Identidade Homicida escrita por ninoka


Capítulo 74
Nas entranhas do colégio


Notas iniciais do capítulo

oiii meu xuxus! tudo bom???
tentando postar pela terceira vez hoje e torcendo pro nyah não travar de novo

um personagem antigo reaparece rapidinho e logo logo terão.... revelações ......... irra!


boa leitura!



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[Elsie]

 

O dia amanheceu do mesmo jeito que a noite anterior tinha acabado: chovendo. 

E mesmo que agora fosse só um chuvisco, ainda era um clima que parecia tirar toda a pouca força que ainda restava em nós. Sem armas ou comida, eu e Armin não tínhamos muita ideia do que iríamos fazer, mas, sabendo que aquela era uma das poucas oportunidades que tínhamos prum descanso, aproveitamos pra revezar o sono. Quem sabe depois de descansar a mente, teríamos alguma ideia do que fazer?   

Eu tava no meu momento de fazer a guarda, com as costas fazendo peso sobre a porta do banheiro. Armin dormia sentado no chão, apoiado num canto da parede e encolhido de braços cruzados pra se aquecer que nem um animalzinho (diga-se de passagem, uma gracinha…). Alternava minha linha de visão entre ele -- aquela figura inofensiva e contraditória, babando com a boca aberta como um bebê, mas com os punhos sujos de sangue seco -- e pra além da janelinha no topo da parede; aquele céu branco, pálido e anestésico. 

Bocejei e olhei pro cronômetro no meu pulso: 53 horas.   

Comecei a pensar no que aquele jogo ainda significava pra mim; no que tudo aquilo ainda significava pra mim. Pode parecer estranho, mas… eu comecei a me dar conta daquela apatia que vinha me tomando ultimamente. Não era como se olhar pro contador do cronômetro diminuindo me desse qualquer tipo de ansiedade ou calafrio como no começo. É. Foi ali que eu comecei a pensar, de fato, no que aquele jogo significava pra mim -- no que a minha vida significava pra mim.

Suspirei, encostando a cabeça pra trás sobre a porta. Segurei o pingente do colar da tia Agatha. 

De repente, o sonho que tinha tido mais cedo voltava a passar como um filme na minha cabeça. Mas, bom, ele não era apenas um sonho -- era o sonho de uma memória real. Seis anos atrás, chegando em casa e vendo o corpo da tia Agatha caído na sala; o carpete fofo convertido do bege pro vermelho escuro, molhado de sangue. 

Fazia tempo que aquela cena não vinha tão nítida na minha memória e eu atribuí isso ao contato diário com as violências e, principalmente, com o pânico que a situação do dia anterior tinha me causado.

Naturalmente queria parar de pensar naquilo; então segurei o pingente com mais força, como se isso fizesse eu me sentir menos angustiada. Embora eu soubesse que, com aquele clima chuvoso, frio e fechado, isso era uma tarefa quase impossível. 

Voltei a observar Armin, dormindo. Deixei a cabeça cair de lado para admirá-lo. Senti uma remexida por dentro, no estômago, e depois um conforto que deixou o coração quente. Talvez fosse o sentimento que a sra. Murple dizia? Paixão? Não sei… Mas vendo ele naquela composição era impossível não desejar que ele estivesse tendo um sonho muito, muito bom. 

Um som de celular veio do meu bolso. Dei um pulo no susto sem esperar que aquilo fosse possível. Era… o meu keypass?

Puxei ele de trás da calça e paralisei quando me deparei com a cara da Shermansky estática do outro lado da tela. Estava na mesma composição que sempre ficava quando aconteciam os Relatórios Diários: dentro de um pequeno quarto, sentada sobre uma poltrona, enquadrada ao centro da câmera. Fiquei parada e interrogativa até perceber que não se tratava de uma imagem estática quando Shermansky franziu seu pequeno sorrisinho e disse: 

— Olá, Elsie. 

