A Dama da Névoa escrita por Karina Saori


Capítulo 17
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Notas iniciais do capítulo

Não demorei tanto dessa veeeez o/ ahuahuhauha Boa leitura!



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Acordei pingando suor. Sentei na cama enquanto secava a testa com a manga da blusa e todo sonho que tive essa noite passou novamente em minha mente, me forçando a fechar os olhos e tentar pensar em outra coisa. Era impossível. Aquelas cenas horrendas grudaram em meu consciente. Mas houve algo de diferente... Em todos os sonhos, eu estava surpreendentemente consciente, o que sempre me incomodou por torná-lo mais real. Mas dessa vez, eu não pensava. Aquela mente não era minha.

Olhei para o relógio e marcava 12:03. Troquei rapidamente de roupa e desci para sala. Dona Virgínia estava na cozinha, preparando o almoço — Boa tarde, desculpa acordar tão tarde e a senhora estar fazendo o almoço...

— Boa tarde, querida, não precisa se preocupar com isso, você precisava descansar. Está com fome?

— Não muito... Aliás, dona Virgínia, como está a minha tia?

— Bom... — suspirou, largando o fogão e sentando-se à mesa — continua a mesma. Não progrediu nem regrediu desde ontem.

— Dona Virgínia... Eu sei o que pode ter acontecido ontem.

— Sabe?! Como assim?

— Eu tive um sonho. Nesse sonho, eu era meu tio e vi o que aconteceu.

— Mas se foi só um sonho...

— Meus sonhos, ultimamente, dizem muitas coisas — ri com o canto da boca, apesar de não gostar disso.

Sentei na cadeira à sua frente. Apoiei os cotovelos na mesa que nos separava e lhe expliquei brevemente o frequente cenário que havia nos meus sonhos: começava sempre no breu total e, na maioria das vezes, eu estava em uma casa a qual era desconhecida, mas nostálgica. Tomei fôlego, enchendo os pulmões de coragem e comecei a contar a história que vivi nesse último sonho.

— Quando percebi estar em um sonho, eu andava sem rumo em meio à escuridão e não conseguia parar; meu corpo não obedecia. Uma cena se iluminou em minha frente e, pela primeira vez, era a minha própria casa. Mas, estranhamente, as coisas estavam mais baixas, como se eu estivesse em um lugar mais alto...

"Eu estava no andar de cima. Ao descer as escadas, percebi que aquele corpo não era meu... As pernas estavam longas demais, cobertas por uma calça marrom desbotada que meu tio sempre usava. Olhei para as mãos que deveriam ser minhas e descobri dedos finos e compridos, com pêlos nas costas das mãos. De fato, era meu tio.

"Terminei de descer as escadas, encontrando minha tia e seu Lorenzo na sala. Mal olhei para eles, não me pergunte o porquê. Fui diretamente para a cozinha e comecei a observar ela ao todo, como se procurasse algo. Abri uma gaveta, duas, três... Até abrir a quarta e encontrar cinco facas grandes. Passei a mão entre elas e peguei a maior. Conseguia ver o reflexo do rosto de meu tio na lâmina da faca... Sua expressão era indiferente e seus olhos não demonstravam vida.

"Coloquei o braço para trás, escondendo a faca de cozinha. Vi minha tia me observando e perguntando se estava tudo bem, que eu estava com o rosto pálido. Não respondi. Sentei-me ao lado dela e com uma calma assustadora, passei a faca em sua barriga, fazendo-a gritar no mesmo instante. Sua voz inundada de desespero me deu... prazer. Seu Lorenzo levantou e perguntou desesperadamente o que eu estava fazendo. Dirigi-me até ele e tentei perfurá-lo, mas o mesmo segurou meu braço e fez com que eu deixasse a faca cair. Subiu um sentimento de raiva pavoroso. Nunca havia sentido nada assim, com exceção de dona Mercedes. Segurei o pescoço de seu Lorenzo com uma mão e o ergui aproximadamente um palmo do chão, sendo que ele era mais alto que o meu tio. Senti que eu sorria ao vê-lo se debatendo, tentando afrouxar a minha mão que apertava sua traqueia. Joguei-o com força contra a parede que dividia a sala da cozinha. Aproximei-me dele, segurei sua cabeça com as duas mãos e o girei bruscamente no sentido contrário, fazendo seu corpo cair no chão de imediato. Segurei-o pelo pé e o arrastei, junto com minha tia, até o quintal dos fundos.

