Coração Sangrento escrita por Emmy Tott


Capítulo 2
A decisão do Conde




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Antoinette se encontrava no parapeito de uma das gigantescas janelas do casarão, apreciando a paisagem à sua frente. Três anos depois de casados, Stanislau ainda se deslumbrava com a beleza de sua jovem esposa. Ela era altiva e delicada, exatamente como uma dama deveria ser, mas seu encanto não terminava aí. Para o Conde de Warrington, Antoinette era um presente divino, que veio a extinguir seus dias de solidão e luta. Stanislau se julgava um homem abençoado. A mulher já lhe dera duas lindas filhas, e não tardaria a vir o filho homem que ele tanto desejava, aquele que ficaria incumbido de dar prosseguimento a sua linhagem.

Com esses planos, Stanislau se aproximou da esposa lentamente, observando o balanço do tecido nobre de seu vestido sob a brisa fresca da manhã ensolarada. Entretanto, Antoinette se virou antes que ele pudesse alcançá-la. Seus grandes olhos cor de mel estavam atormentados.

–Desculpe, não queria assustá-la – disse Stanislau, preocupado. Por vezes, a mulher lhe parecia um tanto frágil e arredia, o que lhe atraía ainda mais, muito embora seus modos, embrutecidos pela lida com os camponeses, lhe deixassem sem jeito para lidar com um ser tão vulnerável.

–Estava aqui pensando – respondeu ela à pergunta implícita do Conde.

–Pensando? Porque quando se tem essa vista? Algo não está lhe agradando?

–Não, não é esse o caso, me sinto muito feliz aqui, mas... – Ela titubeou, lançando um olhar ao longe, que recaiu sobre sua primogênita. Nancy a levava consigo para o quarto.

–Por favor, Antoinette, diga o que quer que seja! – Implorou ele, muito preocupado, tomando-lhe a mão direita entre as suas. – Não quero que se aborreça com nada, poderia fazer mal ao filho que está esperando.

–Ele ficará bem. É com Sophia que me preocupo.

–Com Sophia? – Repetiu ele, sem entender.

–E com Berith também, claro! Preocupo-me com a segurança delas, temo que não encontrem maridos adequados para ambas.

O Conde sorriu para as preocupações de sua jovem esposa.

–Ora, isso se arranja, não há nada para se preocupar. Elas agora são muito pequenas, mas quando chegar a hora, estou certo de que não lhes faltarão bons pretendentes. Sou influente na Corte e tenho título de nobreza, isso conta muito nessas horas.

–Mas, mesmo assim... Promete que irá protegê-las? Promete que, se algo me acontecer, você cuidará para que elas e esse filho que carrego fiquem bem?

–Bobagem, não acontecerá nada a você. Está segura aqui, o que poderia lhe acontecer de ruim?

–Não sei, é apenas uma hipótese...

–Não gosto disso, pare com essas besteiras. Nossa família está perfeitamente bem e Deus cuidará para que todos nós tenhamos uma vida longa e próspera.

–Eu sei, eu sei, mas me prometa mesmo assim, para que eu fique mais tranquila.

–Estou certo de que isso não é necessário...

–Por favor...

O Conde suspirou, se rendendo à mulher. Se ela precisava da sua palavra para se sentir segura, ela a teria.

–Antoinette – começou ele, olhando firmemente para seus olhos castanhos. – Eu prometo que farei o que estiver ao meu alcance, que protegerei nossos filhos com minha própria vida, se assim for, que não os abandonarei sob hipótese alguma, e que cuidarei para que nossas filhas casem com gente decente.

Seus olhos então brilharam. Um brilho sincero e intenso que encantou ao Conde. Era a primeira vez que Antoinette lhe demonstrava tamanha afeição.

–Obrigada, Stanislau – disse, e seu agradecimento vinha do fundo de sua alma.

O Conde não pôde se conter e selou seus lábios sobre os doces e macios lábios de Antoinette. Ela se surpreendeu com a demonstração de carinho em plena luz do dia, mas não podia rejeitar ao marido...

