Identidade Homicida escrita por ninoka


Capítulo 76
O verdadeiro desejo de Agatha [Agatha]


Notas iniciais do capítulo

oiii amores da tia. Como estão? Prepara a pipoca pois mais um capítulo de flashback da tia Agatha depois de tanto tempo, tentando deixar mais visualmente entendível tudo que rolou nessa vid4 l0ka da falecida Agatha Cotton.................. um bjo e boa leitura!



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[Agatha] 

Meus olhos lutavam contra a claridade incômoda da manhã, me exigindo uma força de vontade fenomenal para conseguir desgrudar inteiramente as pálpebras uma da outra. No processo pude ver o borrão da silhueta do doutor à minha esquerda, verificando a bolsa de soro posta ao lado da maca. 

— Está melhor hoje, senhorita Cotton? — ele se virou para mim enquanto os traços do mundo real criavam mais nitidez. 

Não consegui elaborar nenhuma resposta. Minhas memórias pareciam confusas, como cera derretendo. 

— Minha boca tá seca. — falei enquanto passava a língua em torno dos lábios.  

— É o efeito do sedativo, Agatha. — o doutor sorria, como se conversasse com uma criança. — Coloquei uma pequena dose no seu soro pra que dormisse bem tranquila.

Olhei ao meu entorno -- a sala excessivamente branca e limpa, com cheiro intenso de antisséptico. Quanto tempo tinha se passado? Dois meses? Seis? Observei meus braços abaixo de mim, magros e pálidos, presos àquela grosseira mangueira por onde passavam os nutrientes do soro. 

Abri minhas mãos e encarei as palmas; era quase como se eu conseguisse ver o sangue escorrendo por elas e sujando meu lençol. Aquelas mãos carregavam o pecado e a morte; aquelas mãos tinham tirado Christopher de mim completamente. 

Tremi e esfreguei as palmas uma na outra, como se aquilo fosse afastar a pequena alucinação.  

Em muitos momentos constatei que perdi Chris três vezes. A primeira, foi quando ele sucumbiu à loucura. A segunda, foi quando atirei na sua testa. E a terceira foi quando nosso bebê morreu. 

Os esforços físicos, a alimentação, os sustos, as quedas, e todo outro tipo de situação anormal… era certo que a rotina que eu levava no jogo não era nada adequada para alguém que carregava outra vida dentro de si. Como consequência, a vida que tanto lutei pra manter tinha se esvaído de dentro de mim. 

A angústia da culpa me sufocava todos os dias, porque eu não conseguia me desfazer da ideia de que o próprio bebê preferiu rejeitar sua vida à germinar no corpo de uma assassina e viver um destino amaldiçoado tal qual deveria ser. 

Afinal, os Cotton são amaldiçoados. Mamãe sempre disse isso. 

— A enfermeira Lizzy já vem trazer sua refeição. — o doutor deu outro sorriso. — Trate de comer bem, ok? Senão vai continuar desmaiando no banho. 

Embora bastante nítida a sua voz, eu não conseguia respondê-lo. Alguma força muito maior tinha se apoderado do meu corpo, paralisando os meus músculos e todos os meus ânimos.

Reclinada na maca, largada como uma boneca de pano abandonada por uma criança que já se cansou de brincar, movi apenas os olhos em sua direção; o que já servia como uma espécie de afirmação. 

O doutor se retirou, e eu mergulhei novamente no meu caos mental… Não só perdi Christopher e o único laço que ainda poderíamos ter mantido em comum; como também perdi junto todas aquelas fantasias que tinha de poder construir uma vida junto dele. Perdi minha formatura; assim como também perdi todas as oportunidades de viver meus dramas adolescentes, meus ciúmes, minhas noites de bebedeira e tantas loucuras para contar futuramente com um sorriso no rosto. Todas, todas as lembranças que a Agatha sonhadora poderia ter construído, agora não eram nada mais que delírios torturantes.

E eu me perguntava, mais uma vez, sempre incessantemente, se ser uma Cotton e ter consciência do meu destino não fosse a variável que tornava os meus sonhos tão… impossíveis e amaldiçoados?

A porta do leito se abriu. A enfermeira Lizzy entrou com uma bandeja.

— Bom dia, Agathazinha! — Lizzy era quase uma cinquentona, meio rechonchuda, sempre usava seus cabelos longos presos num coque, sem qualquer tipo de incômodo em mostrar sua raíz grisalha, cada vez mais aparente. 

