Dracocídio (versão descontinuada) escrita por Luiz Fernando Teodosio


Capítulo 5
5º Assimetria - Quente e Frio


Notas iniciais do capítulo

Olá, leitores. Apenas gostaria de abrir um parêntesis. Estou um pouco desanimado após ter assistido o filme dos Cavaleiros do Zodíaco. Por isso, reviews irão me alegrar bastante, rs.



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5º Assimetria

Quente e Frio

Séculos de trevas assombrarão o mundo. Será o tempo dos homens reconhecerem sua fragilidade e impotência diante da natureza e de si próprios. Contudo, os séculos de luz serão o tempo dos dragões, e eles conduzirão os homens à vida afortunada.

Esse foi o trecho resgatado pela memória de Seph, no livro de Marduk, ao contemplar a forma oval assentada no montículo de palha dentro da gaiola. Mesmo ninguém lhe dizendo o conteúdo por trás da casca, sentia dela a emanação de uma aura poderosa e sublime que penetrava em sua epiderme, caia no fluxo sanguíneo e, então, era bombeada pelo coração, onde ardia seu afeto por dragões.

Todos os parentes estavam extasiados, mas o fascínio de Seph era silencioso e chocado. Somente a prima Helena, a quem Seph dizia ser muito burra para uma menina rechonchuda de quinze anos, pareceu ser a única a não compreender o significado desse momento, ou quis simplesmente se fazer de boba, quando perguntou:

— Podemos fazer omelete com isso?

Seph imaginou que a prima seria ralhada por desrespeitar algo tão sagrado, mas contrariando essa dedução, ecoaram risos ligeiros e a gargalhada deliciosa e sonora de Boris Dracomir.

Como podem achar graça do comentário dela?

Numa ocasião de visita ao templo de Nidavil, Seph vira um homem de prole humilde ser repreendido fisicamente apenas por ter enfiado os dedos nas narinas da estátua do dragão. Em outro caso, num exemplo de ultraje verbal, um rapaz perguntara ao sacerdote “Onde ficam as bolas do dragão?” e, como resposta, recebera uma expressão ofendida, praguejamentos e violentas chicotadas. O respeito às divindades era praticado por todos, e os Dracomir não eram exceções, pois representavam o mais alto grau de sacralização e eram os modelos para a fé draconiana. No entanto, onde estava esse respeito nas palavras de Helena e no riso de seus familiares?

Boris alisou sua barba escura e pousou a mão sobre o tampo da gaiola.

— Este é o ovo de um deus, minha sobrinha. É o ovo de um dragão. Fiz uma viagem muito longa para encontrá-lo na montanha Ouroborus.

O nome do lugar era familiar a qualquer interessado por dragões que estudasse sua gênese. Em Ouroborus havia um vulcão que, segundo o livro de Marduk, era o útero divino, onde após o intervalo de centenas de anos, iniciava-se, a cada solstício de inverno, o nascimento de deuses. Era assim que os dragões vinham ao mundo e construíam seu panteão até o fim de uma era. E o primeiro desses deuses estava ali, bem diante deles.

Apesar disso, Seph estava aborrecido pelo fato de não ter conhecido Ouroborus. Sempre quis visitar o nascedouro dos dragões e sentiu muita inveja — e desgosto— do pai ao descobrir que o destino da viagem misteriosa de dois meses atrás era essa montanha. Fora injusto não tê-lo levado, por mais que sua relação paterna não fosse nem um pouco comunicativa.

Após a tardia compreensão da prima, Boris pediu que se aproximassem, um por um, para tocarem no ovo. O próprio chefe da família escolheu a ordem da aproximação. Claro, Seph não duvidou que fosse o último. Já se acostumara ao descaso de Boris, e mesmo se isso o incomodasse, não havia espaço para alimentar desavença sentimental entre pai e filho. Toda sua atenção recaia sobre o iminente toque com o ovo. Observou os mais velhos se deleitarem com a experiência e quase não conseguiu se conter de ansiedade.

Enfim, chegou sua vez.

Seph deu passos mais lentos e delicados que os de qualquer outro familiar. Não ficou acocorado como os demais, apenas curvou o corpo, enfiou a mão pelo largo intervalo das grades e tateou a superfície do ovo. Não era como tocar em um ovo de galinha, tinha um contato quente e áspero. Sentiu uma energia agradável arrepiá-lo da ponta dos dedos às extremidades da cabeça e dos pés. Seph imaginou que também conduzia algum tipo de energia para o interior do ovo, formando, assim, o trâmite espiritual de uma futura amizade.