***

–Papai?

Pancadinhas suaves, mas urgentes, despertaram o Conde de Warrington de seus devaneios. Ele estava fechado em seu gabinete, com uma garrafa de whisky pela metade sobre a mesa. Levou algum tempo até que se refizesse para responder a filha.

–Papai, o senhor está aí? – Repetiu ela em tom de preocupação.

–Claro, entre!

Sophia não esperou por uma segunda resposta para abrir a porta. Adentrou o recinto, ficando momentaneamente tonta com o cheiro de álcool impregnado no local. Sabia muito bem que o Conde se tornava perigoso quando se trancava em seu gabinete para se afogar às lembranças e ao whisky, por isso se aproximou com cuidado.

–Padre Bernard já o aguarda na sala, meu pai. - anunciou ela em tom receoso.

O Conde olhava para a filha como se nunca a tivesse visto antes, com olhos envenenados. Ficaram se encarando por um momento que a ela pareceu uma eternidade, até que finalmente conseguiu gesticular com as mãos, as palavras se embolando todas pelo estado de embriaguez.

–Já vou...

Sophia tratou logo de deixá-lo a sós para se refazer, indo se reunir aos demais com um sorriso dissimulado nos lábios que não enganava nem a sua imagem refletida no espelho às suas costas.

–Papai não estava muito bem disposto, por isso pediu que me desculpasse em seu nome e mandasse Nancy preparar a mesa enquanto não pode descer.

Guiados por Nancy, os presentes se dirigiram para a sala de jantar com letargia. Era um aposento simples, apesar da ostentação que possuía em tempos remotos. A peça que dava o ar de imponência de outrora ficava a cargo de um quadro de um metro e vinte de altura acima da lareira, majestosamente ornado de ouro, que exibia uma Antoinette congelada nos seus eternos vinte e cinco anos de idade. Ela não sorria, mas parecia observar a tudo com olhos de coruja astuta, julgando quem passasse por ali. Seus traços lembravam muito os de Sophia. O Conde ensinara os filhos a venerarem aquela Antoinette, sempre oferecendo alguns minutos durante as refeições para orar por sua alma e enaltecê-la. Todos os dias, Antoinette os acompanhava como se ali ainda estivesse, como um fantasma que se recusava a ir embora.

–Uma santa! – Declarou o Padre assim que passou os olhos por ela, fazendo o sinal da cruz antes de se sentar, no que foi seguido pelos filhos da defunta.

–Traga-nos o cordeiro, Nancy. – Falou Sophia com um sorriso cordial.

–Está certa de que seu pai não ficará aborrecido se não o esperarmos? – preocupou-se o Padre, sabendo que o Conde costumava ficar alterado após um tempo trancafiado no escritório.

–Ele já vai descer e, em todo caso, detestaria que seu ilustre convidado ficasse mal acomodado pelo seu imprevisto. Não gosta de falhas quando se é o anfitrião.

O Padre então fez uma concessão, afinal estava faminto. Nancy logo trouxe o prato e os serviu junto a uma taça de vinho.

–Que Deus em sua infinita bondade abençoe este sagrado alimento para que nunca nos falte o que comer. – Rogou o Padre com as mãos pra cima e olhos fechados, esperando pelo “amém” dos outros para começar a saborear o prato.

Meia hora depois o Conde ainda não havia aparecido. Paul resolvera então travar conversa com Padre Bernard sobre o seminário, enquanto esperavam.

–Papai não compreende minha vocação de ser padre, mas a cada dia que passa mais me convenço de que o seminário é a minha predestinação. Ficaria imensamente feliz em me doar aos ensinamentos da Igreja e ao Nosso Senhor Jesus Cristo.

–Seu pai é um homem cauteloso, ele sabe que o dom vem de Deus. O seminário não é lugar de fuga, Paul. Não encontrará alento nem conforto a sua dor por lá. – Dizia o Padre sabiamente, sabendo que o atormentava o fato de julgar a si próprio como o causador da morte de sua mãe.