Meus ânimos novamente não me permitiam responder.

Ela apoiou a bandeja num móvel e foi em direção a um dos cantos da sala para apanhar o apoio de colo.  

— Acho que vai gostar. — dizia, de costas para mim, o coque meio-grisalho me encarando. — É purê de batata com cenoura. Parece uma delícia… o suco também… 

A enfermeira continuou com seu monólogo enquanto o coque, firme no topo da sua cabeça, exercia uma atração hipnótica sobre mim. Era quase como um ser-vivo, e fazia ondulações no ar enquanto Lizzy minimamente mexia sua cabeça conforme o movimento. O coque começou a me trazer uma perturbação horrível, porque parecia remexer, lá no fundo da minha mente, algo que precisava ser esquecido e apagado. 

Lizzy se virou para mim segurando o apoio; mas ela não era mais Lizzy. A enfermeira de coque tinha se transformado agora em outra figura familiar. 

Ela era Shermansky. 

Shermansky vinha em minha direção. 

Naquele momento, todo o ar denso e vegetativo que me envolvia simplesmente sumiu. Tive um pico de adrenalina e fui completamente dominada pelos meus instintos:

— Vai embora! Saia! — tremia e chorava, apavorada, furiosa, enquanto me retraía para trás, querendo ser engolida pela parede. 

Shermansky travou alguns passos adiante, atordoada. 

— O-o que foi, Agathazinha?! 

— Não! Não! — colocava a mão contra os ouvidos; as memórias vinham como uma onda gigante, me partindo no meio. — Eu te odeio! Eu te odeio! Diabo! Assassina! 

Lancei o travesseiro e os lençóis em sua direção e corri para onde estava a bandeja com a comida, apanhando o garfo de metal e apontando na sua direção: 

— E-eu vou te matar, sua velha maldita! — minha mão, minha boca e meu coração tremiam. 

Em pequenos, quase instantâneos flashes de lucidez, eu via a imagem da enfermeira Lizzy me encarando há alguns metros, paralisada, provavelmente tão apavorada quanto eu. Quando esses pequenos flashes se tornaram mais estáveis e a figura de Shermansky pareceu evaporar, abriram a porta do leito violentamente. 

Cai de joelhos no chão. O doutor e mais outra enfermeira entraram com urgência. A enfermeira foi prestar auxílio à Lizzy, que foi levada para fora do leito com uma expressão bastante abatida. Vi a figura imponente do doutor acima de mim, ele dizia algo, mas sua voz foi abafada pelos meus pensamentos. Me senti como uma criança mal-criada levando sermão do seu pai. 

Mas eu não era uma criança, pensei quando encarava novamente minhas mãos, deixando o garfo cair de entre os meus dedos, eu era um monstro.



Durante muito tempo fui atormentada por todo tipo de sonho, voz e alucinação que pudesse me remeter àqueles tempos sombrios dentro de Sweet Amoris. Por muitas vezes tive de ser sedada e anestesiada por tranquilizantes, antidepressivos e tantos outros tipo de droga que possa imaginar. 

Haviam sessões de terapia também, individuais e em grupo. Dosando os remédios e trabalhando o que era possível, as dores foram se amenizando. Mas, obviamente não era tão simples assim. Eu tinha matado pessoas; mesmo que ninguém soubesse disso. Eu tinha vivido o inferno na Terra e matado a pessoa que eu mais amei. E esses eram fardos impossíveis de serem aliviados, porque não há como apagar os próprios pecados. 

Foram intermináveis cinco anos até receber a tão esperada alta.  

Era uma tarde de inverno rigoroso. As ruas e os telhados das casas estavam todos cobertos pela neve. Estava ali, com meus vinte e três anos já. Estava na calçada esperando o táxi, com as mãos enluvadas dentro do sobretudo bege, observando o céu branco acima de mim.

Tirei a boina e senti o vento gelado levantando meus cabelos. Inspirei o ar puro profundamente e abri um largo sorriso… depois de tanto tempo.    

Carregava uma mochila nas costas, com os pertences que tinham sido enviados para mim por Agnólia; alguns antigos, outros que fui recebendo ao longo dos anos, roupas, produtos de higiene, cosméticos -- enfim, tudo o que eu me certificaria de jogar no lixo posteriormente. 

Havia também um presente. Um presente que tinha recebido pouco tempo depois de ser internada. Um colar relicário. 

