Identidade Homicida escrita por ninoka


Capítulo 61
Desapego


Notas iniciais do capítulo

boa leitura!!



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        [Nathaniel] 

Acordei com o corpo estendido sobre o chão frio, mãos amordaçadas para trás das costas e pés igualmente imobilizados; músculos doloridos do pé à cabeça. A iluminação era precária, mas ainda foi possível distinguir o mínimo do cenário: uma sala minúscula, pisos de madeira e nenhum móvel. 

Tomei um susto; próximo, num dos cantos do cômodo, estava Burniel, sentado no chão  apoiado sobre a parede. O primeiro assombro foi por notar uma presença que até então eu não esperava; o segundo foi pela condição que Burniel estava ali. Paralisado e molenga, olhando pra frente e balbuciando baixo coisas indistinguíveis. Ao lado de seu corpo em estado zumbi, um canivete. 

Toda a composição daquele ambiente me deixava inquieto; porque simplesmente não tinha lógica. Burniel não tinha cooperado com Jade da última vez? Não era por isso que eu tava ali? Mas, -- então -- por que Burniel também tava?

— Psiu. — chamei ele, mas fui ignorado.

Tentei de novo. 

De novo. 

Na quarta tentativa ele finalmente deu atenção ao sinal, mas por nada mais que dois segundos; voltando a encarar o nada, murmurando e remexendo as pernas.

Parecia inútil tentar contato, por alguma razão incomum.

Decidi pegar o utensílio por mim mesmo, me contorcendo pelo assoalho feito uma minhoca até ele. Deitado de costas para o canivete consegui apanhá-lo com a pouca mobilidade restante dos dedos, ficando bons minutos esfregando a lâmina na corda até fatiá-la completamente. Agora de mãos soltas, tirei as amarras das canelas. Fiquei livre, até aquele ponto.

— Tá frio… — Burniel começou a se encolher de braços cruzados e murmurar aquilo como um mantra. — Tá frio…    

Me ergui e fui até ele, me agachei de cócoras à sua frente, e estalei os dedos pros seus olhos. 

Burniel reagiu da mesma forma que antes, encarando meu sinal por um segundo e depois ignorando-o completamente. 

— Você viu só? — sua consciência parecia longe, alucinada. — Eu sou só um verme pra ele. Um traidor. Ele me disse. Ele disso isso pra mim, na minha cara. Você viu só?  

— Do que você tá falando? — sussurrei, franzindo a testa. 

— A Peggy é o amor da vida dele. Eu sabia disso. Sabia que ele nunca me amou de verdade. Eu sou só um merdinha que estragou a vida dele… 

Me aproximei de seu rosto e achei a justificativa para aquele comportamento estranho. Suas pupilas estavam dilatadas.   

— Você...  — murmurei, coçando o queixo. — … te drogaram…? — falei, mais para mim mesmo. 

Catei o canivete do chão e guardei comigo. Me levantei de novo, estudando o ambiente ao redor. Notei a ausência de qualquer porta ou janela ali. Apalpei os bolsos de trás e verifiquei que tinham arrancado meu revólver de mim. Praguejei um palavrão baixinho.

Tentava entender a situação ainda. Estávamos dentro da escola? Jade… ele parecia dar ordens. O quão envolvido ele tava naquele esquema? Qual sua posição? Seu lugar na hierarquia? Minha mente era um turbilhão.

Escutei algumas lamúrias baixinhas atrás de mim; Burniel chorava e reclama alguma coisa.  

Jun, Íris… por que foram pra cima de Burniel? E por que Jade parou ambos? Qual era a relação de tudo aquilo? 

O choro de Burniel ficou mais intenso, ao ponto que sentia que minha cabeça iria explodir de dor e estresse. 