Paul então se retraiu em silêncio e melancolia.

–Sei disso – Disse, resignando-se a olhar para os pés. Há anos tentava convencer o pai e o Padre de o ingressarem na vida religiosa. – Apenas é o caminho que o coração me incita a seguir. O celibato, uma vida de orações e sacrifícios, tudo o que aproxima um bom cristão de Deus.

–Sua atitude é louvável, mas você ainda é muito jovem, Paul. Quando chegar a hora, conversaremos sobre isso com mais seriedade e cautela – concluiu o padre.

Quando o Conde enfim apareceu, todos já haviam terminado de comer. Mas, em sua consideração, se ergueram da mesa e aguardaram que se sentasse, em silêncio. Estava refeito, muito embora as manchas escarlates em suas maçãs denunciassem sua bebedeira, assim como o passo lento.

–Por favor, queiram se sentar. – Fez ele com um gesto brando, sentando-se em seguida.

Os outros fizeram o mesmo e Nancy logo o serviu em seu prato. Ele não comeu. Ao invés disso, dirigiu-se ao Padre e aos filhos com um sorriso cansado.

–Alegra-me muito recebê-lo em meu lar, especialmente hoje. Sempre precisamos de Deus e de Jesus para caminhar. Espero que meus filhos tenham sidos hospitaleiros com o Reverendo.

–É sempre um prazer estar em casa de tão estimada família. – Declarou o Padre, envaidecido com a fala de seu anfitrião. – E seus filhos, muito bem educados e tementes a Deus, como sempre.

Berith e Sophia agradeceram sorrindo placidamente, enquanto Paul limitava-se a encarar o próprio prato a sua frente, alheio ao que acontecia a sua volta.

–Quero aproveitar que estamos todos reunidos aqui para dizer que refleti muito sobre o que o senhor pároco me disse hoje de manhã e acabei me lembrando de uma promessa que fiz à minha santa esposa pouco antes que ela nos deixasse.

–Que promessa? – Quis saber Berith. Até Paul voltou a erguer a cabeça, antevendo que vinha algo importante.

–A de que não mediria esforços até que encontrasse bons maridos para você e Sophia. Na época não dei muita importância, mas agora vejo que Antoinette tinha razão.

Berith logo sorriu, animada com a possibilidade de se casar.

–Bons maridos quer dizer ricos?

–Quer dizer pessoas de boas famílias, que dêem valor à terra e aos valores éticos e morais da Igreja Católica.

Sophia sentiu um peso em seu estômago ao ouvi-lo falar. Sem saber por que, a imagem de Thomas lhe veio à mente, e ela calculou que nada de bom poderia vir de um casamento arranjado pelo pai.

–Para trazer esse assunto a tona, creio que já pensou em um modo de fazê-lo, certo? – Questionou o Padre.

–Sim, tive uma ideia e creio que trará bons partidos para Saint Shadow, se fizer chegar os convites às mãos certas. Vou organizar um baile até o fim do mês, fazendo o sacrifício que for preciso para tanto. Os jovens de hoje apreciam esses eventos sociais e creio que dessa forma atrairei rapazes de famílias consideradas, quem sabe até nobres.

–Mas papai, não creio que tenha tanta pressa em se arranjar... – Exasperou-se Sophia, mal conseguindo concluir seu pensamento.

–Eu já estou velho, minha filha. Logo não estarei mais aqui para protegê-las, e mesmo que não, nossos recursos são parcos e mínguam ano a ano, logo não terei mais como sustentar essa casa. Casando-as, estaria salvando nossa família da miséria. Quem sabe podemos até voltar às altas rodas, hoje em dia muitos jovens querem moças de sangue azul, temos que nos aproveitar disso.

–Seu pai tem toda a razão e podem contar comigo para o que for preciso. Certamente Deus abençoará Saint Shadow através dos casamentos e nos trará tempos de bonança. – Sentenciou Padre Bernard, apoiando a ideia do baile.

Berith não se cabia de tamanha felicidade. Chegou à ousadia de plantar um beijo nas bochechas do pai.