— Olá — o garoto murmurou, e o filhote pareceu responder quando Seph sentiu uma onda de energia mais extasiante.

O deleite foi rasgado pela voz do pai:

— Já é o bastante, Seph

O menino desencostou a mão e retrocedeu três passos, lentamente, sem abster-se do contato visual, imaginando quando poderia tocá-lo mais uma vez.

E tão logo lhe deu as costas, susto!

Ouviu o singelo som de uma rachadura. Descrença. E passou a escutar uma sucessão de sons fendidos, paulatinamente contínuo, enquanto sentia seu mundo imaginativo se abrir numa torrente de sentimentos. Expectativa e medo. Aceitação. Deslumbramento, gozo e fantasia. A casca ia se rompendo. O dragão ia nascendo.

Não se ouviu um rugido capaz de tremer as tábuas de madeira ou mesmo aventar fios de cabelo, e sim um gemido caloroso, entre veios fumarentos, que prometia aquecer o tempo e o espaço do mundo.

_ _ _ _

Seph foi servido de um chá fumegante. No entanto, apenas enlaçou os dedos na asa da xícara, pois bebia as preocupações advindas da informação que acabara de ouvir.

Após ter caminhado sem pausa numa estrada margeada por uma paisagem homogênea, sem notar um único ponto de referência indicado no mapa, desconfiara se todo aquele descampado salpicado por casas bem esparsas fazia parte de seu trajeto. Pensou em aguardar um viajante surgir na estrada para sanar a dúvida, porém achou mais vantajoso bater à porta de um camponês, aproveitando também para encher seu odre com água. Escolheu um casebre construído com tábuas de madeira, e quem o atendeu foi uma mulher miúda de cabelos brancos e pele rugosa.

— Em que posso ajudar, forasteiro? — indagou ela, bastante solícita.

— Não quero a incomodar por muito tempo, senhora. Mas se ainda preserva um bom conhecimento destas terras, por favor, poderia me dizer se esta estrada realmente me levará à cidade de Brigodânia?

Na verdade, havia mais perguntas. Queria saber outros pormenores do trajeto: o tempo de caminhada até a cidade, porque não confiava na precisão de seus passos; se havia algum atalho que pudesse tomar, pois preferia manter distância da estrada, e um viajante sem cavalo era mais passível de chamar atenção indesejada. A mulher respondeu a ele:

— É natural que os viajantes se sintam perdidos por aqui. Mas não está muito longe da ponte de madeira que atravessa o rio do Cajado. Assim que a ver, descerá o declive à esquerda e seguirá a leste, sempre com a margem do rio ao seu lado. Uns quatro dias e meio de caminhada é o suficiente para chegar a Brigodânia.

Seph relembrou a alusão ao rio do Cajado e à ponte de madeira no mapa.

— Então estou no caminho certo. Muito obrigado pela informação — agradeceu ele.

— Espere. Você… não gostaria de entrar e tomar um chá?

Era um convite generoso, e Seph descobriu, nos minutos seguintes, que ele era quem estava fazendo um favor a ela, ao perceber a solidão marcada no rosto caseiro da anfitriã e a curiosidade intrínseca às perguntas que ela lhe fazia sobre sua viagem. Obviamente o andarilho elaborava mentiras plausíveis e meias verdades, até porque sua interlocutora já provara ter a mente sadia e arguta, embora tenha lhe ocorrido que ela simplesmente conheça cada pedacinho da terra onde vive. Quando Seph mentiu a respeito de sua viagem à Brigodânia, uma cidade situada na média distância entre Beltic e Agridain, ouviu-a soltar uma informação importante.

— Há dois dias, um homem que vinha de lá me falou que duzentos cavaleiros de fogo estão vigiando a cidade. Ele contou que foi revistado quando chegou à Brigodânia sem um cavalo, e sentiu-se ultrajado por ser confundido com… bem, você sabe. Aqui, tome o seu chá. — A anfitriã colocou a xícara sobre a mesa e voltou-se para a bancada. — Sabe, é bom quando tomamos quente assim mesmo.

Mas Seph não o fez, permaneceu estático até não ser mais possível distinguir, a olho nu, a espiral de vapor que subia da xícara.

Ele poderia passar despercebido pelos cavaleiros com seu rosto atual, mas havia membros do clero cujos olhares eram capazes de atravessar sua máscara de carne e enxergar o rosto de um dracocida.

— Esse homem chegou a mencionar por quanto tempo os cavaleiros ficarão em Brigodânia?

