Identidade Homicida escrita por ninoka


Capítulo 68
Repressão


Notas iniciais do capítulo

“A repressão é o processo psíquico através do qual o sujeito rejeita determinadas [...] lembranças ou desejos, submergindo-os [...] no esquecimento, bloqueando, assim, os conflitos geradores de angústia.”



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[Armin] 

— E se tiver acontecido alguma coisa muito grave com ele? — dizia Elsie, estarrecida, segurando a própria testa enquanto mantinha os olhos perdidos no nada à nossa frente. — E se ele estiver muito machucado e não conseguir fazer nada? Aquele negócio vai fritar ele, Armin! 

Depois que toda a porradaria estourou, corremos juntos pro andar de baixo, no térreo, e nos escondemos numa minúscula sala que era usada pra guardar livros velhos, sentamos no chão empoeirado, cercados por prateleiras e cheiro de mofo. Eu ainda tentava acalmar aquela maré de culpa que me remexia por dentro por ter largado Kentin sozinho, à medida que também tentava tranquilizar Elsie, mesmo que eu duvidasse das minhas próprias palavras naquele momento: 

— Ele vai ficar bem, Elsie. O Kentin é duro na queda, você sabe. Ele sempre teve muito mais preparo que nós dois… 

Elsie fechou a expressão, séria, e se levantou de repente:

— Eu vou atrás dele. — falou, altiva e determinada. 

Dei um suspiro, desesperançoso: 

— Como? Você acha que tem como lidar com aqueles dois? Você viu como em três nós nem demos conta deles? O que você, sozinha, conseguiria? 

— Foi uma falha na comunicação, pra variar. E eu consegui acertar Íris. Posso fazer isso de novo se eu quiser. — respondeu duramente, cruzando os braços. 

— Então vai em frente… — bufei, dessa vez um pouco irritado, porque a tarefa de acalmá-la e tentar me manter calmo ao mesmo tempo era como pisar em ovos; e eu já não tinha energia pra mais nada. Desviei o rosto, botando a franja pra trás. — Sabe onde eles estão, por acaso? Nós nem temos mais o GPS. 

Elsie ficou em silêncio. Também decidi que lidaria com a culpa quieto, na minha. 

 

[Burniel]

Nathaniel devia estar uns vinte minutos naquela mesma posição: de joelhos no chão, olhando pra baixo. Parecia completamente desnorteado, sem rumo, sem qualquer resquício de ânimo dentro do seu coração; como se sua alma tivesse caído num buraco muito fundo e escuro e tivesse desistido de voltar para a superfície. Durante todo aquele tempo, eu tentava frustrantemente trazê-lo de volta pra realidade; embora eu suspeitasse que, inerte dentro do seu abismo, minha voz fosse um eco distante em sua mente: 

— Nath… — eu murmurava, agachado de cócoras à sua frente, outra vez esperando obter resposta. 

Dei um suspiro. Me sentia um pouco fora do meu próprio corpo, como se a realidade fosse algo no qual eu não pertencia naquele momento. Nada do que tava acontecendo parecia processável pelo meu cérebro. Meio que -- sabe? -- a ficha ainda não tinha caído. 

Olhei por cima do meu ombro, pra trás; Jack tava quieto, pálido, com o peso da cabeça pendendo pra frente, preso como se fosse um santo crucificado. No seu rosto, carregava a expressão de alguém que cai num sono profundo.

Um sono…  

Eu já tinha trocado olhares com a morte muitas vezes; mas embora ela própria fosse -- independente de quantas vezes nos reencontrássemos -- sempre tão temível e cruel, parecia haver um pretexto por trás das suas aparições. O que não era o caso ali. 

