.

Suspiro. “Vou subir. Tenho coisas a arrumar, e vou ver se consigo descansar mais um pouco”.

“Tudo bem. Vou continuar a arrumar aqui, e depois vou resolver algumas coisas”.

Inclino a cabeça, concordando, e deixo o quarto. Subo novamente as escadas e caminho pelo corredor. Quando eu me aproximo do quarto em que dormi, ouço alguns murmúrios. Chego na entrada da porta e vejo Kiria dormindo, mas está se debatendo, chorando e gemendo, como se estivesse com dor. Ao seu lado encontra-se Guepard, sentado na cama, com uma expressão preocupada e ao mesmo tempo calma. Ele está murmurando canções de ninar e palavras de conforto para tentar fazer com que ela se acalme. Ele para quando percebe a minha presença. Guepard me encara por alguns segundos, me avaliando. E diz: “Você não deveria deixá-la sozinha durante os pesadelos”. Seu tom é grave, acusador. Com isso, ele sai do quarto e desaparece no corredor.

Ando rapidamente até a cama de Kiria, e a avalio, verificando se Guepard fez algo com ela. Afasto o cabelo de seu rosto molhado por lágrimas recentes, sento-me ao seu lado e seguro sua mão. Queria poder entrar no seu sonho e espantar qualquer coisa que a esteja assustando, algo que eu não consigo fazer em meus próprios pesadelos. Ela murmura coisas que não compreendo e geme mais um pouco, reclamando, se sentindo incomodada. Respiro fundo, tentando pensar em algo que faça com que ela pare de se debater.

Lembro-me de uma vez em que Jonathan dissera ter lido em algum lugar que o ronronar de um felino acalma as pessoas. Eu já vi felinos o suficiente para saber que isso acalma, de certa forma.

Olho para Kiria. Ela aperta a minha mão, como se também pedisse minha ajuda.

Inspiro, expiro.


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