–Obrigada, pai, muito obrigada! – Comemorava ela. – É o melhor pai do mundo!

Sophia adquirira a postura melancólica de Paul. Esperava que nenhum dos moços se interessasse por ela, pois sabia que se isso acontecesse, não teria escolha.

***

Sophia chegou ao seu encontro apreensiva. Com a história do baile, não fora muito difícil despistar o pai, porém não conseguia se livrar da ideia de um possível casamento. Olhou para os lados nervosamente, a procura de Thomas, mas não conseguiu localizá-lo. Agora que tinha consciência de seus sentimentos, não sabia bem se o que estava fazendo era correto. Estava prestes a ir embora quando o encontrou sentado de costas sobre um rochedo ao chão. Então o contemplou por um momento antes de chamá-lo. Constatou que sua presença a acalmava de certa forma.

–Thomas? – Chamou ela em tom suave.

Ele virou-se rapidamente, sorrindo para ela e levantando-se para ir se postar à sua frente. Sophia deteve o olhar sobre ele. Estava sujo e de bochechas coradas. Devia ter corrido muito para poder encontrá-la, e parecia-lhe tão nervoso quanto ela.

–Lady Sophia! Eu cheguei a pensar que não viesse.

–Não sei bem se deveria estar aqui... – Disse ela de maneira efusiva.

Thomas tornou-se sério, olhando-a com olhos intensos.

–Mas está – Disse simplesmente.

Sophia teve que desviar os seus. Não conseguia suportar a intensidade daquele olhar. Olhou pra baixo, brincando com uma mecha de cabelo, tentando disfarçar seu nervosismo para ele.

–Você disse que tinha algo a me mostrar...

–E tenho... Você quer ver?

Sophia voltou a olhá-lo. Seu rosto brilhava. Ela lhe ofereceu um sorriso que desmanchava pelas beiradas.

–Quero...

–Venha comigo então. – Tornou ele, puxando a mão da moça junto de si.

Ela teve que segui-lo de perto. O contato entre as mãos fazia disparar seu coração. Ela lutou para que ele não percebesse. Andaram por alguns minutos até que Thomas parou ante uma clareira. Sophia pode ver um lago logo à frente. Embora tivesse crescido naquelas terras, nunca estivera ali antes.

–É aqui. – Anunciou ele, soltando suas mãos.

–É bonito...

Ele lhe sorriu de volta, misterioso.

–É melhor se sentar, a mágica já vai começar.

Sophia olhou-o sem entender. Sentando-se sobre a grama, Thomas indicou que ela se sentasse ao seu lado. Ela franziu o cenho, mas fez o que ele pedira, imaginando o que o amigo estava tramando. Eles ficaram assim por um longo tempo, parados e observando o lago. Sophia tinha vontade de olhar para Thomas, de indagá-lo, mas tinha medo que ele lesse seu olhar. Sentindo Thomas tão próximo de si, sentiu que as maçãs de seu rosto queimavam, e um calor que lhe era estranho tomava conta de seu corpo.

Lentamente o sol foi se aproximando da superfície brilhante do lago. Quando finalmente o grande círculo de fogo se encontrou com as águas no horizonte, Sophia entendeu o que Thomas queria dizer. O encontro das cores tingia o cenário de forma única ao se fundirem, pintando o céu em um dégradé suave, mas majestoso. Acima a lua já se preparava para assumir o seu posto, em um azul pálido. Enquanto isso o laranja do sol ia se consumindo com seus raios sendo engolidos pelo lago, que os absorvia em suas entranhas negras e místicas. Lá longe gaivotas voando completavam a paisagem. Sophia sentiu lágrimas descerem pela face ante a emoção daquele momento mágico. Era a primeira vez que via o pôr do sol.

–É tão lindo... – Disse ela, exaltada, sem tirar os olhos do horizonte.