A morte de Jack não era por conta de nenhuma doença, nenhum acidente, nenhuma briga; era uma morte que simplesmente não fazia sentido. Ou, pelo menos, se Deus existisse, eu imagino que ele escreveria algo muito mais plausível e sensato do que aquilo. Porque aquilo me parecia uma morte artificial, inconcebível e prematura. Por isso, me custava tanto assimilar que Jack não estava mais ali naquele corpo branco. Jack tinha morrido. E isso, em algum grau, era culpa minha também.

Me levantei, depois de tanto tempo, um pouco nauseado, e fui na direção do seu corpo. Tirei o suéter que tava amarrado no meu pescoço, e cobri seu rosto, no fundo, tentando me convencer de que isso o fizesse dormir melhor. 

Me deu um estalo por dentro; como se de repente tivesse pressionado o interruptor de uma lâmpada dentro de mim. Parecia ter compreendido a morte: era um nada, como a vida; ela não precisava de um grande pretexto pra dar as caras e fazer o seu estrago. E, naquele momento, senti medo dela como, talvez, nunca na vida. 

Tremi e cobri os lábios com a mão. Foi quando a ficha de tudo o que tava acontecendo finalmente caiu; e, junto, um choro carregado que eu tentava controlar dentro de mim também quis transbordar pra fora. Apertei o tecido da camisa, acima do peito, que parecia querer explodir de tanta dor e pela pressão do choro que eu tentava conter.

— Quero vomitar. — depois de tanto tempo, Nathaniel disse apenas isso. Antes de, de repente, impulsionar seu corpo pra frente e vomitar no espaço de chão bem à sua frente.

O susto me estagnou o choro. No meu senso de urgência me recompus e corri até ele, tomando-o por debaixo dos braços, levantando-o e puxando-o pra trás, pra que não se sujasse; isso enquanto ele continuava a regurgitar tudo o que ainda havia dentro dele. 

Depois de mais um grande impulso pra frente, Nathaniel parou. 

Como se tivesse se esvaziado tanto em sentido literal como metafórico, ele pareceu finalmente ter saído do seu estado vegetativo anterior, piscando seus olhos com vigor, como alguém que acaba de acordar atordoado de uma ressaca. Passou a costa da mão nos lábios e enxugou os olhos, que tinham se enchido de água tamanha a força que seu corpo fazia durante as contrações. Olhou hipnotizado pra frente, pra todo o estrago no chão, declaradamente recobrando a consciência quando xingou:

— Mas que merda. 

Bufei, franzindo a testa, enquanto soltava seus braços e deixava que ele se estabilizasse de pé. 

— Você me assustou. — tomei coragem, falei. 

Nathaniel ainda estava de costas pra mim; ficou um tempo em silêncio. Ele olhava para o corpo coberto de Jack. 

— Por que não atirou em mim? — perguntei imediatamente, por impulso, porque isso também cutucava as minhas ideias.  

Nathaniel continuava com o olhar longe:

— Achei que era o certo a se fazer. Só isso.

Fiquei quieto. Não me sentia no direito de falar mais nada a respeito daquilo.  

— Não sei que lugar é esse — comentei, olhando ao redor — mas a gente precisa sair daqui, Nath. E logo. — pontuei o mais breve possível, tentando motivá-lo.

Mas Nathaniel soltou um riso fraco, com um sarcasmo bastante explícito e ácido; negando com a cabeça. Me assustei quando ele se virou bruscamente e agarrou meu colarinho -- senti meus calcanhares saírem alguns centímetros do chão. Sua expressão imóvel tinha se deformado com a ira:

— Você ainda acha que tem algum sentido em sair daqui?! A Central é uma farsa, Jack está morto, Jay está morta, minha irmã está morta, todos aqueles alunos estão mortos! Você por acaso entende o que isso tudo significa?! — ele cuspia aquilo em fúria.

Apanhei seus pulsos, na tentativa de acalmá-lo e fazê-lo soltar minha camisa:

— Nath, me escuta. — tentei me manter o mais calmo possível, mantendo um olhar incisivo e firme. Precisava (por mais irônico que fosse) colocar Nathaniel com os pés de volta ao chão. — Se a gente não pensar com a razão agora, vai ficar difícil pra nós dois. Entendeu?

