Coração Sangrento escrita por Emmy Tott


Capítulo 3
O baile




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Embevecida pela névoa, Saint Shadow viu chegar a noite do fatídico dia em que seria o baile. O Conde não economizara para garantir que sua decadência não saltasse aos olhos de seus ilustres convidados. É claro que para isso tivera que aumentar os impostos sobre suas terras, fazendo com que seu povo se tornasse ainda mais miserável. Mas os protestos de profunda revolta não ofuscariam o brilho de seu evento. Cegos para os problemas sociais de Saint Shadow, os convidados encontraram uma festa de muito bom gosto, decorada com o mais alto requinte. Nancy e sua filha, Anne, vestiam uniformes alinhados e serviam os canapés com elegância. Qwilleran deixara o comando da charrete para abrir a porta e recepcionar os convidados como um perfeito mordomo. Thomas, é claro, fora proibido de chegar perto do evento. Paul também não estava ali, desculpou-se com o pai, pois não apreciava festas extravagantes e preferiria permanecer recluso, fazendo orações às irmãs e mantendo sua alma casta.

O Conde, como bom anfitrião, era sorrisos e simpatia com todos os moços que travava conversa, tentando convencê-los desde logo que fazer parte de sua família era um privilégio ao qual não podiam deixar escapar. O clima, apesar de ameno, não deixava passar a pompa da ocasião. Por trás dos sorrisos e das conversas despreocupadas, estava a tensão da espera. Quando finalmente Berith e Sophia apareceram no topo da escada, todos os olhares se voltaram para elas. Enquanto desciam as escadas, o Conde as apresentava como debutantes, apesar de já terem passado da idade. Vestiam vestidos novos, que o pai mandara fazer especialmente para a ocasião. Berith não se cabia em si, era a primeira vez que se lembrava de ter algo tão lindo para se vestir. Desceu as escadas com a cabeça erguida e o olhar altivo, para se mostrar inatingível. Sophia veio logo depois, mostrando-se mais discreta que a irmã. Seus olhos não desgrudaram do chão até alcançar o fim da escada. Odiava ser exibida como um pedaço de carne que estivesse à venda.

Todos aplaudiram as moças, e então as conversas voltaram a desfiar. Não tardou para que os jovens começassem a tentar se aproximar das moças. William Coubert, filho do Xerife de Kelso, conversava com o Conde sobre sua formação na Alemanha a fim de que ele o achasse adequado para Berith, enquanto a mesma tentava chamar a atenção de Sir John Redruth, recém nomeado cavaleiro pelos serviços prestados à Coroa Britânica. Apesar de não ter sangue azul, estava ficando conhecido pela fortuna adquirida com o comércio mercante. Em uma de suas últimas viagens, capturara alguns piratas já bem conhecidos pela marinha inglesa, o que lhe rendera o título de cavaleiro. Sempre muito bem atenta, Berith percebeu nele um pretendente em potencial e logo tratou de se aproximar casualmente.

–Gosta do que vê? – perguntou ela, oferecendo-lhe um sorriso interesseiro.

Sir John olhou-a por um momento, mas logo voltou sua atenção para a festa, assumindo um ar de altivez.

–Seu pai tem muito bom gosto – devolveu ele, sem querer se estender à conversa.

Porém Berith era determinada, não iria desistir tão facilmente.

–Não seria descortês ao ponto de me negar uma contradança, seria?

Ele estranhou ser convidado por uma dama, mas de fato não poderia recusar. Estendeu o braço para Berith, que não perdeu tempo em agarrá-lo e deixar ser conduzida para a pista. Se fosse mais atenta ao seu par, perceberia que ele lançava olhares furtivos à Sophia, certamente ficando indignada com o desprezo de Sir John. Ele por sua vez deixou a dança correr, ignorando os comentários e insinuações da moça. Não lhe agradava mulheres salientes como ela. Damas de verdade deveriam saber se portar diante de um cavalheiro, serem discretas e contidas, sem deixar transparecer o que pensavam a não ser que fossem solicitadas a isso. Berith não era nada disso, porém sua irmã parecia o tipo certo para ele, não chamava a atenção, tinha um olhar submisso e ar de mistério, exatamente como deveria ser.

