O Poder da Serpente escrita por Red Tulip


Capítulo 4
4. Lembranças




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Sozinha no banheiro, fico encarando a porta fechada por alguns segundos. Depois olho para a banheira, grande e branca, com água até a metade, quente, muito quente. O vapor se solta da água sem parar, cobrindo o chão à sua volta, esquentando também o ar. Imagino a que temperatura a água deve estar, e se minha pele realmente suporta.

Deixo minhas antigas camadas e camadas de roupas juntinhas em um canto, como se fossem peles velhas, e entro com o meu corpo pequeno, pálido e frágil naquela imensidão de água e porcelana. A mudança repentina de temperatura me dá vontade de me contorcer, mas mantenho-me firme e suporto em silêncio. Minha pele começa a formigar com o calor, e me acostumo a isso.

Minha mente começa a viajar pelos meus pensamentos e lembranças. Lembro novamente de meus pais, aquele dia horrível. Não me recordo de tudo, nem de detalhes, nem de como começou o dia. Mas sei que eu estava brincando de boneca com Melina, na sala, no andar de baixo, e meus pais estavam fazendo pesquisas no andar de cima. Eles viviam fazendo pesquisas, lembro-me agora de plantas e vidros cheios de elementos químicos, mas não me deixavam saber sobre o que pesquisavam. Sempre diziam “É muito complexo para a sua idade, Kiria, quando você crescer vai entender”, ou então “É secreto, contamos para você quando chegar a hora”. Era sempre para eu esperar, esperar e esperar, e nunca me respondiam. E naquele dia estavam pesquisando. Então, assim como hoje de noite – ontem, sei lá – as luzes se apagaram de repente.

Melina virou-se para mim, de olhos bem abertos. Ela parecia saber o que estava acontecendo, assim como sabia de alguma coisa dessa vez. Ela parecia saber, e nunca perguntei. Não sei por que nunca perguntei. Melina disse “Esconda-se debaixo daquela mesa. Depressa! Esconda-se, e fique em silêncio”.

Tento me livrar desse pensamento, não quero reviver isso. Coloco a cabeça debaixo da água, e olho para o teto, com a visão turva. Penso que vai funcionar. Não funciona.

Na sala havia muitas mesas, mas eu sabia qual que ela se referia. E, mesmo se eu errasse, ela estava lá, indicando o caminho, se escondendo comigo. O espaço era pequeno, debaixo da mesa. Mas cobria a maior parte do nosso corpo e, encostadas na parede, encolhemos nossos pés.

Ouvi meus pais gritando palavras que até hoje nunca consegui decifrar, e dor. Eu ouvi a dor, eu senti a dor pelo ar. E silêncio. E então passos. Passos descendo a escada, até a sala. Melina me cutucou, e eu olhei para ela. Ela levantou um dedo aos lábios, pedindo que eu fizesse silêncio. Percebi que estava com a respiração acelerada, barulhenta, e tentei ficar quieta. E o som dos passos foi aumentando enquanto alguém descia a escada. Duas pessoas, eu soube na hora.

Passos, e passos e passos. Eles chegaram à sala. Então veio o terrível: soltaram algo pesado com um baque surdo no chão, que veio rolando, rolando, rolando... E parou nos pés da mesa em que eu estava: a cabeça de meus pais. Descontrolei-me.

Melina cobriu minha boca com uma das mãos, impedindo-me de gritar. As duas pessoas andaram pela sala, talvez procurando algo. Ainda em choque, encolhi ainda mais as minhas pernas.

“Nada”, disse um deles, depois de um tempo. Um homem.

“Então deixem queimar”, disse o outro, também um homem.

E a cabeça do meu pai pegou fogo. E a cabeça da minha mãe pegou fogo. Na minha frente. Eu tremia.

E minhas mãos tremem também agora, lembrando. Levanto a cabeça e inspiro profundamente.

Depois que Melina teve certeza de que eles já haviam saído, me puxou para outro canto, e nos levantamos. Eu tossia pela fumaça que o fogo tinha feito. Eu tossia de puro medo.

“A gente tem que fugir daqui, Kiria. Nós temos que ir embora, agora, e deixar tudo para trás. Acabou, isso aqui vai queimar completamente em pouco tempo”. Olhei para trás. A mesa em que estávamos ardia em chamas, assim como tudo o que estava perto. E o fogo andava, e andava, e deslizava, e dançava, na nossa direção.

Eu não tinha outra coisa para responder. Simplesmente não havia outra resposta. Eu não tinha outro familiar, nem sequer um amigo para me ajudar. Fomos para a estação, e pegamos o trem. O trem em que me senti desconfortável e solitária por tanto tempo. Sempre o mesmo trem. Foi onde não houve mais histórias marcantes na minha vida. Pelo menos, não até horas atrás. Algo estranho nisso tudo: nem lembro a rua, cidade, país que morava. Esse tipo de informação minha mente apaga. Vai entender.

Eu queria permanecer na banheira. A água estava boa e finalmente, depois de tantos outros banhos rápidos e não tão benfeitos, me senti limpa de verdade. Mas eu não podia abusar da hospitalidade, e a vida tinha que continuar. E a água já estava cheia dos meus pensamentos e lembranças ruins.

Enrolo-me na toalha. Ao todo, não demorei muito no banho. Dez minutos seriam o máximo de tempo gasto ali.

Ouço duas batidas tímidas na porta, e quando a abro um pouco, não vejo ninguém. Mas vejo roupas muito bem dobradas no chão. Pego e visto. Olho-me no espelho depois de pentear o cabelo úmido, e me espanto. Estou diferente. Sinto-me diferente. Não é pela calça jeans tecnicamente nova, ou a camiseta quente de mangas compridas, não é o colete de couro preto nem a bota que fazem com que eu me sinta diferente, apesar de eu nunca ter usado roupas tão boas e bonitas assim. É algo que eu não consigo explicar. Desvio o olhar do espelho e faço uma trança no cabelo, caindo úmido pelo ombro direito. Antes de passar pela porta, outro pensamento me ocorre. Uma lembrança, que agora me pergunto como não pensei nisso antes.

Quando eu e Melina tínhamos saído de minha casa e estávamos indo na direção da estação, eu olhei para trás, uma última vez. A casa irrompeu em chamas de imediato, e pareceu queimar ainda mais enquanto eu olhava, quase tropeçando. No alto, junto com a fumaça negra, lá estava.

Um símbolo. Um símbolo igual ao da espada. O símbolo que assassinou Melina.


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Notas finais do capítulo

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