O Poder da Serpente escrita por Red Tulip


Capítulo 1
Capítulo 1 - Adeus


Notas iniciais do capítulo

A história de Kiria começa aqui. Um trem que percorre o mundo, num tempo futuro, distante.
Leia. Se gostar, comente. Se não, comente também. Toda sugestão é bem vinda. Sinta-se livre para dizer o que quiser e dar ideias, se quiser.
Qualquer pergunta rápida, aqui estou: @BerryTully - Twitter.
(Não darei spoilers!)



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Olho para a janela e vejo a chuva batendo sem piedade no vidro. Está de noite, e a lâmpada da cabine pisca sem parar. Sempre piscou.

Minhas costas doem de ficar tanto tempo sentada, então me levanto. Tantos anos vivendo nesse trem fez com que eu me equilibrasse com os solavancos sem precisar pensar em fazê-lo. Porque sim, eu vivo em um trem. Um enorme trem, com dezenas e dezenas de imensos vagões que percorre pelo mundo.

Saio da cabine que me serve de quarto e sala, e caminho pelo corredor. O corredor é extenso. O piso é de madeira envernizada, mas sem qualquer tipo de forro. Dos dois lados há varias cabines com muitas pessoas. Assim como eu, essas pessoas optaram por morar em uma casa andante. Mas não sei se houve uma outra opção, devido aos ataques que ocorrem até hoje em quase todas as cidades, de todos os estados, países e continentes. Não se sabe o motivo desses ataques, mas é sempre assim: primeiro coisas estranhas começam a acontecer, depois vem a doença que é fatal, e depois vêm os ataques.

E o trem nos ajuda a fugir de tais coisas.

Está muito, mas muito frio, e mesmo vestida com várias camadas de roupas eu sinto o ar gelado percorrendo minha pele. Um arrepio corre pelos meus braços e estremeço, tentando me livrar dessa sensação.

Não vou muito longe. Ando só até a porta que separa o meu vagão dos outros e volto. Eu nunca pisei no vagão seguinte. Nunca falei com as pessoas que vivem nos outros vagões. Nunca saí do meu. Melina me proíbe, diz que isso é pela minha proteção. Ela tem medo de que algo aconteça comigo se eu for para muito longe da minha cabine. Tem medo de que eu me misture com pessoas um pouco mais ricas ou extremamente mais ricas e que isso cause alguma consequência. Diz que “gente rica é gente doida”, e teme que algo possa acontecer comigo.

Sempre obedeci às ordens de Melina. Vivo nesse trem desde os seis anos, por dois terços de minha existência, e sempre segui exatamente o que ela diz. Ela sempre está certa, afinal. Ou é assim que parece ser.

Melina é a pessoa que cuida de mim. Não tenho pai nem mãe, pois eles foram vítimas dos ataques, e desde então Melina me trata como se eu fosse uma filha para ela. Mas não com amor e carinho exagerados, pois ela diz que – e eu concordo – isso estraga as pessoas. Deixa-as fracas.

Aliás, não sei por onde ela se meteu. Às vezes ela sai para tratar de assuntos pessoais. Mas eu não ligo muito. Logo ela volta.

Na volta para minha cabine, dois garotos pequenos passam correndo por mim, brincando de pega-pega, e quase me derrubam. Mas consigo me manter firme. Eles também moram aqui – afinal, todas as pessoas que andam pelo trem moram aqui – e já se acostumaram há muito tempo com o movimento constante do veículo.

Entro novamente em minha cabine e me entrego aos livros didáticos que Melina sempre conseguiu arranjar para mim. Eu nunca frequentei uma escola – pois não vejo como poderia ter uma em um trem - , por isso aprendi tudo o que sei com os muitos livros que Melina trouxe.

Mas esses não são os únicos livros que ela conseguiu para mim. Tenho muitos de poesias, curiosidades e histórias variadas. E sou apaixonada por todos eles, mas eu prefiro os de poesia – embora minhas próprias rimas não sejam lá grande coisa – e os contos que falam sobre dragões.

