Dracocídio (versão descontinuada) escrita por Luiz Fernando Teodosio


Capítulo 1
1º Assimetria - Passado e Futuro


Notas iniciais do capítulo

Capítulo republicado em 04/04/2017

Música para a primeira parte do capítulo (quando o Seph ainda é criança): https://www.youtube.com/watch?v=0-B0dgYDQNI
Música para a segunda parte do capítulo (quando Seph é adulto): https://www.youtube.com/watch?v=V_IbwtbAxnE



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1º Assimetria

Passado e Futuro

 

Muitas estações antes do mundo provar a mortalidade de uma era sagrada, Seph Dracomir tinha com os dragões a mesma relação que um menino tem por um amigo imaginário, a amizade íntima que nenhuma razão alheia consegue mensurar.

O garoto de dez anos os encontrava em uma terra muito distante, onde a paisagem é moldada ao bel prazer do visitante. A humanidade batizou-a de imaginação, e os aventureiros que nela entraram das mais variadas formas descobriram que, na verdade, não era uma terra tão distante quanto alguns homens mais céticos postulavam. Muitos recorrem a ela para encontrar o que a realidade não oferece, como dragões.

 — Eles existem? — Seph perguntou a sua mãe, depois que ela terminou de lhe contar uma historinha sobre homens e dragões.

— São deuses, querido. Não duvide da existência deles, ainda mais quando temos sangue divino correndo em nossas veias.

— Eu queria vê-los. Queria tocá-los — insistiu o menino.

A mãe afagou-lhe os cabelos ruivos e sorriu.  

— Um dia, Seph, uma era sagrada chegará ao mundo. Os dragões irão regressar do plano etéreo para espalhar suas dádivas entre os homens.

— A Dragonia… — Seph aprendera o termo enquanto folheava o livro de Marduk, a obra sagrada da religião draconista.

— Sim, a nova aurora do tempo dos dragões. Ela se aproxima. E, talvez, você seja capaz de vê-los, tocá-los… e amá-los.

Seph dormiu abraçado a esse desejo. Como sempre, explorou-o em terras oníricas e lá os encontrou.

Dragões.

Tais criaturas também marcavam presença fora de sua mente. Seph dormia rodeado pela temática desses sonhos. Entalhes na cabeceira da cama mostravam serpentes aladas bailando nas nuvens; chamas e cores quentes inflamavam as cortinas de seda; garras e asas delineadas meticulosamente ornavam as paredes de cor pergaminho como se desenhadas em um livro de páginas ensebadas; pinturas a óleo de cunho fantástico pendiam em molduras suntuosas; pequenas esculturas de porcelana sobre a mobília vigiavam o quarto, enquanto a maçaneta em forma de cabeça o resguardava. Havia dragões por toda a parte. Por isso, quando Seph abria os olhos, esses dragões pareciam ser mais que meros ornamentos, pareciam receber os vestígios animados dos que jaziam no universo onírico. Era como se, mesmo acordado, pudesse estender só um pouquinho a sensação de sonhar.

Não apenas o quarto, mas boa parte da arquitetura e decoração da mansão onde morava tinha os dragões como referência. Tapeçarias, estátuas, baús, portas, vitrais, entalhes de móveis, objetos de decoração, e mesmo as pedras que revestiam o chão de alguns corredores levavam a marca desse ser mitológico, incluindo o brasão da família Dracomir: um dragão vermelho tentando morder a própria cauda, em um fundo negro.

Temos sangue divino correndo em nossas veias, dissera sua mãe. Segundo o livro de Marduk, a família Dracomir era descendente dos deuses da última Dragonia, e por isso era cultuada desde tempos longínquos. Seus membros detinham alto prestígio social e eram respeitados como os mais nobres de toda a nobreza e os mais clérigos de todo o clero.