"Insatisfeita, peguei de volta a faca e a afundei diversas vezes na carne já sem vida de seu Lorenzo. Ri descontroladamente. Gargalhei como Elizabeth e isso provocou um frio que percorreu a espinha. Ri tanto que a voz nem saía mais, mas sentia a boca sendo aberta gradativamente, até sentir a queimação nos cantos da boca, como se ela estivesse sendo rasgada. E em um segundo, minha visão distorceu em um giro e meus olhos encontraram com a escuridão. Acordei.”

Dona Virgínia só me olhava, perplexa.

— Será… Será que aconteceu isso mesmo? Mas não entendi o porquê de Benjamin fazer isso!

— Não foi exatamente ele, dona Virgínia…

— Como assim? E espera… Quem é Elizabeth...?

Droga. Esqueci que eu não havia contado à ninguém de fora a não ser Rafael. Contei à ela superficialmente, inventando algumas partes para não me aprofundar no assunto. Disse que era uma mulher espectral que passou a atormentar meus sonhos ultimamente.

Em uma reação inesperada, dona Virgínia se tornou pensativa, olhando para o chão aflitivamente. Não é possível… Ela também…

— ...Conhece alguém com esse nome?

— Sim, conheço, mas é um nome bem comum.

— E onde ela está agora? Ainda é viva? A senhora tem contato com ela?

— Fiquei fora da cidade um tempo e, depois de poucos dias depois que voltei, me disseram que ela e o marido haviam falecido, mas não sei a causa. Mas não vejo motivos para ela te “assombrar”.

Ao dizer “assombrar”, sua voz soou um tanto quanto irônica. Evitei fazer mais perguntas sobre, porque ficou evidente que dona Virgínia não crê nessas coisas.

— Se não estou enganada, esse tempo que você ficou fora da cidade foi a época em que meus pais e… sua filha e genro faleceram, não foi?

— Isso mesmo... Mas fiquei sabendo do falecimento de Elizabeth depois disso. Quando soube do acidente, voltei correndo para Sandbolt. Não lembro quanto tempo depois, mas Elizabeth veio a falecer no mesmo ano, supostamente.

Não consigo ver conexão dessa Elizabeth com a espectral Elizabeth. Mas não posso descartar nada, porque não tenho informação alguma.

— Bom, vamos esquecer essa história, não é? Fui boba em acreditar em um sonho... Minha imaginação está bem fértil ultimamente — ri forçadamente. Ela me respondeu com uma risada, quase gargalhada. Era evidente que ela achava mais viável ser coisa da minha cabeça.

Liguei para seu Osmar e Rafael para que viessem almoçar em casa. Minutos depois, a campainha tocou; Rafael estava com a sua jaqueta jeans surrada e o cabelo despenteado ao lado do seu Osmar com um sorriso piedoso para mim. Cumprimentei-os e logo arrastei o menino para o meu quarto, para lhe contar sobre o meu sonho.

— Ei, isso já não é demais? Primeiro foi com você, agora com o seu tio... Mas dessa vez, foram duas tragédias, quase três contando com sua tia. Não deveríamos fazer alguma coisa? — Rafael falava enquanto tirava a jaqueta e deitava na minha cama. Menino folgado.

— Acha que não estou com medo?! Três pessoas morreram por causa disso. Por minha causa. Mas o que poderíamos fazer? Seu Lorenzo está... — repentinamente, lembrei da minha colega de classe — Camila!

— O que que tem a Camila? Como ela poderia nos ajudar?

Expliquei rapidamente que a encontrei no mercado e o que ela disse. Rafael sentou na cama, assustado, e ficou encarando por cima dos meus ombros, esperando ver algo. Eu não tinha reparado, mas a dor havia sumido. Por causa do choque de chegar em casa e ver aquela cena horrenda, esqueci completamente desse peso nos ombros.

— Agora me pergunto... Era Elizabeth, mesmo?

— Quem mais poderia ser, Lina? Não era uma sombra escura?

— Camila não disse nada sobre isso... Apenas que era uma sombra. Como Elizabeth estaria comigo enquanto acontecia tudo aquilo?

— Talvez alguém que quisesse te avisar que algo aconteceria? Não... Isso é muito vago. Mas quem seria? Beatriz? Sua mãe?

Ficamos quietos, pensando. Era uma possibilidade a considerar, mas era muito abstrata.

Nossos pensamentos foram quebrados quando ouvimos o chamado de dona Virgínia para descer para o almoço. Depois de comermos sob um silêncio intenso, seu Osmar disse que iria embora e pedi para que Rafael ficasse e dormisse em casa.

A noite caiu mais fria do que ontem. Rafael ficou no quarto que era da minha prima, a mesma que seu Lorenzo ficou, ao lado da minha. Nos despedimos com "boa noite, qualquer coisa me chama" e eu finalmente deixei o chão gelado para a minha cama que logo ficou confortavelmente quente.