Veio dentro de um envelope. Jackelino, um dos meus únicos verdadeiros amigos, quem tinha me enviado. Era um presente lindo, e me emocionava saber que ele nunca tinha me esquecido. “Por todo o nosso tempo juntos”, era o que vinha grafado dentro, acompanhado de uma minúscula fotografia nossa, de quando éramos dois pirralhinhos. Eu nunca cheguei a agradecê-lo. Também nunca me senti confortável com a ideia de contatá-lo; nem ele, nem Faraize. 

Na realidade, achava que não poderia encará-los nunca mais. Eu não era mais a Agatha que eles conheciam, afinal. Se eu os visse, teria que fingir algo que não me pertencia mais -- seria como enganá-los. Além do mais, embora nos conhecêssemos desde mais novos, os dois foram um ponto central dos meus momentos em Sweet Amoris. Qualquer interação poderia me transportar de volta a tudo aquilo que eu estava decidida a apagar das minhas memórias para sempre.  

Mas, talvez você se pergunte sobre a Agnólia? Minha querida irmã, meu reflexo sem defeitos. 

O táxi partiria diretamente para sua casa. Agnólia tinha cedido -- como sempre -- muito carinhosamente para que eu me mantivesse lá o tempo necessário para encontrar um lugar interessante para morar.

Periodicamente, quando as coisas não estavam tão fora de controle, era permitido que familiares realizassem visitas na clínica. Mamãe nunca sequer me telefonou; ela ainda estava muito abalada com a morte do Papai anos antes e provavelmente não ficava nem um pouco surpresa em ver sua prole-Cotton naquela situação. Quando surgia a oportunidade, portanto, Agnólia quem vinha me visitar; trazia presentes, doces caseiros e notícias sobre o mundo lá fora. 

Ela se formou logo quando as “reformas” do colégio foram concluídas. Em poucos meses arranjou um emprego e começou a se esforçar nos estudos para tentar ingressar em uma Universidade. Sua vida parecia nos eixos -- Agnólia logo, logo decolaria. Até que Mamãe também se foi, porque a depressão tinha transformado-a num vegetal; e embora minha irmã tivesse sido profundamente abalada por isso, pouco me importei, para ser sincera. Afinal, nossa única herança ficou sendo apenas uma casa velha -- que acabou sendo leiloada -- e um Carma maldito.   

Uma vez recebi um telefonema de Agnólia. Estava em prantos, desesperada:

— Atrasou… Eu fui comprar o teste… Meu deus, Agatha, eu estou grávida!

Fiquei pálida. Mantive alguns segundos em silêncio, apenas processando aquela informação. 

— Lúcio e eu nem somos casados! Meu Deus! E a minha faculdade?!

Senti um gosto amargo na boca. Maldita. Ela sabia a merda que estava falando? Só alguém com uma vida tão fácil poderia dizer tudo aquilo sem sentir um único remorso. Sim, Agnólia e sua vidinha fácil e colorida. Era muito fácil falar. Tudo pra ela era fácil.   

Mas, ela não sabia a verdade sobre Christopher, tão pouco que eu tinha perdido uma criança. Eu sabia que minha raiva partia da inveja que, no fundo, sempre senti da Agnólia. Então inspirei fundo, me acalmei, e respondi, com o riso mais forçado e sujo que eu poderia ter tentado expressar alguma vez na minha vida:

Ei, relaxa, mana! Eu sempre quis ser tia!

E enquanto minha mente ainda devaneava acerca da neve e do céu branco, o táxi parou no meio-fio. 




Não conhecia meu cunhado ainda, exceto pelos comentários breves de Agnólia. Sabia que tinham se conhecido no trabalho; sabia também que Lúcio era um rapaz “bacana”, calmo, e que ambos tinham algumas semelhanças em suas visões de mundo. 

Ah, e a pequenina. A pequenina já tinha seus cinco meses; sempre recebia cartas com fotos dela. A pequenina Elsie… 

Mesmo que ainda não tivesse sequer tocado minha sobrinha, eu sentia um vínculo inexplicável com ela. Talvez porque ela fosse a cara de Agnólia e, consequentemente, carregasse os meus traços também. Na realidade, quando a observava nas fotos, sentia que Elsie tinha muito mais em comum comigo, do que com a própria mãe. Era uma constatação esquisita, mas que parecia fazer muito sentido pra mim.     