Seria estranho uma garota gostar tanto de dragões? Eu não acho. Mas há alguma coisa nesses répteis imensos que me atrai tanto, mas eu não consigo explicar.

Paro de me distrair em meus pensamentos quando ouço três batidas rápidas na porta de correr da cabine, e sei que é Melina. Ela entra sorrindo, segurando um pequeno bolinho com uma vela acesa.

“Quem é que está fazendo aniversário hoje?”, diz ela.

Abro um pequeno sorriso. Hoje completo dezoito anos.

Ela canta parabéns para mim, da forma rapidinha que ela sempre faz, e eu assopro a vela, desejando que um dia esses ataques terminem, que a gente arranje uma boa quantia de dinheiro e que tenhamos uma casa cheia de comida, roupas e conforto. E dividimos o bolo.

Fico feliz pelo bolinho. Pode parecer pequeno e insignificante comparado à comida de pessoas com uma melhor posição econômica que nós, mas há dias que nem temos o que comer. Só essa pequena forma de carinho me dá vontade de chorar.

Não vá pensando que há comida distribuída pelos vagões do trem. Não, isso é um luxo que só as pessoas ricas, que vivem lá na frente, têm. Eles não ligam para nós. Poderíamos morrer aqui que ninguém iria se importar. Com certeza Melina conseguiu roubar isso lá da cozinha.

Quando os meus pais morreram, não me deixaram nenhuma herança. E a minha casa, onde eu tinha muitas roupas, brinquedos e comida, tudo isso foi queimado, antes de eu vir para cá. Então eu não tenho muita coisa. Melina já cuidava de mim naquela época. Ela sempre cuidou de mim.

Às vezes eu penso que devo ser um fardo para Melina. Ela tem uns trinta anos, e sempre foi bonita. Eu nunca a vi metida em algum caso romântico, e fico me perguntando se isso tudo não é culpa minha.

“Eu não ligo pra esse tipo de coisa, Kiria. Meu dever é cuidar de você” dissera ela uma vez, quando eu perguntei por que ela nunca arranjava um namorado.

Eu mesma nunca namorei. Nunca cheguei nem perto disso. Nunca olhei para algum menino com interesse romântico. Até por que todos os garotos que eu conheci ou que conheço me fazem querer nunca tê-los visto na vida. Me concentro apenas em meus estudos e minhas leituras.

Não sei se algum menino já me achou bonita. Mas também nunca me esforcei para que assim fosse. Há meninas de mais ou menos a minha idade nas outras cabines, e por mais que elas sejam até um pouco legais, são todas fúteis. Tão fúteis quanto o que podemos ser.

“Eu tenho um presente para você, Kiria. Tenho esperado esses anos todos pelo momento certo pra passar isso para você. Sua mãe me entregou uma vez, e disse para eu te entregar quando estivesse pronta”.

Ela vai até o fundo da cabine – que não é muito grande, mas também não muito pequena – e abre uma de nossas malas. Tudo o que temos de roupas, que recebemos de doações ou que Melina conseguira nas rápidas paradas que o trem dava em cidades não infectadas, ocupam duas malas cheias, uma para mim e outra para ela. De lá ela tira uma pequena caixa e volta.

A caixa é toda aveludada, da cor vermelha, com traços circulares em dourado. Quando ela deposita aquilo em minhas mãos, sinto que o seu conteúdo irradia uma espécie de calor confortante, mas ao mesmo tempo é fria.

“O que é isso?”, pergunto.

“Lembra-se de todas aquelas histórias que eu te contei sobre dragões?”, diz ela.

“Sim”, respondo. “Adoro aquela dos três líderes”.

“Sim, essa mesmo. Ela é real”.

“Como assim?”.

A história era essa: aparentemente, há milhões de anos atrás, havia três pessoas com poderes mágicos. Drinaia, que tinha o sangue do dragão e podia cuspir fogo. Klaus, com o sangue do tigre e a força de mil homens. E Turah, tão venenoso e sábio e ágil quanto uma serpente, da qual tinha o mesmo sangue.