Thomas podia sentir a vibração vinda dela, cada pedacinho de seu corpo sendo atraído para ela com força sobre-humana. Posou sua mão sobre a de Sophia, que descansava junto à grama. Ambos sentiam a sintonia que os unia, envoltos pela inebriante visão daquele pôr do sol extraordinário. Era como se fizessem parte daquilo tudo. Como se pudessem fundir junto à paisagem, em um quadro pintado pelas próprias mãos de Deus. Quando Sophia virou-se para ele e Thomas viu aquele olhar que lhe pertencia, não pôde resistir. Foi tão natural quanto o pôr do sol: Seus lábios se encontraram com os dela, colando-se em um beijo ardente de paixão. Ficaram entregues àquele momento, alheios a tudo. Sophia ainda sentia seu coração descompassado, mas o encontro entre seus corpos lhe descrevia um ritmo diferente. Thomas movia os lábios sobre os dela com ansiedade. Eram lábios que se pertenciam, que não precisavam de permissão para se tocar. Sophia foi consumida por aquele beijo por um momento que lhe pareceu eterno. E então tudo acabou.

Dando-se conta do que estava fazendo, Sophia empurrou Thomas pra longe e levantou-se de imediato. Estava corada e ofegante. Thomas se levantou também, não se intimidando com aquele gesto. A escuridão da noite havia tomado conta da floresta.

–Eu a amo, Lady Sophia. – Disse ele, enchendo-se de coragem.

–Por favor, Thomas... – Tornou ela, virando-se de costas. – É um amor impossível...

Ele por sua vez aproximou-se, segurando-a pelos ombros e encarando seus olhos assustados de forma intensa.

–Diga-me então que não sente nada por mim. Eu sei que é mentira, você também quis aquele beijo, e está tremendo agora.

Sophia tentou se sustentar, mas achava-se fraca em seu desejo febril. Thomas a segurou entre os braços, sustentando-a em seu peito. Ela por sua vez agarrou-se a ele, mal conseguindo dizer algumas palavras devido às lágrimas que lhe assaltavam.

–Thomas... Nós não podemos, não podemos... Por favor...

–Sei que não... Mas não posso mais lutar contra o que sinto...

–Papai o mataria se soubesse... Mataria a mim também. – Disse ela em tom fúnebre, limpando o rosto com as mãos.

–Ele não vai ficar sabendo, não tem por que.

–Não Thomas, escute! – Exasperou-se ela, erguendo os olhos para encará-lo. – Meu pai vai dar um baile...

–Um baile?

–Sim. Um baile para arranjar pretendentes, ele quer casar a mim e a Berith o mais rápido possível.

–Mas... – Começou ele, com pesar. – Porque isso?

–Por causa de uma promessa, não sei... Nós não podemos mais nos ver.

Sophia se afastou, abaixando os olhos.

–Você quer se casar? – Questionou ele, incrédulo.

–Eu não tenho escolha... Terei que me casar com quem ele decidir.

Thomas ficou em silêncio por um tempo, tentando digerir aquela conversa.

–Você não precisa se casar... – Começou ele, escolhendo as palavras. – Poderia fugir comigo se quisesse...

Sophia encarou-o, atônita.

–Fugir? Mas fugir como? E para onde?

–Eu não sei, para um lugar onde não nos conheçam... Paris talvez...

–Você teria coragem, Thomas? Teria coragem de abandonar a terra que te alimentou por toda a vida? De se desligar de seu lar, sua família, ser ingrato a esse ponto? Padre Bernard diz que essa é uma heresia sem tamanho...

–As coisas não são bem assim, Lady Sophia. Você não sabe por que vive na casa grande, mas o que colhemos mal dá para nos alimentar. Converso com os comerciantes em Kelso, eles dizem que em Paris as coisas já são diferentes. Dizem que por lá as pessoas não são ligadas à terra, que os homens são senhores de suas próprias vidas. Mesmo em Londres já existem fábricas, e as pessoas recebem para trabalhar, têm dinheiro para comprar seus alimentos no fim do mês. Muitos camponeses já fugiram em busca de melhores condições de vida.