O táxi parou em frente a casa de Agnólia. Paguei uma gorjeta ao taxista; porque estava muito feliz, não tinha como negar. 

Bati na porta uma primeira vez, mas sem resposta. 

Decidi tocar a campanhia, que fez um som estridente no interior da casa, mas também não surtiu resultado. 

Toquei outra vez. 

Sem sinal. 

Resmunguei alguma coisa, botei as mãos nos bolsos e decidi aguardar um pouco. Fiquei baforando vapor quente pra fora da boca. 

Outra tentativa. 

Novamente, silêncio. 

Agnólia não poderia ter se esquecido que era minha alta, tínhamos conversado naquela manhã pelo orelhão! 

Foi quando imaginei que ela pudesse estar ocupada, tomando banho, talvez. E Lúcio… talvez tivesse saído? Faria sentido deixar Elsie sozinha? Que perigo! Mas talvez ela estivesse dormindo. E eu tocando a campainha feito doida… Eu deveria esperar mais um pouco? 

Suspirei e apoiei as costas contra a porta, pronta ficar com as narinas congeladas depois de interagir tanto com a neve, que começava a incidir. Mas, assim que me inclinei para depositar meu peso, a maçaneta fez um estalo e a porta cedeu para trás, abrindo-se. 

Num reflexo rápido voltei meu corpo para frente e me virei para a entrada, um pouco assustada. Ali, enquanto encarava o breu no interior da casa -- e era encarada de volta --, já sentia que algo não estava certo.

Tive um pressentimento forte e de imediato empunhei a maçaneta para abrir completamente a porta. Nesse exato momento, eu tive certeza de que tinha alguma coisa muito errada. 

Sabe, depois que a morte te acompanha tantas vezes, você se torna muito familiarizada com ela. Você sente a sua presença, seu cheiro, há metros de distância. 

Entrei a passos curtos e coloquei a mochila no chão silenciosamente. Me agachei e abri seu zíper mudamente, sacando um estojo e de dentro dele um lápis. Toquei a ponta do escolhido levemente contra o dedo indicador -- estava bem afiado. Depois, sorrateira, segui de cócoras pela sala de estar escura, rumo ao móvel onde estava o telefone-fixo. Disquei para a emergência da polícia. 

Alô.

— Alô. — sussurrei. — Senhor, acho que invadiram minha casa. Por favor, me ajudem. 

Me passe o seu endereço.

Indiquei murmurando.

Mantenha a calma. Estamos chegando. 

Desliguei a linha. 

Ao lado do telefone havia um vaso ornamental de vidro. Catei-o também. Finalmente me levantei e fui em passos silenciosos rumo à cozinha, que estava com a luz acesa. 

Quando cheguei, o esperado. Botei a mão sobre a boca; não porque já não tivesse me cansado de ver cenas como aquela, mas porque ali jazia… Lúcio. A cozinha estava empoçada de sangue, que, pela quantidade, saía de sua cabeça. 

Tentei manter a calma. Precisava manter a calma. 

Observei pingos intensos de sangue que formavam um rastro da cozinha para o corredor dos quartos. Havia uma grande possibilidade daquele rastro vir de… Agnólia! 

Apertei o passo e segui os gotejos, que faziam um caminho até outro cômodo aceso. 

Quando me aproximei da moldura da porta, a cena se desenrolou no mesmo segundo sem que eu pudesse fazer qualquer tipo de intervenção: Agnólia estava do outro lado do cômodo encolhida junto à parede, de costas. Havia um ferimento em seu braço por onde respingava sangue. Em seu colo, dormia a pequena Elsie, que estava embalada em seus braços tensos. Bem ao centro do quarto, um homem. Ele estava de pé e tinha um dos braços erguidos, colocando Agnólia na mira de uma pistola.

— Não! — bradei em desespero no mesmo momento em que o invasor afundou o dedo no gatilho. 

O ruído foi abafado pelo silenciador, mas eu bem gravei na minha mente a imagem de Agnólia, que deu um grito horrorizado quando foi atingida nas costas por uma e depois outra bala, e despencou de joelhos no chão, sangrando, mantendo a pequena Elsie -- que agora chorava, depois de acordar assustada -- embalada em seu colo. 