Os três eram incrivelmente poderosos, e ajudavam o povo a combater os terríveis monstros que atacavam o reino, por mais que Turah não ficava muito contente, visto que ele gostava de Drinaia, mas esta já estava envolvida fortemente com Klaus.

Quando o rei daquele povo estava muito doente, quase morrendo, ele passou o governo nas mãos de Drinaia, que era a mais firme dos três, já que o próprio não tinha herdeiros. Quando ele morreu e ela se tornou a rainha, se casou com Klaus, e os dois reinaram por anos e anos, e os monstros foram todos derrotados, e todos os exércitos de outros reinos que os atacavam mudaram de ideia por livre e espontânea pressão. O rei e a rainha eram muito justos e bondosos, mas Turah nunca ficou feliz com isso. Na verdade, ele não gostava realmente de Drinaia, e sim do poder que ela tinha, muito maior que o seu ou o de Klaus. E tramou contra ela.

Ele matou todos os dragões de todos os reinos, enfraquecendo a rainha. Ela então, não encontrando outro jeito de manter seu poder, pegou o único ovo de dragão que sobrou, o congelou, e depositou ali todo o seu poder. E depois o escondeu com seu filho – pois ela e Klaus já tinham um – e este, não conseguindo libertar o poder, foi passando de geração em geração para que alguém conseguisse fazer renascer o último dragão e assim reconquistar o poder. Drinaia e Klaus acabaram morrendo por um golpe de Turah, mas sem nunca deixar de se amar ou deixar de ajudar o seu povo.

O que eu mais gosto é justamente o fim: Drinaia e Klaus ficaram juntos, tanto na vida quanto na morte, e nunca deixaram de se importar com o reino.

“A história é real”, Melina repete. “Por muito tempo o ovo do dragão esteve perdido, sabe-se lá na mão de quem. Mas seus pais conseguiram achá-lo, e morreram por conta disso”.

“Eles não morreram por causa dos ataques?”.

“De certa forma, sim”. Melina começa a ficar agitada com uma expressão um tanto esperançosa. “Olhe o conteúdo”.

Eu abro a caixa, e vejo uma coisa que certamente me encantou. Uma pedra ovalada, mais ou menos do tamanho de minha mão, com as mesmas cores e detalhes da caixa. A pedra emite uma luz própria. Quando eu a toco, uma energia passa de minha mão por todo o meu corpo, em um calor confortante.

“Sente algo de diferente?”, diz ela.

“S-sim... Ela é quente...”, gaguejo.

“Sim! Sim!”, ela grita. “Depois de todos esses anos de pesquisa, finalmente! Kiria, você é...”, ela é interrompida por um barulho de explosão. E, de repente, todas as luzes se apagam.

A cabine está completamente escura, exceto pela pequena luz emitida pela pedra. E é por essa luz que eu vejo que o sorriso de Melina desaparece.

“O que está acontecendo?”, pergunto.

“Silêncio”.

Eu a obedeço. Melina caminha silenciosamente como um gato até a porta de correr, e devagar encosta-se nela, tentando ouvir o que acontece lá fora.

Sinto um arrepio percorrer por meu corpo, e o calor da pedra já não faz mais efeito. O frio é subitamente dominante, congelante, e vejo a janela se embaçar e o ar condensar, criando pequenas nuvens quando respiramos.

“Melina?”.

Ela olha para mim, alarmada. “Guarde essa pedra com você, somente com você, sempre. Não deixe que ninguém a veja. Vou ver o que aconteceu e já volto. Não deixe ninguém entrar, está ouvindo?”, mas ela não espera por minha resposta e sai.

Tenho ainda muitas dúvidas sobre a pedra, mas que são sufocadas rapidamente. É melhor esperar pela volta de Melina.

Guardo a pedra no bolso de um dos meus casacos – estou gordinha por vestir tantos de uma vez – e me encolho no banco, com um medo que toma conta de mim.