–Não diga uma coisa dessas, Thomas, é um pecado terrível, sem perdão. – Disse ela balançando a cabeça em desespero.

Thomas a olhou profundamente.

–Eu lamento que pense assim... – Disse lentamente, com a voz cansada. - Mas talvez esteja mesmo certa... Perdoe-me por tê-la incomodado hoje.

Thomas virou-se, preparando-se para ir embora, quando Sophia sentiu um aperto no peito ao pensar que não o veria mais. Não queria ter que se despedir dele assim.

–Thomas, espere! Não precisa ser assim, é só um baile afinal.

Ele estancou, olhando-a confuso.

–Um baile para escolher seu marido?

–Ele só precisa casar uma de nós. Talvez ninguém se interesse por mim e eu fique livre. De qualquer forma Berith é mais bonita e certamente vai atrair muitos olhares. Vou me esforçar para que ninguém me escolha.

–Está dizendo que quer voltar a me ver? – Disse ele com esperança na voz.

Sophia riu nervosamente, assentindo com a cabeça.

–Gostaria muito de voltar a vê-lo.

Thomas correu até ela novamente, tomando suas mãos entre as dele e as beijando com carinho.

–Me faz o servo mais feliz dessas terras, Lady Sophia.

Então se despediram brevemente para se entregarem a uma noite de sonhos e doces ilusões. Em sua paixão juvenil, nenhum dos dois poderia imaginar o destino traiçoeiro que os esperava às sombras de seus anseios, aguardando friamente o momento certo para lhes cravar seu punhal de ferro...

***

Permitam-me que lhes apresente agora um personagem singular de nossa história. Ele já estava há algum tempo em Saint Shadow, embora quase ninguém soubesse de sua existência devido aos seus hábitos pouco ortodoxos. Vestia-se de maneira extravagante e tinha um sotaque indecifrável. Cabelos negros e oleosos escondidos sobre a cartola e pele alva, tão alva que quase parecia doente. Tinha grandes olheiras, pois passava as noites em claro, muitas vezes em bares, bebendo até tarde. Sua natureza misteriosa não demorou a ser notada em um desses lugares, o qual ele passara a visitar com certa frequência. Muitas vezes questionado sobre seus motivos de estar ali, em uma cidade tão pequena e monótona que a ele devia ser tediosa, respondia-lhes sempre com sarcasmos e evasivas. A ironia era, aliás, uma forma corriqueira de comunicação para nosso irreverente personagem. O nome dele era Jack Hawkins.

O fato era que a notícia do baile se espalhara com tamanha rapidez pela cidade, já que não havia muitas novidades por ali. Assim sendo, alguns dias após o encontro secreto de Thomas e Sophia, alguém chegou comentando sobre o evento que seria realizado para que se encontrassem noivos às filhas do Conde. Diziam inclusive que os convites já estavam sendo enviados para as boas famílias da região, algumas até de Londres. O comentário não passou despercebido a Jack.

–Interessante como se arranjam pretendentes hoje em dia. – Disse ele em tom casual. – Tudo é motivo para festas, do amor ao óbito.

Os outros se olharam entre si, tentando entender o comentário do sujeito.

–Seria bom se pudéssemos ir também, para variar um pouco. – Aventurou-se um deles.

–E vocês não vão? Não sei o que esperam... – Tornou Jack.

–É uma festa da elite, jamais poderíamos ir. Os convites são restritos.

–Pois vou lhes dizer uma coisa: Jack Hawkins não precisa de um pedaço de papel para comparecer a tão refinado evento.

Os outros o olharam com cara de espanto.

–Você vai? – Ousou perguntar um deles.

–Jamais perderia essa boca, ainda mais recheada de figuras tão interessantes...

–Duvido! Como vai fazer para entrar? Se seu nome não estiver na lista, será impossível.

–Pois garanto-lhes que irei, meus caros. – Concluiu ele, sorrindo de forma misteriosa.

De fato, Jack Hawkins estivera presente ao baile. Mas como, de fato, ele conseguiria tal façanha, os habitantes de Saint Shadow jamais saberiam.


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