O homem olhou para mim por cima de seu ombro, parecendo atordoado com a minha presença inesperada. E quando ele me encarou com aqueles olhos de assassino (que eu bem conhecia. Ah, como conhecia!), não me preocupei em segurar qualquer instinto reprimido: voei em sua direção. Ele estava prestes a me apontar a pistola, quando rapidamente afastei-a com um braço e, com a mão oposta, encravei a ponta do lápis na sua costela. O homem urrou e se encolheu de agonia. Esmigalhei o vaso em sua cabeça e ele passou a se contorcer de dor no chão, largando a arma. 

Recolhi-a e apontei para sua cabeça no chão. Um sentimento feroz me incendiou; e na mesma velocidade que ele veio, ele se foi. 

Não que aquele infeliz tivesse algo minimamente em comum com Chris, mas segurar uma arma depois de tanto tempo, estar a um passo de matar de novo… era jogar fora todos aqueles últimos cinco anos que lutei para me reerguer.

Eu não podia fazer aquilo.  

Eu não podia desperdiçar mais tempo do que eu já tinha desperdiçado. 

Enquanto o invasor ainda se contorcia, larguei a pistola longe no chão, como se me livrasse de um bicho grudento e venenoso, e me entreguei à minha frustração, me agachando enquanto um choro silencioso e reprimido fazia meu pulmão vibrar e doer. Elsie também -- na sua doce inocência -- chorava, alto, enquanto o som das viaturas surgiam pouco a pouco do lado de fora da casa. Era um coro angustiante de se ouvir.



 

Quando os policiais adentraram a casa, rapidamente deteram o assassino (sem muito esforço, inclusive) e o encaminharam para a ambulância para que, só depois, pudesse responder pelos seus atos judicialmente. Os corpos de Lúcio e Agnólia não tiveram sequer chance de irem para a emergência; já estavam mortos. A casa ficou acesa a noite inteira, enquanto entravam e saíam peritos e médicos. 

Conversei com o delegado na sala de estar durante quase uma hora, ali, no sofá da sala de estar, enquanto a movimentação ao redor não cessava. Estava absolutamente instável; não conseguia parar de chorar e tremer e a nossa conversa visava justamente que eu me acalmasse antes que partíssemos para a delegacia.

Em meio ao caos, um dos socorristas de repente interrompe a nossa conversa. Ele tem a pequena Elsie em seu colo, dormindo serenamente depois de ser embalada. 

— Você quer segurá-la? — perguntou o socorrista. 

Parei por um instante, encarando-o após a sua pergunta, quase em choque, quase como se perguntasse “Eu posso fazer isso? Posso segurar essa criança? Eu?”. 

Fiz que sim com a cabeça, ainda um pouco atordoada, e aceitei aquele bebê em meus braços como alguém que segura uma porcelana cara e rara. Era, aliás, a primeira vez que a via a pequenina das fotos; e ela era ainda mais linda pessoalmente.   

Quando senti seu pouco peso nos meus braços e olhei para seu rosto miúdo e sereno, algo mágico aconteceu dentro de mim: era como se tudo ao meu redor tivesse parado de existir por um momento. Não havia mais qualquer resquício do peso da morte no ambiente. Sequer lembrava que minha própria irmã tinha sido assassinada. Senti como uma mãe que dá à luz num hospital e recebe em seu colo, pela primeira vez, sua cria, sangue do seu sangue. 

Meus olhos umedeceram. Elsie irradiava uma pureza, tão grande, que parecia capaz de criar milagres e transformar tudo ao seu redor; inclusive a minha alma suja. Foi. Foi ali. Eu senti, pela primeira vez na vida, que poderia mudar o meu destino.  

— Senhorita Agatha? — a voz do delegado me alcançou e me puxou de dentro do meu devaneio. 

Pisquei forte, tentando desmanchar a lágrima emocionada que se formava nos meus olhos:

— Sim, sim? 

Custava prestar atenção nas palavras do delegado a partir daquele momento. Minha mente facilmente começava a ir longe. E, quando, num rápido movimento, desviava o foco da visão para Elsie, meu peito começava a se encher daquele sentimento excitante e pulsante, quase como um êxtase de paixão. 

Eu estava determinada a proteger Elsie de tudo. Não deixaria que nada pudesse um dia acabar com a sua pureza. E daria de tudo -- mesmo a minha vida -- para libertá-la daquele ciclo incessante de sangue e morte.


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Notas finais do capítulo

O que acharam? Já sabemos que a vontade de proteger a pureza da Elsie meio que foi pro saco kkkkk Mas será que o verdadeiro desejo da Agatha não foi cumprido? Qual é o verdadeiro desejo dela, afinal?