Seph era o mais novo da família. Mas a idade pouco importava quando se era um Dracomir, pois o mundo dava a ele a mesma deferência recebida por seus parentes. Nunca aceitou muito bem a razão que restringia sua liberdade além dos muros da mansão, algo como “Precisa manter sua educação pura e intacta da sujeira que enlameia a mente daquelas crianças da cidade”. Seph permanecia demasiado tempo enfurnado na residência, sem quase nenhum amigo senão os filhos de nobres, gente bastante esnobe que só vangloriava os feitos e as riquezas de suas famílias, e, felizmente, raros visitantes.

Restava-lhe apenas o primo Eddy, três anos mais velho, o único com quem arriscava transformar a mansão em um espaço de diversão, sendo o pique-esconde a brincadeira predileta aos olhos dos dragões de mármore que nunca os denunciavam. Eddy ganhava com frequência, embora, quando perdia, justificava a derrota por estar atrasado para um compromisso na cidade ou na biblioteca junto ao preceptor Sabino. Mas as brincadeiras eram ocasiões tão pouco frequentes que se fossem à noite nunca seriam vistas por uma mesma fase da lua.

Eddy tinha permissão para descer com mais frequência à cidade de Urag, o que deixava Seph invejoso, principalmente nos momentos em que o primo lhe contava sobre os feirantes abundantes na via principal vendendo toda a sorte de produtos, a quantidade de gente que perambula nas ruas, pessoas estranhas que dormiam em becos escuros e imundos, crianças correndo e se divertindo na praça onde tem aquela enorme fonte com água cuspida por um dragão de pedra, e uma garota bonita que estancava as informações seguintes de sua boca.

Seph podia contar nos dedos as vezes que tentara fugir da mansão para passar algumas horas na cidade, pois, quando descoberto, recebia no traseiro punições ardentes e sucessivas. Mas não era o castigo que abatia sua insubordinação às regras da família. Seph teria se tornado mais inquieto e malcriado, se não fosse a marcante presença dos dragões na arquitetura da residência. Ele fazia deles amigos imaginários.

Embora o culto aos dragões gerasse indiretamente sua reclusão, visto que estava ali justamente por ser um Dracomir, o menino sustentava uma relação diversa com eles. Diferente dos praticantes do draconismo, Seph os via menos como deuses a serem reverenciados do que como seres a serem respeitados, mais um laço de afeto do que uma relação de sujeição. Era essa a afinidade entre ele e um dragão, beirando a semelhança da amizade entre dois humanos. E, por muitas vezes, imaginou-a real. Imaginou um dragão real.

Seph parava esporadicamente em frente às diversas estátuas dracônicas, criando uma ligação de mentirinha com elas, até mesmo nomeando-as para se convencer de que eram tão reais quanto imaginava. Contemplava-as com fisionomia romântica, oferecia palavras que tocavam no mármore e escoavam pelo chão. Quando imprimia um olhar realista à estátua, perguntava-se como seria encontrar um dragão cuja pele escamosa receberia suas palavras como um afago. Seria uma fantasia tão deleitosa quanto imergir literal e magicamente num livro, um sonho que se experimenta acordado.

Certa manhã, Seph sentou-se em sua escrivaninha, molhou a pena com tinta e escreveu seu sonho na página de um diário.

— — —

Meu sonho é ver um dragão.

Ele o viu da beirada de um grande rochedo. Uma criatura de cornos miúdos, pele bem azulada e olhos cor de barro.

Um dragão que responda minhas palavras.

— Hoje, definitivamente, irei matá-lo.

As palavras atingiram as escamas do dragão como a ponta de uma lança embebida no caldo da crueldade. A criatura escancarou a bocarra e rugiu contra o inimigo que não aparentava temê-lo.

Esse homem, visto pelo mundo como um demônio em forma de gente, se aproximava a passos categóricos, com suas botas de couro, a capa marrom e surrada enfunando ao sabor do vento, a mão enluvada sobre o pomo da espada embainhada e o rosto insondável pelo capuz que o cobria. Assemelhava-se a imagem de um andarilho versado em perigos, dotado de bravura e impavidez imensuráveis. Mas na presença da criatura, o experiente andarilho transparecia sua aura de caçador de dragão. Ele cessou a passada a uma distância de vinte metros do inimigo e inclinou o pescoço para desafiar o dragão que tinha o tamanho de uma estalagem de dois andares. Era o menor de todos os que já havia visto.