Me arrepiei de cima a baixo. Todo aquele blasé no meu corpo se converteu. Talvez fosse coisa da minha cabeça ou porque aquela situação não fazia qualquer sentido, mas o sorriso de Shermansky (que sempre me causava um incômodo terrível) naquele momento, parecia ostentar uma aura muito mais desequilibrada que em todas as outras vezes que eu tinha visto. Era uma mistura de impassibilidade com uma aura afetada por trás. Era uma grande incógnita; tudo por trás daquela mulher e daquele jogo ainda eram uma grande incógnita pra mim.  

Shermansky continuou:

— Já faz um bom tempo que não conversamos assim, não é? 

— O que você quer? — perguntei na defensiva, olhando para a tela e depois rapidamente inspecionando com os olhos se Armin ainda estava dormindo do outro lado do cômodo. Não queria que ele ouvisse nossa conversa. Recuperei a compostura: — Aquela filmagem do Lysandre… não foi um erro do keypass. Foi você, não foi? 

Ela ficou em silêncio por alguns segundos. 

— Sim. Fui eu — respondeu. 

— Por quê? 

— Poxa, Elsie… eu pensei que pudéssemos ter uma conversa um pouco mais amigável e você vem cheia de perguntas. Por que não conversamos como amigas?  

— Só pode ser brincadeira… — ri, saturada de sarcasmo. 

— Não, não. Jamais — balançou a cabeça — Você é um peão especial, Elsie. Eu adoraria poder conversar mais com você.  

Franzi a testa, confusa: 

— “Peão especial”?

— Você quer saber, não quer? 

Recuei com a pose de feroz, de repente abatida por uma hesitação que eu não sabia de onde vinha:

— Sobre o quê?

— Sobre tudo.

— “Tudo”?

Tudo.

Senti um pequeno calafrio. Shermansky continuou: 

— Você já descobriu que a sua tia Agatha foi uma jogadora anos atrás. E que ela matou o próprio namorado... Você não acha que saber o que sua tia passou antes de você nascer, pode te dar alguma pista sobre o assassino dela? 

Fiquei em silêncio, tentando analisar a sua resposta.   

— E por que você me daria esse tipo de informação? — perguntei — Por que me ajudaria com isso? 

— Eu já te disse, Elsie: você é um peão especial. 

Definitivamente, não conseguia entender o que ela queria dizer com aquele enigma tosco.

— Suba até a sala 78. Assim acho que podemos ter uma conversa mais franca sobre tudo — disse ela, e eu senti um nervosismo inexplicável.  

Segurei o pingente da tia Agatha com força de novo. Meu coração batia forte. Eu sabia (embora negasse) que tinha medo da resposta. Não era fácil remexer toda aquela sujeira. não era fácil lembrar que minha tia tinha um envolvimento com toda aquela carnificina. Vendo a minha hesitação, Shermansky também tentou ofertar outras chantagens; mas depois de refletir rapidamente, eu já estava decidida:  

— Tá bom. Eu vou. Espera por mim. 

Shermansky esboçou uma rápida surpresa (era um lapso de expressão que eu não esperava) e voltou a sorrir. Dessa vez era impossível não perceber o triunfo nela:

— Até breve, então, queria Cotton.   

A ligação desligou. Soltei um suspiro do fundo da alma e percebi o quanto minhas pernas estavam tremendo de nervoso. Do outro lado do cômodo, como se lesse minha mente com uma precisão assustadora, Armin falou:

— Você não é louca de ir até lá. 

Dei um pulo de susto:

— Desde quando você tá acordado?!

— Tempo suficiente pra ter escutado tudo — respondeu ele, com um certo mau-humor, se levantando, apalpando as próprias roupas e vindo na minha direção.   

— Então não tenho nem como dar fuga em você — sorri sarcástica e guardei o keypass de volta no bolso.  

Armin se aproximou e colocou a mão contra a porta que eu estava apoiada. Estava com uma carranca do cão (talvez por sono? fome? exaustão física ou emocional? tudo misturado?) e eu apenas cruzei meus braços e ergui o rosto sério na direção do seu, tentando parecer blindada por aquele gesto.