— E não é isso que eu tô fazendo? — ele riu, contrariado. — Ou você acha que realmente existe uma forma de sair daqui? Nós não estamos em nenhuma ficção, Burniel! Isso tudo é real, compreende?! Fomos encurralados, porra! Caímos na mão da Shermansky que nem dois peões. Acabou! — seus olhos fervilhavam, sua voz explodia nos meus ouvidos e ecoava por aquele lugar gigantesco.

— Você ainda tem o pendrive, não tem? — tentei não me amedrontar; franzi as sobrancelhas como em confronto, mas mantive a pacificidade na voz. — Jack com certeza sabia disso. E sabia que tinha um jeito da gente acabar com a farra da diretora. Ele confiou na gente, Nathaniel! Ou você acha que ele se sacrificaria em vão?!    

Ele hesitou por um momento, mas depois voltou com os esbravejos: 

— Sai dessa sua fantasia, Burniel! Acorda! É óbvio que deixaram isso conosco porque querem que continuemos a nos mover dentro desse labirinto! Não tem, não tem saída! Entenda! 

Nessa hora, um instinto forte me dominou. O diálogo pacífico não renderia nenhum fruto e meu fôlego tava enfraquecendo. Ficamos quites naquele instante: desferi um tapa forte e audível do lado do seu rosto. 

Ele arregalou os olhos e afrouxou as mãos; meus pés voltaram pro chão, e Nathaniel parecia que se aterrou também. Inspirei pra retomar o fôlego e voltei a segurar as mãos dele. Finalmente, a ira na sua expressão derreteu em questão de segundos; ele olhou pra baixo feito um cãozinho, seus olhos umedeceram.  

— Você disse que nós somos peões pra diretora, não é? — falei. — Mas você sabe o que acontece com os peões que chegam do outro lado do tabuleiro, né?

Nathaniel me encarou:

— O que acontece? Eu não lembro. — respondeu, com desânimo. — Ele vira uma rainha?. 

— Ele vira o que ele quiser, Nath. — tentei brincar. 

— Mas a gente não tem como chegar do outro lado.  

— O que é chegar do outro lado pra você?   

Ele ficou em silêncio. 

— Sair de Sweet Amoris. Atravessar os portões. Não tem como. 

— É isso que você acha?. — falei. — Eu acho que chegar do outro lado do tabuleiro… é tipo... pensa: uma peça tão insignificante como o peão, pode virar o que quiser; mas só depois de se expor e correr muitos riscos. As rainhas e outras peças, aliás, tendem a ignorar o que peões podem fazer, porque eles são um pouco insignificantes em termos de poder.  

Ele piscou fundo, abanando a cabeça: 

— Desculpa. Minha cabeça não tá pensando direito.     

— Olha, Nath: nós temos o pendrive, certo? Queríamos sair e entregar as provas. Mas… e se fizéssemos o contrário? 

— Entregar as provas… e… sair?  

— Isso. — ri. 

— Como? Nós vimos na sala do grêmio; cortaram a internet, os sinais de telefonia. Estamos ilhados. 

— Ilhados! Boa, boa! Por isso, nós não vamos levar as provas; nós vamos trazer a polícia até as provas! 

Nathaniel deu um risinho fraco, meio melancólico, mas já com uma pequena fagulha de serenidade:

— Não entendo onde quer chegar. Acho que usei toda minha energia mental esses dois dias. E… a polícia? E se ela também estiver no controle de Shermansky?  

— Independente, ela vai ter que aparecer. 

— Como? 

— Vamos fazer como faríamos se estivéssemos ilhados!

— Sinal… de fumaça?

— Isso, isso!  