É muito raro ocorrer um apagão no trem, mesmo nas partes mais pobres. E por isso fico assustada. Parada nessa posição fetal, noto que o trem também parou de andar.

No meio da estrada, longe de qualquer civilização... Isso nunca aconteceu.

Dez minutos se passam em extremo silêncio. Vinte. Ouço um grito ao longe, e não consigo definir se a voz é masculina ou feminina. Melina está demorando muito. Tenho medo de abrir a porta da cabine e descobrir por minha conta o que está acontecendo.

Então escuto o barulho de passos. Mas não é o som de quem anda simplesmente, e sim de quem corre desesperadamente por cima de madeira. E três batidas rápidas na porta, mas mais barulhentas do que o toque de Melina. Como a cortina da janelinha da porta está fechada, não consigo definir exatamente quem é. Eu me levanto, hesitante.

As batidas se repetem. A pessoa do lado de fora está com pressa. Vou até a porta e toco a maçaneta.

“Melina? É você?”, digo baixinho, mas claro o bastante para que a pessoa do outro lado da porta entenda. Mas não obtenho resposta.

Ainda em dúvida, abro a porta devagar, com a mão tremendo, e sou empurrada para trás, mas não com muita força.

“Qual é o seu problema, cara? É surdo ou o quê? Bati nessa merda duas vezes!”. A voz é rude, impaciente. Mesmo não conseguindo decifrar seus contornos, vejo que é um menino um pouco maior do que eu. Menino... A palavra certa seria rapaz.

“Quem é vo...”, mas não consigo terminar a frase.

“Shhhhh. Silêncio”.

Ele chuta a porta com força para que ela se feche, anda até atrás de mim e tampa minha boca com a mão. Tento me debater, me libertar, mas sou reprimida e presa por sua outra mão. Ele é forte, muito forte, mas parece estar tentando com muito esforço não me machucar. O rapaz se aproxima do meu ouvido e diz, baixinho: “Nem tente bancar o espertinho em tentar me chutar. Você não vai querer testar a minha força e ganhar um osso quebrado, vai?”.

Não consigo responder – é claro -, mas mesmo que conseguisse, eu nunca o faria. Automaticamente decido que não gosto dele.

“A situação é o seguinte, cara: eu irritei uma pá de gente por aí e eles estão querendo me pegar pra me deixar roxo e fazer pedacinhos de mim. Não necessariamente nessa ordem. E se você me entregar, se falar alguma coisa, eu percorro os sete infernos pra te atormentar, está ouvindo?”.

Ele me solta, e fico quieta.

“Quem é você?”, sussurro.

O rapaz caminha até a porta e se encosta nela, o mesmo gesto que Melina tinha feito. Depois olha para mim e sorri.

“Marcos. E o seu nome? Não que eu vá ficar aqui por muito tempo”.

“Kiria”.

“Isso não é nome de homem, eu acho”.

“Talvez seja porque eu não sou um homem”.

Marcos me olha de cima a baixo e balança a cabeça.

“Conheço mais do que deveria o corpo de uma garota. Acredite, você não é uma”. Mais um instante de silêncio, do qual eu não sei nem o que responder, e ele pergunta: “Você está esperando alguém?”.

“S...”, e novamente eu não consigo terminar uma frase, pois escutamos um grito – muito provavelmente vindo do início do vagão – e Marcos me empurra para o pequeno banheiro da cabine, tampando minha boca de novo com as mãos e olhando pela fresta da porta – ou tentando ver, já que eu mesma não conseguia enxergar um palmo à minha frente.

Ninguém bate na porta, mas ela se abre bruscamente, quase quebrando. Sei que é Melina quem entrou, pelo tom claro de seu cabelo, mas Marcos não me deixa ir atendê-la, pois logo depois outra pessoa entra de forma brusca no ambiente.

Percebo que Melina está nervosa, cansada e com medo pela sua respiração. O outro indivíduo apenas se mistura na escuridão.

“Onde está?”, ele grita, com uma voz tão áspera que sinto algo arranhando os meus ouvidos.