Massageei a ponte do nariz e tentei me manter pensativo, racional. Tava confuso, dolorido, puto. Eu tentava elaborar as ideias e Burniel chorava mais. Inspirei fundo; mas aquele som ambiente me dava nos nervos. No auge do meu esgotamento lembrei da sua traição, do nosso plano falido.  

Afetado, me virei, voando até ele e apertando seu rosto pra que ficasse inteiramente direcionado a mim: 

— Escuta aqui. Para com essa merda! Se você tivesse cooperado de verdade comigo a gente não ia tá nessa. Por que não me contou toda a verdade?! A culpa é sua! Toda sua! Porra! 

Burniel se retraía, tremendo e tapando os ouvidos, chorando e gemendo, arfando como se fosse ter uma perda de ar:

— Eu sei, eu sei! É tudo culpa minha! — engasgou. 

Bufei prolongadamente, percebendo ter -- talvez -- agido pela impulsividade. Soltei seu rosto e cocei a nuca. A paciência e a racionalidade aos poucos retornava em mim. Aparentemente, como eu já suspeitava, Burniel era mais como uma vítima de toda aquela conspiração do que de fato um grande traidor.

— Desculpa, desculpa… Eu… — me sentei ao seu lado, exaustivamente deixando as costas e a cabeça pairarem sobre a parede. — Eu não queria ter falado assim. — segurei a testa e massageei as têmporas. 

Aos poucos seu choro foi se abrandando, os espasmos diminuíram a frequência, até que restou apenas uma fungada aritmada do soro que escapava pelo nariz. 

Burniel deixou a cabeça repousar sobre a lateral do meu ombro, fechando os olhos e respirando pela boca. Aquele definitivamente não era um momento pra discussões.  

— Como eu posso confiar em você de novo, agora? — falei, inspirando e explodindo o ar para fora da boca em seguida. 

Nesse processo tomei a liberdade de descansar minha cabeça sobre a sua também; na realidade, me sentia mais chateado do que, de fato, irritado. Meus músculos ainda doíam por ter ficado sabe-se-lá quantas horas naquela posição ridícula. O cérebro formigava de tanto pensar e meu corpo já tava saturado de tanta adrenalina acumulada só naqueles últimos dias. 

Burniel entreabriu sua boca minimamente, permitindo-se finalmente falar, mesmo que com a fala ainda um pouco atravessada e torta:

— Você… e o Jack. — a sonolência parecia ter tomado conta dele. — O que vocês são, afinal?

Fiquei um pouco em choque com a pergunta. Mas ali já não tinha motivos pra esconder qualquer coisa. 

— O que você acha que nós somos? — perguntei. 

— Jade dizia que… vocês… eram espiões perigosos. 

— E foi por isso que você se afastou de mim? Por isso parou de frequentar o tratamento que Jack tinha te encaminhado? 

Ele concordou com a cabeça, mole. 

— Ele tá certo em algum ponto. Nós dois somos espiões, sim. Mas, se somos perigosos… — dei uma risadinha. — … isso depende de qual lado você tá.  

— Você… sabia… que ele… o Jade… tinha sofrido uma tentativa de… assassinato? 

— Não só isso, como imaginava que ele estivesse morto. Foi uma longa história. Bem confusa, pra falar a verdade. 

Ele deu outra mexidinha de cabeça. Era como uma criança. 

— Mas e você? Não vai me dizer o que sabe? Nenhum esclarecimento? Têm algumas coisas que a gente não deixou muito claro da última vez que conversamos. — temperei a pergunta com um ar de brincadeira. Meu bom humor voltava rápido. 

Seus olhos se descolaram vagamente, me encarando e depois desviando. 

— Jade… nunca me deixou muito claro o que realmente tava acontecendo… Ele disse aquilo sobre o Armin e a Elsie mas eu… nunca entendi como que isso era possível. Tipo… por quê? Por que não ir numa delegacia…? Procurar ajuda…? Qualquer... porcaria do tipo… 

— Como ele conseguiu todo esse acesso à escola? A ponto de saber pontos de fuga e viver por dentro sem nunca nem ter sido pego… Que rato. 