— Não acha que é burrice acreditar nessa velha? — disse enquanto me encarava. Sua voz era pura exaustão.

Hesitei em responder. Desviei os olhos. Não era como se eu confiasse em Shermansky; mas, mesmo aquele seu sorriso grotesco parecia me dar sinais de que ela realmente sabia algo e estava disposta a me entregar as respostas. O porquê eu também desconhecia. Mas, pra todas aquelas perguntas incessantes que rodopiam a minha cabeça, só restava uma coisa: 

— Eu preciso arriscar, Armin — ergui os olhos na sua direção — Esse é o único jeito de eu conseguir me libertar disso tudo. 

Armin concordou com a cabeça, embora meio hesitante. Ele compreendia o meu desejo, afinal. Depois, repousou a testa entre meu pescoço e meu ombro e disse:

— Então eu vou com você.

Descruzei os braços e os estiquei pra abraçar as suas costas. 

 

***

 

Shermansky com certeza nos observava pelas câmeras da escola naquele momento: andando pelos corredores vazios em estado de alerta, mas com uma lerdeza e falta de equilíbrio nos movimentos que era resultado da fome. Logo que chegamos em frente a sala, abrimos a porta cuidadosamente, tendo certeza de que ninguém nos arredores tinha nos seguido, e entramos. Levamos um susto de cara pois descobrimos que não estávamos sozinhos ali: descontraidamente sentado sobre uma das mesas da sala e com os pés apoiados sobre uma cadeira, estava um dos lacaios de Shermansky. 

Logo que o vimos, pensávamos que se tratava de um oponente; mas eu lembrava e sabia que ele não era um killer. Recuamos o passo pra trás.

— Castiel? — Armin sussurrou entre os dentes.   

E ele sorriu pra nós dois com aquele sorrisinho afiado e sacana de sempre:

— Quanto tempo, hein, pombinhos? 

Castiel não segurava nenhuma arma, e parecia numa condição física muito melhor que a nossa. Também não estava sujo ou nada do tipo; o indicativo de que ele, definitivamente, não estava dentro do jogo. Mas nós também não éramos ingênuos a ponto de pensar que ele não estava ali pra nos matar. 

— Não me olhem com essas caras de medo — suspirou e se levantou da mesa, ajeitando a jaqueta de couro no corpo — Por mais que eu quisesse muito me vingar de vocês dois pelo que fizeram com o Lysandre, só tô aqui cumprindo ordem da velha. Podem confiar.  

— E não era pra Shermansky estar aqui? — contestei na mesma hora.

— Você acha que ela dá as caras assim, fácil?  

Castiel andou alguns passos até um armário de ferro da sala e abriu as duas portas. Apontou com a mão pra dentro do armário com um gesto teatral de cavalheirismo:

— Tô aqui pra levar vocês até ela.  

Castiel colocou um pé para dentro do armário, depois o outro e depois… o corpo inteiro?! Armin e eu nos entreolhamos, confusos. Castiel colocou metade do corpo para fora do armário e nos gesticulou:

— O que estão esperando, pombinhos? É pra vocês me seguirem. Nós vamos descer.       

Ainda que estivéssemos bastante confusos e desconfiados, seguimos o comando. 

Talvez pareça que eu tinha perdido algum senso de perigo ou estivesse sendo muito ingênua; também não excluía a possibilidade de que fosse uma armadilha. Mas ainda assim, eu inexplicavelmente tinha uma grande segurança interior de que Shermansky realmente estivesse querendo abrir o jogo pra mim. 

Logo percebi que o “armário” da sala 78, era na realidade um elevador; não um dos modelos mais normais ou sofisticados, mas um pequeno espaço escuro com painéis de madeira antigos e um único botão que Castiel meteu o dedo logo que Armin e eu entramos. 