Ela olha pelo ambiente, e depois de volta para ele, também gritando: “Eu não vou dizer. Você não vai acha-la. Nem que me mate antes”.

Algo brilha em meio ao breu, e vejo que é uma longa lâmina de uma espada. Não há grito, não há nada. É uma questão de segundos para que a espada se crave em seu peito, e Melina cai no chão, sem vida. Seu rosto está virado em minha direção, como se soubesse que eu estou escondida aqui. O assassino desaparece, deixando a maldita lâmina ali.

Todos os meus sentidos travam. Eu não consigo encontrar minha voz. Apenas o frio me invade. Melina está morta.

Passados alguns instantes sem qualquer tipo de movimento – Marcos e eu mal respiramos -, ele me leva para fora do banheiro, deixando-me de frente com o corpo de Melina.

Começo a tremer sem parar, e as lágrimas caem de meus olhos como cachoeiras. E grito.

“Ela era sua mãe?”, Marcos pergunta, calmamente.

Não respondo, apenas grito. Grito e começo a bater nele com toda a minha força.

Ele me segurou quando Melina precisava de ajuda. Ela estava ali, nervosa e com medo, e eu não pude ajudar.

Já não sei nem mais o que pensar. Meus gritos são mais uns ganidos. Marcos me deixa bater nele, sem revidar. E de repente paro, sem conseguir fazer nada além de chorar.

Ele olha fixamente para o corpo no chão. Uma poça de sangue está aumentando por debaixo do corpo dela. E então ele simplesmente puxa a lâmina do peito de Melina, como se tirasse a faca de um pão.

“Kiria, olha que estranho...”.

Marcos me estende a espada, e me encolho em cima de um dos bancos, tentando ir o mais longe possível.

“Você é louco? Tire isso de perto de mim!”, grito.

“Apenas olhe. Tem uma marca nessa espada, um símbolo. E eu já vi isso em algum outro lugar antes”.

Olho rapidamente para onde ele aponta. O cheiro do sangue está começando a me deixar tonta. O tal símbolo é uma serpente enrolada em uma espada e uma lança, juntando-as com um nó.

Tenho vontade de vomitar, e recomeço a chorar. Marcos me avalia.

“Temos que sair daqui. E, sim, estou incluindo você”, diz ele.

“Você não estava preocupado em te encontrarem?”.

“Que se danem aquela gente. Pegue as suas coisas e venha”.

Ele se vira e abre a porta da cabine.

“Espere”, peço. Ele volta.

“O que foi?”.

“Não podemos deixar o corpo de Melina assim. Temos que enterrá-la. Ou então o espírito dela vai ficar preso”.

“Você não acredita mesmo nessas merdas, não é? O que vai ser depois? Colocar moedas sobre os olhos para ela poder viajar no barco de Caronte?”.

Mas ele apenas bufa, enrola o corpo de Melina no tapete de tamanho médio e retangular para não ir sujando o caminho, e a carrega pra fora da cabine.

Tento fazer o máximo de silêncio que posso, mas não consigo parar de chorar tão facilmente. De repente, Marcos para de andar, e quase esbarro nele por acidente.

“Está silencioso”, ele diz. “Silencioso demais. O que as outras pessoas estão fazendo?”.

Ele se aproxima da janela, e eu vou logo atrás. Encostamos nossos rostos no vidro da janela de uma cabine. Pela pouca luz que entra no ambiente, é possível ver que as pessoas lá dentro estão dormindo. Olho dentro de outra cabine e vejo a mesma cena. E mais uma vez, e outra, e outra, e outra...

“Não é possível que todos estejam dormindo”, eu digo. “Ninguém estava dormindo quando a luz acabou. Nem ao menos fazendo silêncio”.

“Eu não acho que eles estão dormindo porque querem. E nem que a luz tenha acabado por acaso”, diz Marcos, numa voz sombria.

Fico instantaneamente arrepiada.

“O que você acha que aconteceu?”, pergunto.