— Não faço ideia. Os tempos de luz mal chegaram e já estão se esvaindo — disse a idosa com pesar na voz, enquanto quebrava alguns ovos para despejar a gema e a clara numa panela de barro. — Não vai beber o chá? Não está ruim.

Seph encarou demoradamente a senhora, que não parava de ocupar as mãos com a culinária e agora fatiava alguns cubos de queijo. Então olhou de soslaio para um dos cantos do recinto, onde se destacava, sobre uma base de madeira, uma estátua de dragão feita de barro. Era um belo trabalho artesanal de não mais de trinta centímetros de largura e vinte de altura, uma réplica religiosa acessível a qualquer camponês que se comprometa a economizar suas moedas. Acima do dragão, pregado à parede, o mesmo cartaz de procurado que vira na taberna em Beltic. Quando voltou seus olhos para a anfitriã, ela cutucava o fogão de lenha e parecia transparecer algum nervosismo. Em seguida, Seph baixou o olhar para a xícara de chá e, enfim, sorveu o primeiro gole.

— Está frio. Nada mal. Algumas coisas quentes não me aprazem mais como antigamente.

Pela primeira vez desde que lhe entregara a bebida, a mulher descansou as mãos.

— Mas como está o gosto? — perguntou ela, sorrindo. — Os visitantes costumam gostar do meu chá.

— É gostoso. — Seph tomou mais um gole, mas… — Não consigo definir o sabor.

O sorriso da anfitriã alargou-se com intensa malícia.

— Tem sabor de morte. — disse ela, mostrando os dentes amarelos em uma gargalhada senil. — Será você? Será você? — Expressava insanidade e prazer, afastando-se da imagem de uma idosa gentil e sadia. — Há anos que um dragão visitou os meus sonhos, prenunciando que o assassino dos deuses bateria a minha porta. Desde então venho prostrando-me à janela da minha casa, para espiar os viajantes que andam sobre os próprios pés. Dizem que o maldito é amaldiçoado e não pode andar a cavalo. Além disso, o dragão me avisou que ele estaria com um novo rosto. Por isso, sempre que um forasteiro vem a mim, eu o convido a tragar uma bebida envenenada, na esperança de que um deles seja…

— Eu? — Seph levantou-se da cadeira. Apesar de ter caído naquela armadilha mortal, parecia impassível.

— Então… é mesmo você? Enfim, é você? — perguntou a velha cheia de expectativa. A pergunta feita em tom exausto implicava que já houvera inúmeras vítimas antes dele.

Seph respondeu com um olhar, alterando a pupila de seus olhos por um breve instante. A idosa abriu a boca, esbugalhou os olhos e, extasiada, exclamou:

— É VOCÊ! PELOS DRAGÕES! É VOCÊ!

— Diga-me. Que dragão visitou-a nos sonhos? — inquiriu Seph. Mas a mulher limitou-se a gargalhar, convicta de seu triunfo.

Não é a primeira e nem a última vez que um dragão prevê os meus passos, refletiu Seph. Mas, ao que parece, ele não pode precisar no tempo a realização desse futuro.

A mulher havia corrido até a estátua. Viu-a se ajoelhar e agradecer-lhes:

— Oh, deuses dragões, está feito. Está feito! Mesmo que eu morra aqui e agora, ele não tardará a perecer pelos efeitos do meu veneno.

Seph caminhou com parcimônia até a velha, que se virou na direção dele rindo e cuspindo palavras de morte ao inimigo. Em frente a ela, dobrou o joelho e disse-lhe cara a cara:

— Se refere a este veneno?

De sua boca e nariz saiu um gás amarelado que envolveu o rosto da vítima, fazendo-a aspirar do próprio veneno. A velha recuou assustada, engasgando-se e gemendo. Não demorou muito. O gás era mais efetivo que o próprio veneno diluído em bebida. A dona da casa tombou dura no chão, abaixo da estátua do dragão.

Seph perguntou-se onde estariam os demais visitantes, talvez enterrados nos arredores. A habilidade de ser imune a venenos adquirida no passado o salvou. Imaginou seu corpo esmorecendo aos olhos de uma velha desgraçada e fanática a ponto de matar inocentes, caso houvesse passado por ali antes de ter adquirido essa imunidade. Também pensou na identidade do dragão que alertara a mulher de sua chegada. Um dragão… com poderes premonitórios e com a capacidade de entrar nos sonhos. Seja quem for, ainda não o enfrentou.

O cheiro de comida o fez se voltar para o fogão. O omelete estava pronto.


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Notas finais do capítulo

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