Algum tempo depois, senti que eu não estava acordada e nem dormindo. Estava com dificuldade de me mexer, mas sentia toda atmosfera do meu quarto ao redor. Achei que estava dormindo até ouvir uma tosse de fumante vinda de dona Virgínia no quarto da minha tia. Abri os olhos e encontrei o quarto parcialmente iluminado pela luz da lua que invadia através da janela. Apenas fechei os olhos novamente, tentando dormir, até que um barulho me chamou atenção. Não sei bem o que era, mas era um ruído.

Olhei o máximo que o meu campo de visão permitia, porque nem ao menos a cabeça eu conseguia mexer. Não vi nada; nada nas paredes, nada no teto e nem no final da cama. Suspirei de alívio e fechei os olhos, que se arregalaram novamente com o mesmo barulho. Parecia uma unha raspando no vidro. Havia duas janelas; a que eu conseguia enxergar estava vazia. A outra, minha cabeça começou a latejar de tanto que forcei para olhá-la; estava longe demais e a cortina aglomerada na lateral dificultava ainda mais.

O ruído irritante não parava. Cada vez mais, o vidro estava sendo arranhado, só não me causou mais arrepio quando ouvi aquela gargalhada. Arenosa e enferrujada, parecia rir mais alto do que o normal, de fato debochando de mim.

Chamei desesperadamente por Rafael. Não saía nada da minha boca, eu ao menos conseguia mexê-la, mas gritei mentalmente como se ele pudesse me ouvir.

— Se eu fosse você, pequena Lina, eu não o chamaria...

Sua voz rasgante sussurrou em meu ouvido. Eu não conseguia vê-la, mas sentia seu hálito de enxofre e sua presença gélida ao meu lado.

"O que você quer dizer com isso?" pensei. Como se pudesse me ouvir, me respondeu com uma risada.

— Pense, Lina. Todos os seus entes queridos... Onde estão agora? O que está acontecendo com as pessoas ao seu redor? — riu — Eu acho que é óbvio.

O sangue subiu pela cabeça, assim como o medo que embrulhou meu estômago. Tentava me mexer a qualquer custo, sair correndo daquele quarto e mandar Rafael, seu Osmar e dona Virgínia irem embora imediatamente e nunca mais voltarem. Não tem problema se me odiassem depois disso, eu só queria que eles... vivessem.

Nessa tentativa de libertar-me de meu próprio corpo, meu braço se moveu bruscamente e derrubou o abajur do criado-mudo, fragmentando-se no chão. Minutos depois, vi a luz do corredor pela fresta embaixo da porta. Passos se dirigiram apressadamente até meu quarto e bateram na porta.

— Lina, tá tudo bem aí?

Gritei mentalmente para que não entrasse, mas era inútil. Vi a maçaneta girar e Elizabeth gargalhava cada vez mais alto. A cada pulsar acelerado do meu coração, a risada se tornava ainda mais insuportável.

"Não entre, não entre, não entre". Repetia ininterruptamente como se fosse simples usar o psicológico para parar a ação de outra pessoa.

A maçaneta girou completamente. Um fio da luz do corredor expandiu-se conforme a abertura da porta. A silhueta de Rafael apareceu contra a luz, receoso de entrar em meu quarto.

— Lina, ouvi um barulho... Tudo bem?

A risada parou. Olhei ao redor, mas não a vi em canto algum. Rafael aproximou-se de mim e me chacoalhou cuidadosamente pelo ombro. Eu sentia como se estivesse de olhos abertos, mas na verdade eu não estava.

Ainda procurando pelo quarto todo, um vulto negro apareceu repentinamente nas costas de Rafael.

Elizabeth.

Um frio cravou em minha espinha e, como um reflexo, levantei e o abracei. Olhando às suas costas, a mulher espectral havia sumido. Aliviada, abracei Rafael com mais força.

— Ei, Lina... — afastou-se para olhar para mim. Ao me ver com o rosto banhado em lágrimas, acariciou minha bochecha e me encarou seriamente.

— Eu pensei que... Pensei que você ia morrer — solucei em meio ao choro.

Rafael secou minha bochecha com o polegar e selou brevemente seus lábios aos meus.

— Não sei porque esta dizendo isso, mas eu não vou morrer até você estar bem. E mesmo depois disso, eu continuarei tentando te proteger até ver que está de fato segura.

Suas palavras não me confortaram. Não queria que ele morresse e muito menos sentisse a obrigação de me proteger.

Afastei-me um passo para trás — Rafael, não. Vá embora, por favor. Nem você e nem ninguém estará seguro comig-

— Eu te amo.


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