“Nada de bom. Por que sua mãe morreu? Por que apenas nós estamos acordados? Nada de bom mesmo”.

“Ela não era minha mãe”.

Era. Já me refiro à Melina no passado. Me seguro para não chorar novamente, agora que estou conseguindo me controlar lentamente.

“Que seja. É melhor a gente sair logo daqui, antes que algo aconteça. E não fale muito alto”.

Não demoramos muito para chegar até o fim do corredor, abrir uma porta que nos separa de outro vagão e sentir o frio da neve na parte de fora do trem. Vendo os trilhos fumegantes abaixo de nós, pulamos para o chão gelado e úmido, que molha minha meia e congela meus ossos. Mesmo assim, nos afastamos rapidamente do trem, que subitamente volta a se movimentar.

Olho para o trem, onde morei por tantos anos. Doze, para ser exata.

“Para onde você está me levando?”, pergunto. Minha voz sai fraca.

Ele respira fundo. “Vamos enterrar a moça aqui”, diz, “e depois seguiremos para a Mansão Smok”.

“Por que eu iria com você?”.

“Você tem uma opção melhor? Não, claro que não. Quem quer que tenha matado sua mãe – e nem tente protestar, dane-se se ela é sua mãe ou não –, estava procurando algo. Não se lembra? E se alguém souber que ela cuidava de você, é óbvio que vai te procurar. É assim que as coisas funcionam. Eu já vi aquela maldita marca em algum lugar; eu não sei o seu significado, ou não lembro, mas não é coisa boa. Você vai me seguir e ponto final.”

Sinto a pedra/ovo em meu bolso pesar quando ele cita que o assassino está procurando por algo. Mas ignoro. Depois, mais tarde, eu iria procurar o motivo de tudo isso.

Nós seguimos em silêncio por alguns passos. Onde fica os trilhos do trem que percorre o mundo é uma clareira, mas logo entramos no meio das árvores. Aqui há menos neve. As árvores são juntas, e mal deixam a luz entrar.

Marcos para e se agacha, depositando o corpo com cuidado no chão.

“Vamos enterrá-la aqui”, diz ele. Olha para mim por alguns instantes e começa a cavar. Agacho-me também e tento ajuda-lo, mas ele me impede, tocando em minha mão. “Não”. Seu toque é quente e causa um choque, mas que passa quase despercebido. “Eu faço isso, não se preocupe”.

Apesar da noite, é somente pela luz da lua consigo ver o que o breu de antes não deixava. Marcos tem um rosto meio felino, maluco, com um sorriso divertido gravado. Mas sua expressão é dura, séria. Olhos aparentemente verdes, cabelo castanho bagunçado como se tivesse acabado de acordar. Está usando um óculos de piloto de avião em cima da cabeça. Veste um colete de pele – tigre? Leão? – por cima de uma camiseta vermelha, e uma calça jeans rasgada em várias partes, e tênis esportivo. O relevo dos músculos de seus braços marcam a camiseta.

Desvio rapidamente o olhar. Presto atenção em qualquer coisa, menos nele. Mas o silêncio – não só nosso como de tudo ao redor – é mortal e irritante. Até que Marcos esfrega as mãos.

“Pronto. Enterrada. Vamos.”

“Espere”, peço. Ele me olha de forma questionadora enquanto eu me levanto e procuro... Procuro por algo... Uma flor. Sim, sim, uma flor. Eu a colho e volto. Coloco a flor por cima de onde Melina está enterrada, pondo um pouco de terra sobre o cabo, para não sair voando. Inclino-me mais um pouco e encosto o rosto na terra, meio deitada. E choro baixinho por uns minutos, me despedindo, e lembrando de todos os momentos que estive com Melina. Cada descoberta, cada momento divertido. Todos, todos, todos. Até Marcos encostar gentilmente no meu ombro, avisando que tínhamos que ir, pois ele ouvira uns sons suspeitos não tão distante. Levanto-me sem hesitar. E voltamos a andar.

Adeus, Melina.


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