Quando finalmente terminou a dança e Sir John se viu livre de Berith, ia se aproximar de Sophia. Iria se apresentar a ela e convidá-la para a próxima dança. Iria falar com ela com cortesia e discrição, assim ganhando seu respeito. Iria.

Sophia estava distraída beliscando um canapé quando foi abordada pela figura pitoresca de Jack Hawkins. Sir John ficou sem entender de onde o aparente rival tinha surgido, e teve raiva que alguém chegasse antes dele ao seu alvo. Não gostava de perder uma competição.

***

Entrementes, vendo-se acuada pelo sujeito, Sophia não teve escapatória...

–A dama parece um pouco tensa. Não está gostando da festa que lhe fizeram? – disse ele enquanto a conduzia para a dança.

Sophia não gostava do modo como ele se dirigia a ela. Assim que se virou para dançar, sentiu como se Jack Hawkins pudesse ler seus pensamentos apenas por olhá-la. Seus olhos negros eram penetrantes, quase hipnóticos, e a observavam com insistência. Sophia teve que baixar os seus pela vertigem que a fixidez daquele olhar lhe causava. Ao respondê-lo, sentiu as maçãs do rosto corarem.

–Não a fizeram para mim. Papai está tentando salvar a família com isso.

–Ou seja, com um casamento. – Ele lhe sorria como uma raposa velha que sabia das coisas.

–Creio que sim – retorquiu ela em tom seco. Estava incomodada com a mão em sua cintura, obrigando-lhe a fazer rodopios que a deixavam tonta.

–Não me parece muito a vontade com essa situação toda. Arriscaria a dizer que não quer se casar com ninguém que seja do agrado de vosso pai.

–Ora, que escolha tenho eu? – tornou ela, tonta com o rumo da conversa. – Mesmo que não queira, terei que me casar. Pelo bem da família e de Saint Shadow.

–Falando assim parece mais que está indo para um enterro. – Sentenciou ele em um novo rodopio. Sophia parou diante dele, o encarando.

–Onde está tentando chegar?

Ele sorriu de viés.

–Você está apaixonada. Por alguém que não devia.

Sophia congelou no lugar. Jack teve que parar também, mas permanecendo na posição da dança. O que ele acabara de falar não era uma interrogação.

–Como pode achar que sabe de uma coisa como essas? – atirou ela, fazendo-se de indignada para disfarçar o medo que lhe apoderava de seu corpo.

–Sei ler olhares, minha cara... – tornou ele sombriamente.

***

Enquanto seguia a dança, Sir John não se deu por vencido e resolveu que a melhor tática para conseguir algo com Sophia seria falando diretamente com o pai. Discretamente, fez um gesto lhe chamando a um canto. O Conde parecia estar em uma discussão acalorada com um jovem rapaz e agradeceu por Sir John tê-lo tirado de lá.

–Nada me desagrada mais do que pessoas que insultam a religião, que se acham melhores que Deus com a sua ciência. Imagine que essas modernidades acabariam com a moral e os bons costumes! Quanta blasfêmia! – dizia o Conde, cuspindo as palavras com fervor.

–Quem quer que seja o biltre, não deve ser de grande valia para tão estimada família – ofereceu-lhe ele.

O Conde parecia tê-lo notado apenas naquele momento.

–Perdoe-me, não estou recordando do senhor, já nos conhecíamos antes?

–Lastimo que não. Mas nada que não possa ser reparado, permita-me que me apresente – fez ele com um gesto para si próprio. – Sou John Redruth, comerciante em Bristol, recém-nomeado Cavaleiro pela Coroa Britânica.

–Um burguês? – tornou o Conde, com uma pontada de decepção na voz. – Olhando assim parece até que tem sangue azul.

–Realmente o berço não me abençoou, mas tenho lucrado muito com as minhas viagens, sem falar no prestígio junto à Corte. Tenho reputação invejável em Bristol.

–Logo se vê que é um bom rapaz. E temente a Deus, caso contrário não seria tão agraciado na vida – elogiou o Conde.