— Aquela menina de cabelo colorido… a Peggy. Ele me dizia que ela… salvou ele… e tava ajudando com essa vingança que ele botou na cabeça. — sentia que Burniel aos poucos recuperava o próprio controle. 

— E como é que a Peggy conseguiu tudo isso? 

— Ela é sobrinha daquela gorda… 

— Gorda?

— A diretora…  

Torci a testa na hora. Aquilo me balançou. Uma informação básica de parentesco tão próximo como aquele devia ter sido fornecido pela Central. Podia nos ter dado uma base sobre a localização de Jade o quanto antes. Podia ter… impedido que a Jay morresse. A Central tava comendo muito bolo ou… as informações simplesmente não chegavam até nós? 

— E sobre aqueles engravatados? Aqueles cartões que Jade mencionou. Jun e Íris de repente querendo invadindo a sala… O que você sabe sobre tudo isso?

— Não faço... a mínima ideia… 

Naquela ocasião decidi me abrir:

— O caso que eu e Jack viemos investigar… aconteceu há vinte anos. A intenção era tentar ficar o mais por dentro possível do sistema da escola pra que tivéssemos qualquer pista. Acontece que as coisas começaram a ficar medonhas mesmo agora, e então começamos a tentar entender o que tem acontecido hoje. — respirei fundo. — Eu… bem que queria ficar bravo com você por ter seguido o Jade, mas… Quando olhei pros seus olhos aquela hora, quando Jade te agradeceu por cooperar com ele, eu acho que consegui entender um pouco sobre o que você sente… 

— … Entendeu…?  

— Sim. Eu soube sobre vocês dois. Soube que tiveram que viver num cativeiro quando eram crianças. Infelizmente eu nunca vou ter nenhuma palavra de conforto pra te oferecer, porque... eu nunca me imaginaria numa situação dessas. Mas, eu imagino que vocês tenham criado um laço muito profundo nessa ocasião. Você veio pra Sweet Amoris atrás dele, afinal… 

Burniel ficou num silêncio esquisito por um tempo. 

— Teve um dia… que nós dois tentamos fugir juntos. — abriu os olhos completamente. — Os caras tinham se distraído e deixaram a porta do cativeiro aberta. — mirava o nada, mergulhado na memória. — A gente viu a luz do dia. Era tão… libertador. Eu sentia meu peito arder depois de tanto tempo sem sentir um ar tão fresco… Acho que fiquei muito obcecado vendo tudo aquilo. Eu lembro que eu tava em cima da grade e Jade tava lá embaixo ainda. Ele já tinha tido... vários daqueles ataques horríveis. 

— Esquizofrenia? 

— Isso… Ele ficou paralisado antes de subir na grade. Não sei o que deu nele. Nunca soube o que ele viu ou ouviu naquele dia, mas ele simplesmente não conseguia me ouvir gritando. Um dos caras tava vindo pegar a gente… 

— Você conseguiu escapar?

— Sim.

— Então você… nunca conseguiu desapegar da culpa? É isso? 

Burniel afirmou com a cabeça. 

— Eu rodei essa cidade sozinho por dias. Pensei em buscar ajuda; contar pra alguém sobre o cativeiro. Mas tinha muito medo. Imaginava que eles tivessem feito de tudo com o Jade quando pegaram ele. E a culpa disso claramente era minha. Não sei… Eu era uma criança e nunca soube administrar a culpa e o nojo que eu sentia de mim mesmo. Não só por ter abandonado o Jade, mas por toda a humilhação que eu passei naquela porcaria daquele lugar… Então, acho que continuei fugindo de tudo, mesmo depois de anos. Até que eu soube que Jade tava vivo, estudando e vivendo uma vida aparentemente normal. Isso me alegrou demais. Queria muito ver ele. Tinha decidido que queria me libertar desse peso de uma vez por todas. 