— Pragueje com suas garras, sua cauda, e suas chamas. E eu replicarei com minha espada.

Puxou-a devagar da bainha, revelando um aço quente e de intenso vermelho como se coberto de sangue. Empunhou-a e direcionou a ponta para o dragão, que pareceu mais inquieto com a iminente afronta e rugiu na tentativa de demonstrar sua ferocidade e, quem sabe, abalar a intrepidez do caçador.

Sob o céu cinzento e sobre a terra regada, homem e dragão se enfrentaram. Garras tentaram rasgar a cota de malha sob a túnica escura junto ao peito do caçador, em vão. Uma, duas, três evasivas seguidas. Uma rabanada tentou acertar o alvo, mas este contornou um rochedo a tempo de fazer o ataque colidir com a pedra, que resistiu ao choque, enquanto o homem se manteve seguro do outro lado.

Como o terreno era pontuado por rochas com formas e tamanhos variados, algumas delas até maiores que o dragão, o caçador presumiu estar em vantagem geográfica. A criatura era desprovida de asas eficientes. Nas raras ocasiões em que ele as esticava, podiam-se notar as membranas retalhadas. Usaria essa deficiência ao seu favor.

Sabia que as rochas não o salvaguardariam para sempre. Felizmente, os ataques incisivos do dragão sucumbiam à sua extrema habilidade de esquiva, e, com efeito, aproveitava as brechas advindas das falhas do oponente para acometê-lo, rasgando-lhe as duras escamas impossíveis de serem transpassadas por uma espada ordinária.

Mas a arma do caçador era especial. Sua lâmina vermelha estava sedenta pelo sangue do dragão, tornando o gume tão afiado quanto o instinto assassino residente no coração do dono. E esse instinto refletia-se em cada corte executado, promovendo sangrias numa criatura cada vez mais furiosa, e o furor dela transformou-se numa intensa labareda a ser despejada sobre ele.

A cólera flamejante, porém, esbraseou o rochedo atrás do qual o caçador se escondeu. O terreno dificultava a locomoção da criatura e facilitava as evasivas do caçador. Os olhos barrosos do dragão esquadrinhavam o lugar na ânsia de ver um corpo em movimento ou abrigado atrás de uma rocha, e cuspia fogo tão logo o achava, mas, em seguida, nunca descobria um cadáver carbonizado, e por isso voltava a procurá-lo. Parecia um jogo de pique-esconde, com a diferença de que achá-lo não era o bastante. A morte era o requisito para a vitória. E o mesmo valia para o outro “jogador”.

O caçador, com movimentos e pulos silenciosos, subiu no rochedo mais elevado, acima do dragão que, sem notá-lo, ainda o procurava lá embaixo. Era o ataque final. As duas mãos posicionaram a espada com a ponta voltada para baixo.

Sorriu, antegozando o triunfo. Saltou. O vento fez a capa enfunar e o capuz descobriu-lhe a face.

Mamãe falou que os deuses podem retornar na minha geração.

O dragão mal teve tempo de olhar para o alto antes de a lâmina cravar-se quase por inteira em sua cabeça. Seu rugido de agonia ecoou pelas nuvens cinzentas como o ribombar de um trovão. As pernas fraquejaram, os olhos se fecharam, a boca silenciou-se gradualmente, e seu corpo pesado desabou sobre as rochas menores, sacudindo o terreno pela última vez.

Mal posso esperar pela chegada da Dragonia.

O caçador respirou fundo e, então, puxou a espada da cabeça. Sangue em profusão escorreu pela lâmina que, por fim, revelou-se fria e prateada como a de uma espada comum.

Quero conhecer muitos dragões.

— Quatro já foram. Restam cinco.


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Notas finais do capítulo

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