Eu já sabia que a escola tinha alguns caminhos subterrâneos (como aquele que ficava na biblioteca, ou o que Castiel usava pra fazer a sua farra no armazém de limpeza) que fazia parte da antiga planta, mas eu nunca me permiti questionar aquilo muito profundamente; e agora, algumas coisas pareciam construir um sentido. 

Estávamos os três em silêncio. Um silêncio desconfortável. Castiel de repente pareceu agitado, procurando algo nos bolsos da jaqueta. Armin me entreolhou; nossa desconfiança não passava e estávamos prontos pra voar no pescoço do ruivo-falso, até ele tirar dos bolsos dois pacotes de plástico e nos estender.  

— Tomem. Foi ideia da velha também.

Os pacotes tinham coisas que pareciam sanduíches dentro. Armin abriu o seu e cheirou, inspecionando. Castiel gargalhou:

— Não tem veneno não, nerd. Não fui eu que fiz isso.  

Guardei o meu dentro do bolso do casaco; estava tensa demais pra engolir qualquer coisa, mesmo que estivesse sentindo meu estômago formigar. Não conseguia tirar da cabeça a pequena conversa com Shermansky e sobre o que ela queria dizer quando dizia que eu era um “peão especial”. Afinal, qual era a sua intenção com todas aquelas cerimônias e boa vontade? 

Lembrava do primeiro momento que nos vimos, anos antes, na casa da falecida senhora Murple. O que eu era naquele tempo? Uma pirralha franzina de treze anos que tinha acabado de perder de forma brutal a única pessoa que tinha e tentava achar uma justificativa pra própria existência. Por coincidência, Murple e Shermansky eram amigas. Shermansky me ofereceu uma justificativa pra existir: me vingar do assassino da minha tia. E agora eu estava ali. 

Sentia a atmosfera pesar e o zumbido no ouvido; os estalos barulhentos daquela engenharia duvidosa. Era como se mergulhássemos nas entranhas daquele lugar, nas camadas mais profundas da escola. E, pensando que eu estava prestes a obter algumas respostas de Shermansky, era como se eu mesma estivesse próxima de mergulhar dentro de mim mesma. É. Pode parecer loucura, mas aquela escola parecia a materialização de como eu mesma me enxergava: dividida em uma parte da superfície, com luz, que vive no mundo real; e outra submersa, escura, perdida em ramificações.  

— E então você… se vendeu pra Shermansky? — falei para Castiel, sarcástica, tentando desfazer o clima de tensão — Por isso nunca mais tinha te visto pela escola... 

Castiel pareceu se divertir com a pergunta, embora soasse sempre irônico:

— Cuidado com a boca, Cotton. Você e seu namorado aí não são muito diferentes disso. Posso dizer até que tô em vantagem.

Fiquei quieta. Não tinha como contestar. 

Chegamos em pouco tempo (embora fosse tempo suficiente pro Armin ter detonado aquele sanduíche). As grades da porta se abriram ruidosamente e um longo corredor de tijolo se estendia à nossa frente, com luzes brancas embutidas no teto que seguiam até o final e chão de cimento queimado. Algumas portas estavam dispostas nas laterais e, lá, no final do corredor, havia uma única porta. 

Enquanto seguíamos às costas de Castiel, que parecia ter seu objetivo central naquela última porta do fundo, uma das portas da nossa lateral se abriu e de lá saíram três homens engravatados. Castiel parou o passo e se virou pra nós dois: 

— É o seguinte: só a Cotton vem a partir daqui. 

A cara do Armin se franziu numa expressão furiosa na mesma hora:

— Como é que é?! 

Dois dos homens engravatados seguraram seus braços e ele instantaneamente se debateu pra tentar se desgrudar. 

— Que merda é essa?! — exclamei, contrariada. 

Tentei ir pra cima deles, mas o outro engravatado e Castiel me seguraram também. A ideia de que tínhamos caído numa armadilha foi o que me fez cair num abismo de desespero. Foi uma gritaria. Vi Armin sendo separado de mim; o desespero também estava vestido no seu rosto. 

Já não tinha qualquer força pra tentar me soltar. 

 


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