— Enlouqueceu? Como vamos…- 

— … Nos expor assim? — completei. — É o risco que o peão corre pra se tornar maior, não é?

Ele deu um longo suspiro, controlando melhor o ritmo do seu interior. Até que desviou o rosto pro lado, encarando longe, onde estava Jack, coberto. Senti suas mãos tremerem dentro das minhas, e seu rosto foi se contorcendo em dor:

— E-eu… eu não queria deixar ele aqui. Eu não quero. 

Engoli grosso. Tentando não ceder ao choro de novo. 

— Não pensa assim, Nath… Pensa que… vamos fazer isso por ele. Por ele e pela Jay. 

Nathaniel parou. Virou bruscamente pra mim -- nosso olhar se cruzou por um milissegundo. Ele avançou pra frente, se curvando, e caiu com o rosto no meu ombro. Senti o colarinho sendo apertado com intensidade. Vi suas costas começarem a tremer, até que ele desmoronou: chorava, soluçando alto. 

Também quis chorar. Mas precisava ser mais forte que as minhas emoções, senão entraríamos os dois num abismo de inércia. Apertei meus lábios um contra o outro, com força, inspirando, engolindo o sentimento. Soltei suas mãos e envolvi meus braços em suas costas, dando uns tapinhas. Olhei Jack uma última vez. Espremi os olhos e o abraço. 

Tive um sentimento estranho. De alguma forma, lembrei de quando era criança. É, a minha infância antes do tempo do cativeiro com Jade se tornou um emaranhado de flashes que eu não sabia codificar se foram reais ou parte de algum sonho. 

Estresse-pós-traumático, disse uma psiquiatra, uma vez; mas eu não confiava nela o suficiente pra pensar sobre. Na realidade, involuntariamente, sempre evitei me vasculhar a fundo. Evitei saber sobre qualquer coisa do passado, porque sabia que ele doeria. Fugi várias vezes de terapia. Fugi porque tinha medo de sentir dor. E também… me apeguei à ideia de reencontrar Jade. Claro, eu sabia de tudo. Sabia. Minha casa antiga, meu lar, meus vizinhos, a pré-escola, meu pai, minha mãe. Eu lembrava, no fundo. Mas, tudo aquilo parecia tão… distante. Como se todos aqueles clarões de memórias não pertencessem exatamente a mim; mas eram, sim, fruto de uma realidade paralela que eu nunca tinha vivenciado. Era um sentimento muito estranho, fugir… do passado. 

Nathaniel tinha me dito sobre se desapegar do passado. Mas acho que uma coisa era real: você só consegue se desapegar da dor depois que vivencia ela com todo o ardor, depois que cai de cabeça nela. E ver o sempre tão intelectual e blindado representante do grêmio sem temer mostrar sua fragilidade, que me fez chegar àquela conclusão. 

Uma energia revigorante me inundou naquele momento; senti esperança. Senti uma motivação a mais pra continuar. Prometi a mim mesmo, ali, que não fugiria mais de nada. Sairíamos daquele inferno.  

Nathaniel foi silenciando, enquanto eu ainda tapeava de leve suas costas. 

De repente, um susto: um gemido de dor. Abri os olhos rapidamente e focalizei a direção do som. 

— Nath, Nath. Olha, olha. — chamei-o, e ele levantou o rosto ensopado de choro pra onde indiquei. 

Havia uma saída há uns bons metros de nós; de lá, uma figura vinha cambaleando e grunhindo de dor, quase feito um zumbi. Gelamos na hora. Tinha muito sangue respingando do seu rosto e era difícil identificar uma imagem clara com toda aquela configuração esquisita. Só depois que a figura parou, ainda longe, e desmaiou ali mesmo, no chão, que tivemos certeza de que se tratava de um conhecido nosso: Kentin.  

 

[Armin] 

Passado alguns minutos em silêncio e climão total, Elsie descruzou os braços e suspirou profundamente. 