–Sempre. Nunca deixei de orar um dia sequer durante as minhas viagens – completou ele. - Agora que tenho a vida ganha, só me resta encontrar uma boa esposa com quem possa formar uma família. Uma moça talvez como a sua filha Sophia – acresceu depressa, não deixando passar em branco a oportunidade.

O semblante do Conde logo se iluminou com aquela fala.

–Sophia é uma moça excelente, muito bem educada para cuidar do lar e bem dotada, além de ser muito religiosa, como a mãe – tratou ele de elogiar. – O homem que casar com ela será um felizardo.

Sir John sorriu cordialmente, concordando com a cabeça.

–Com tantas qualidades, eu adoraria conhecê-la um pouco mais.

O Conde, como bom negociador que era, tratou logo de mostrar a mercadoria mais de perto.

–Venha comigo, irei apresentá-los. Tenho certeza de que irá apreciar sua companhia também, Sophia é o meu tesouro – completou ele com uma piscadela.

Sir John seguiu o Conde para o meio do salão, aproximando-se de onde Sophia ainda dançava com Jack, embora os rodopios houvessem parado.

***

–...O Senhor é muito inconveniente...

Ia dizendo Sophia quando ouviu a voz do pai atrás de si. Jack ainda ria com deboche quando ela se virou para respondê-lo.

–Pois não, papai?

–Venha comigo querida, gostaria de lhe apresentar um fino cavalheiro.

Sophia, percebendo a importância daquele pedido implícito na voz do pai, procurou rapidamente um meio de escapar.

–Perdoe-me, ainda estou dançando com o senhor Jack Hawkins...

Ainda que inconveniente, pelo menos ele não se aplicava a um pretendente propriamente dito. Ao que tudo indicava, Jack Hawkins estava ali apenas para se divertir às custas da nobreza.

–Com quem? – questionou o Conde, franzindo o cenho.

Ao se virar para prosseguir na dança, constatou que ele havia sumido. Que patife!

–Ele estava aqui agora mesmo... – disse ela com pesar na voz.

–Em todo o caso, isto é importante – reforçou ele.

Sophia deu uma rápida olhada em Sir John. Nada em seu semblante lhe dizia que se simpatizaria por ele.

–Claro... – Fez ela, indo com o pai, sem escolha.

Os olhos frios de Sir John tocaram os castanhos de Lady Sophia, e ela abaixou os seus. Ele sorriu com a atitude dela, que julgou por timidez casta.

–Sir John Redruth, Cavaleiro da Rainha, comerciante de tradição em Bristol – dizia o Conde cerimonioso, fazendo um gesto até ele, em seguida voltando-se para a filha. – Sophia Straw, minha doce e casta filha.

Sophia suava frio quando Sir John segurou sua mão direita, levando-a até os lábios e beijando em um cumprimento respeitoso. Ao longe, Berith cravava seus olhos sobre eles, consumida pela inveja.

–É um prazer, Milady.

–O prazer é todo meu – respondeu ela com voz fraca.

–Creio que os dois têm muito que conversar – interpôs o Conde. – Porque não vão caminhar um pouco pelo salão? – sugeriu.

–Acho que não será do agrado de Sir John, papai. Nada do que eu tenha a dizer poderia ser interessante para alguém como ele – tentou esquivar-se ela.

Sir John sorriu com simpatia.

–A modéstia também é uma das qualidades de que admiro muito.

O Conde os olhou, satisfeito.

–Eu disse que se dariam bem... – aprovou ele. – Irei deixá-los à vontade, com licença – acrescentou depressa, voltando à circulação.

Ao ver-se a sós com ele, Sophia assumiu um ar de seriedade, tentando camuflar a tensão pela situação a qual o pai a metera. Sir John ofereceu-lhe o braço, o qual ela hesitou por um momento, sem saber como agir. Não queria que ele a achasse um bom partido.

–Vamos, garanto-lhe que não mordo – incentivou ele em um galanteio.

Sophia aceitou o braço em silêncio, deixando que o mesmo a conduzisse pelo salão. Sir John andava de maneira elegante, sorrindo muito e mostrando-se sempre cortês.