— Você não precisava ter se envolvido nessa loucura toda pra se redimir. — pontuei. 

— Não sei… Acho que ao longo desse tempo acabei criando uma expectativa de que ia conseguir trazer de volta o Jade que eu conheci quando cheguei naquele inferno. Com um brilho nos olhos.  

— Você precisa urgentemente entender que você não é culpado pelo o que Jade se tornou. Como eu disse: isso é parte da natureza dele. Foi como a mente dele aprendeu a reagir ao que rondava vocês. Vocês eram crianças! Você sabe como a química do cérebro de uma criança pode ser extremamente frágil? 

Burniel deu uma súbita risadinha:

— Então além de espião você é algum tipo de médico também? 

De um dos cantos daquele cubículo escuro, o chão passou a emitir um pequeno quadrado de luz, piscando. Estiquei o pescoço pra tentar decifrar o sinal. Burniel ergueu a cabeça pra fora do meu ombro e mirou o mesmo alvo. 

— O que é aquilo? — perguntou. 

Levantei do chão aos poucos, debruçando na parede. Me aproximei com cautela; e logo verifiquei do que se tratava. 

— É um keypass. — apanhei o objeto do chão e analisei os itens. Não havia qualquer tipo de dado. A tela continuava a oscilar a luz branca e apagar. 

— É seu?

— Se era, tá vazio. Não tem nenhum ícone pra apertar. 

A tela congelou num fundo branco. Fiquei dedando na expectativa de que isso resultasse em algo, até que finalmente veio uma resposta: uma planta da escola, na mesma perspectiva da foto que Jack tinha me enviado. Havia um ponto amarelo num cômodo extraordinariamente escondido no térreo da escola. Andei alguns passos pra direita e o ponto se movimentou na mesma direção -- confirmando indicar onde estávamos. Pelo menos uma pergunta estava respondida: estávamos dentro de Sweet Amoris. 

Uma mensagem apareceu cobrindo toda a tela: Vocês estão cercados.

Outra: Nunca vão conseguir escapar. 

E outra: Tem assassinos por toda a parte.

— Que merda é essa…? — encarava o apetrecho amargamente. — Eles querem brincar com a nossa cara?  

— Nath… — Burniel chamou. 

Virei. 

— Olha isso… — ele tinha dobrado a manga do suéter e indicava para uma pulseira estranha no próprio pulso. 

— Não tinha isso antes? — me aproximei e tomei sua mão no ar, estudando o acessório. 

— Não. 

— Parece um relógio digital…  

— Mas tá desligado. Nem tem número. 

Já tinha tomado minha decisão:

— A gente precisa falar com o Jack. 

Burniel me encarou sentado no chão: 

— … Como?

— Realmente tem alguma coisa muito medonha rolando nessa escola. Que supera tudo o que eu poderia imaginar… — virei o keypass pra Burniel e apontei com dedo no mapa. — A gente tá aqui, no ponto amarelo. Acho que a única forma da gente sair daqui nessas condições é pelos dutos de ventilação. 

— Dutos… de ventilação? Aquela porcaria pequenininha?

— Dá pra andar engatinhando numa boa por eles… A gente só precisa chegar até a sala do grêmio e pegar meu celular reserva.

Burniel ficou pensativo.  

— Nath… — desviou o olhar. — … Você me perdoa? 

— Pelo…? — queria ter certeza de que ele sabia do que tava tentando se redimir. 

— Por tudo… Por ter desconfiado de você e do Jack, por ter me afastado, pela… Jay. 

Estiquei o braço na sua direção, estendendo a mão:

— Acho que nós dois precisamos parar de viver pelo passado. 




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Notas finais do capítulo

deseinho que eu tinha feito pra esse capítulo lá no começo do ano
https://www.deviantart.com/setubalien/art/seul-mais-ensemble-787520446