— Por que aquele rapaz não apareceu no GPS? — perguntou, de repente, como se pudesse ler a minha mente; porque era exatamente sobre aquilo que eu refletia naquele instante. 

— Um erro de cálculo no software? — palpitei por alto, ainda desanimado com toda a atmosfera do lugar. 

— Isso quer dizer que…? 

— Que ele bugou e não captou a identificação do que quer que seja que tá transmitindo os nossos sinais. 

Elsie pareceu pensativa:

— O que poderia estar transmitindo os nossos sinais? 

— Eu chuto que seja isso aqui. — ergui o pulso, mostrando o cronômetro. — Ou os keypass. Mas acho que eles não seriam uma boa ideia… Podem cair, quebrar, sei lá, seria um jeito muito arriscado pra transmitir as coordenadas exatas. Até porque… também chuto que esses cronômetros são uma forma da Shermansky ter um controle a mais sobre o que estamos fazemos. Tipo uma coleira. — a medida que eu falava, acabava chegando a novas conclusões e alimentando teorias, ficando um pouco assustado sobre como todo aquele esquema parecia tão bem bolado. — Ela pensou em tudo… — declarei, murmurando.   

— Isso quer dizer que ele… não tem o cronômetro? Ou o dele quebrou? E será que isso é possível?  

— Eu não sei. Foi só um palpite, mesmo.  

Elsie deu outro suspiro; se sentou no chão, de frente pra mim. Continuamos num climão insuportável, horrível; mas que era completamente condizente, dada a situação. Já não bastasse toda a correria e a culpa que eu tentava digerir naquele momento, fome e cansaço já batiam na porta. Era o segundo dia, mas parecia que já estávamos há uma semana atolados na merda. 

Fiquei parado, massageando a ponte do nariz, pensando quão fácil era perder a cabeça. Ou talvez eu que fosse um fraco? Talvez. Sabia que tínhamos que nos mover, mas -- não vou mentir -- a ideia de ficar trancado naquele armazém até morrer de fome parecia muito mais acalentadora. Tentei me lembrar de Alexy, porque ele quem sempre me deu fôlego quando eu questionava se as minhas escolhas faziam sentido; e, porra, me senti um verdadeiro lixo. Porque lembrar de Alexy era pedir pra lembrar de Kentin; e então mais uma vez eu era arrastado pra culpa de tê-lo deixado pra trás, com Íris e aquele japonês endemoniado. 

O keypass de Elsie vibrou no bolso do seu casaco. E é aí que entra a maior verdade que um ser humano já disse algum dia na história da humanidade: “Se você acha que as coisas não podem piorar mais, acredite, elas vão piorar.”.  

Não conseguia ver o que estava no seu keypass, mas via claramente a expressão de Elsie, iluminada pela luz forte, se retorcendo num misto muito esquisito de indignação e fúria: 

— Que porra é essa? 

Fiquei confuso e agitado por dentro, um pouco assustado: 

— O que foi?

Ela virou o keypass pra mim. Demorei alguns segundos pra lidar com a claridade e focar no conteúdo da tela. Quando as imagens pareceram suficientemente nítidas, gelei instantâneamente. 

Um vídeo em loop: aquela noite do evento dos trinta anos de Sweet Amoris, sobre o palco do ginásio, quando Elsie apunhalou Lysandre por trás. Era exatamente esse o frame, visto de cima. A espada atravessando Lysandre enquanto Elsie se mantinha bizarramente estática às suas costas. 

— Você e Kentin me disseram… que tinham sido vocês dois. Foram vocês dois que tinham eliminado Lysandre, não foi?!

Eu vi aquele momento ao vivo e a cores. Nunca desgrudou da minha memória o fato de que aquela garota, de pé, simplesmente não parecia Elsie. Tinham a mesma aparência, mas ainda assim não eram a mesma pessoa. Porque a menina que eu vi aquele dia não matou Lysandre apenas pra me proteger; ela parecia muito satisfeita com o seu trabalho, como se fazer aquilo fosse prazeroso demais pra ela.   