Enquanto ele tentava ganhar a confiança de Sophia, o fardo da irmã era a inveja de Berith. A moça não se conformava que um sujeito tão bonito e tão bem vestido se interessasse por alguém tão entediante quanto à irmã. Ela é quem devia ser a estrela da noite, era notadamente mais bonita e mais desenvolta, muito diferente de Sophia, que para ela tinha olhar de peixe morto. Tentou então achar por um partido tão bom quanto Sir John e chamar sua atenção com sua beleza estonteante. Porém, não lhe restavam muitas opções. O jovem William Coubert, após a discussão fervorosa com o Conde, tratou logo de sair à francesa. Não queria estar em casa de gente tão retrógrada. Alguns outros seguiram o seu exemplo, restando ao fim pouco mais que meia dúzia de pessoas, que somadas não rendiam por um único que valesse a pena. Jack Hawkins ainda estava por ali, mas parecia muito mais concentrado em se embebedar do que arranjar casamento. A imagem desgastada perante a Corte não rendera tantos convidados interessantes ao Conde quanto ele imaginara. Frustrada, deu uma olhada para o novo par que era alvo de suas preocupações. Jamais perdoaria a irmã por tê-la traído, roubando seu pretendente...

–...É como eu digo, os valores da sociedade estão mudando, logo não será a terra que decidirá quem tem mais ou menos poder – ia dizendo Sir John enquanto arrastava Sophia consigo. - Em Londres as coisas já são bem diferentes, e mesmo sem possuir terras ou ter sangue azul tenho muito prestígio junto à Corte. Com as minhas posses e os contatos que tenho, estou certo que logo conseguirei uma cadeira permanente no Parlamento. Um casamento seria providencial.

–Claro, status é tudo... – tornou ela com voz morta.

Ele sorriu de canto, olhando-a de esguelha. Certamente não havia percebido a ironia implícita em sua voz.

–Aprecio muito sua atitude, certamente dará uma esposa exemplar.

–Exemplar para quem? – quis saber ela, erguendo os olhos.

–Para a Corte. Sei que nunca serei nobre, mas o casamento com uma moça de sangue azul seria visto com bons olhos diante da alta roda. Além disso, estive observando que tem bons quadris para o parto, isso é excelente, pois vou querer muitos filhos – ele disse, como se fosse um elogio.

Sophia o olhou, horrorizada. Ao longe, seu pai a incentivava com o olhar. Ela conteve sua vontade em fugir dali, respirou fundo e assumiu um ar de seriedade.

–Se acha...

Sir John continuou falando sobre si próprio e seus feitos, porém Sophia estava muito distante dali, mal ouvindo o que ele dizia. Felizmente ela não precisava se esforçar em respondê-lo, bastando apenas alguns monossílabos quando ele fazia alguma pausa ou a olhava como se esperasse que ela dissesse algo. Certamente os interesses e ideais das moças não era algo digno de atenção por parte de seus pretendentes.

Ao término do baile quase não restava ninguém, e Berith fora se juntar ao pai, exibindo uma máscara de azedume e descontentamento na voz.

–Sua filha é uma moça encantadora, Milord! – elogiou Sir John ao ir se despedir do Conde. Sophia vinha logo atrás, com o olhar triste.

O Conde sorriu de satisfação.

–Sinto-me lisonjeado com o seu apreço.

–Apenas digo a verdade... – tornou ele, sempre cortês. – E aproveitando da ocasião, gostaria de pedir humildemente sua benção para que eu volte amanhã. Nada me faria mais feliz que estar novamente em companhia de tão adorável donzela.

–Meu caro rapaz, as portas dessa casa estarão sempre abertas para recebê-lo. É claro que tem toda a minha permissão para cortejar minha filha – exclamou o Conde com um largo sorriso.

Sir John se despediu de Sophia com um beijo casto em sua mão. Ela não conseguiu olhar para ele, sentia a náusea lhe invadindo o corpo. Ao ir se deitar, o olhar frio de Berith caiu sobre ela. Sophia, porém, estava sobrecarregada demais para notar qualquer hostilidade vinda da irmã.

–Você me paga, Sophia! – proferiu ela, espumando de raiva.

Os problemas de Sophia estavam apenas começando...


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