— Armin, me responde! — ela insistiu, me tirando do devaneio que minha falta de argumentos me meteu. Tinha sido pego no pulo e comecei a me desesperar. — Eu preciso de explicações!

— Elsie, calma… Nós- 

— Calma, nada! Vocês dois mentiram pra mim! Esse tempo todo! — seus olhos instantaneamente marejaram, raivosamente.

— Se você falar alto assim vão nos encontrar aqui! — exclamei baixo. 

Por que vocês não falaram a verdade?! Meus únicos amigos!

— Nós não queríamos te deixar confusa! Queríamos te ajudar, queríamos te entender e te ajudar!

— Se vocês queriam mesmo fazer alguma coisa pra me ajudar, por que não me falaram a verdade?! Você sabe o quão difícil é você não ter certeza do que foi real ou não? Fazem alguma ideia?! Sabem quantas noites eu me revirei tentando dormir porque as minhas lembranças pareciam a merda de um borrão?!    

Eu remexia a cabeça, negando, desesperado, buscando as palavras mais certas pra que não estragasse tudo de uma vez: 

— Não, Elsie. Eu não sei. Me desculpa por isso. Nós só achamos que seria melhor te poupar. Você não se lembrava, iria entrar em outro ciclo de questionamento sobre o que era real ou não.     

Sua expressão mudou em questão de um único segundo; Elsie de repente parecia como um gato arisco, em estado de alerta. Fiquei assustado, até que ela violentamente pulou na minha direção, caindo por cima de mim no exato momento que um estouro atingiu a parede próxima de nós. 

Tinha vindo da minúscula janelinha do topo da sala, que dava para o pátio da escola. 

Um tiro. Não vimos quem foi o autor, mas a claridade branca que vinha do pátio refletiu, por um segundo, nas paredes do pequeno cômodo, uma forma quase espectral, um flash de cores que dava forma ao atirador anônimo; quem fugiu sem nem pensar duas vezes assim que se deu conta da ineficácia do seu tiro.

Demorei dois ou três segundos pra me recompor do choque; fiquei parado, com as costas jogadas no assoalho, enquanto Elsie se erguia de cima de mim. Ela se levantou, de pé, com uma expressão séria endurecendo seu rosto e abriu o zíper do seu casaco, enfiando a mão lá dentro e retirando, de um coldre improvisado, sua pistola.   

— Deve ter escutado nossa conversa. — falou, destravando a trava de segurança do armamento. 

Eu continuava caído na friagem do chão, como se um magnetismo muito forte me mantivesse grudado ali;  foi uma sequência muito rápida e intensa de ações pra que eu pudesse digerir rapidamente. Elsie, no entanto, parecia de repente motivada e energética. Tentei impedir seus impulsos arriscados; mas seu nome saiu de dentro de mim como um grunhido incompreensível. 

— Esse vai ser meu. — disse ela, girando a maçaneta e me olhando por cima do seu ombro uma última vez. E naquele momento, naquele rápido momento antes de mergulhar pra fora do armazém de livros, um pequeno sorriso ocupou lugar no seu rosto; era como o sorriso de uma criança arteira, prestes a pregar uma grande peça; e era como se todo o mau humor e tensão de segundos atrás tivessem simplesmente desaparecido da aura ao seu redor. E, naquele rápido momento, logo que ela fechou a porta e me deixou pra trás, me dei conta de que aquele sorriso não pertencia à Elsie.   


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Notas finais do capítulo

como estão lindos??? se cuidando direitinho?
talvez esse cap (ou esses últimos caps) tenha parecido confuso mas são todos pequenas pistas mesmo fjidsoffd
estou sempre aberta às teorias d vcs (─‿─)


desculpem qqlr erro e kissus!!!