O Mistério de St. Reeve's escrita por sora aye, Charlie Mills


Capítulo 25
Sweet Dreams


Notas iniciais do capítulo

Mesmo que eu ja tenha passado da hora de poder pedir desculpas... Desculpe pela demora.

Musica: I'm Still Here (https://www.youtube.com/watch?v=WC3PidaLO08)



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Meus olhos ardem a medida que afundo na água. Um pequeno raio de luz, que passa turvo pela superfície, é a única coisa que me permite reconhecer minha profundidade. A dor das agonizantes picadas das fadas deixam meu corpo entorpecido. Meus pulmões passam da dor para a completa falta de sensação e o que, antes pensei ser insuportável, agora me deixava apenas cansada, muito cansada. Deveria estar bem perto da morte. O som da água passando lentamente pelos meus ouvidos me lembra das pequenas mãos me puxando para o fundo do rio. Porque isso estava acontecendo? Porque eu não podia dormir em paz?

Não sinto mais nenhuma parte do meu corpo, estou completamente entorpecida. O sono começa a se apossar de mim e pouco a pouco vou fechando os olhos, permitindo-me o rápido afogamento e fim desse pesadelo. Já não sei mais se a escuridão é porque fechei meus olhos, ou porque estou muito fundo, mas logo sinto algo raspando no final do meu corpo. Devo estar muito no fundo, mais um pouco e chegarei no solo.

O tempo passa estranhamente e não sei há quanto tempo não respiro, mas parece que a falta de ar não me machuca mais. Meus pulmões não ardem, meus olhos não doem. É como se eu estivesse em paz, sem o pavor de uma morte iminente. É tudo calmo, lento, e os segundos se arrastam a medida que meu corpo afunda. Já nem sei mais se mereço voltar a ver a luz do sol.

Não. Sei que não mereço, esse era o meu lugar, no fundo do oceano. Na escuridão, abandonada do mundo. Sozinha e em paz. Uma morte boa, tranquila, mas nada digna.

Qual a honra em desistir de viver?

°_°_°_°

Acordo de supetão, ainda sentindo minha cabeça latejar pela falta de ar e pressão da água. Isso não ia dar mais certo. Ajoelho-me na cama e me arrasto até uma das gavetas embutidas, abrindo-a com cuidado pra não ranger. Retiro de dentro um pote de vidro esperando encontrar alivio, mas vejo o vazio de dentro do recipiente. Meus soníferos tinham acabado. Soco-me mentalmente e olho no relógio. 4:00 da manhã, acho que já podia considerar essa noite como uma bem aproveitada.

Junto um novo conjunto de roupas das gavetas e pulo do beliche. Entro no banheiro, trancando a porta atrás de mim e tomo um banho rápido com água bem gelada para me acordar de vez. Troco-me ainda meio lenta, mas eficientemente e antes que o relógio possa marcar 5:00, saio do quarto.

Olho para os lados sorrateiramente, assegurando-me de que não havia nenhum inspetor. Vejo o perímetro limpo e deslizo silenciosamente pelos enormes corredores escuros do dormitório. Chego na estrada do castelo sem muitas dificuldades, mas como sei que a guarda ali é mais intensa que nos dormitórios, vou em direção aos jardins.

Por não serem separados da floresta ao lado do internato, é muito mais fácil fugir por aqui, embora muitos tenham medo de se perderem para sempre no meio das árvores. Caminho um pouco pelas florestas e quando julgo já ter me afastado da entrada da escola, começa a andar na direção da estrada e em poucos minutos vejo o asfalto.

Checo meu relógio, 5:30, ainda tinha um longo caminho pela frente. Tento me distrair no trajeto, murmurando canções e batendo os dedos no ritmo. Quando alcanço a vila o céu já começa a clarear, o nascer do sol estava próximo. Esfrego minhas mãos nas pernas descobertas pelo shorts jeans que estava usando, não havia sido a melhor escolha para o outono.

Espero encontrar alguma loja aberta, mas apenas um café me saúda com uma plaquinha de “OPEN”. Decido evitar o frio e entro no café. Sento em um banco distante de todos e espero pacientemente para um atendente vir pegar o meu pedido. Alguns minutos se passam e peço um chai late e uma tortinha de maçã. A garçonete logo volta com o pedido, colocando-o na minha frente com um sorriso no rosto. Retribuo, mas minha bochechas reclamam do esforço. Termino de comer minha torta e tomo meu chá. Olho para a farmácia do outro lado da rua e vejo suas portas se abrirem, indicando um novo dia.

Levanto de mesa e pago pela refeição. Saio pela portinha, que toca um sininho quando movida. Vou em direção a farmácia, desviando de algumas pessoas que agora estavam indo para o café. Entro na loja branca como um hospital e com cheiro de metal e produtos de limpeza. Olho todos os soníferos na prateleira até achar aquele que costumava usar. Agarro o potinho transparente com uma bula branca a verde claro do lado e levo-o para o caixa.

Pago pelo produto facilmente e saio da loja, ninguém nem havia questionado sobre de onde eu era ou se era uma estudante. Olho no relógio de novo, 8:30, suspiro fundo e passo no café novamente. Pego um chá preto para a viagem e o homem atrás do caixa me cumprimenta alegremente, me reconheceu de antes.

Começo a caminhada para voltar ao internato, mantendo-me perto da estrada e tomo pequenos goles do meu chá. A cafeína me deixa mais acordada e sinto-me melhor. Tento me distrair novamente murmurando músicas e batucando meus dedos, mas não importa o que eu faça, minha mente continua voltando a reviver o sonho.

Passos no meio da floresta me arrancam de meus devaneios. Curiosa, decido seguir o barulho, seguro o copo de chá perto do meu corpo e entro na floresta. A escuridão das árvores me deixa momentaneamente cega, mas logo meus olhos se acostumam com a luminosidade. Escuto cautelosamente e determino de onde os passos estão vindo.

Como medida de precaução toco no lado do meu corpo, sentindo conforto pela arma que Jaime havia me dado. Ainda que estivesse descarregada, podia servir como ameaça. Sorrateiramente me aproximo da fonte dos passos. Escondo-me atrás de uma árvore, e espio a pessoa. A luz natural não ajuda minha visão e tudo que vejo é um homem coberto pelas sombras.

Um nó aparece no meu estomago. Respiro fundo e coloco o copo de chá no chão, substituindo-o pela arma descarregada. Com passos rápido e silenciosos, persigo o homem. Após alguns segundo ele para e olha para cima, analisando uma árvore. Algumas marcas de garras do lado do tronco avisam ele de que estava no lugar certo.

Com movimentos precisos o homem pula e agarra um galho. Surpreendo-me com seus movimentos. Ele rapidamente começa a escalar a árvore. Sem muitas opções, subo em uma árvore vizinha, tentando ver o que ele estava fazendo. Minha surpresa só aumenta quando o homem pula de uma árvore para a outra e começa a trilhar um novo caminho pelos ares.

Será que ele havia me visto e estava tentando me despistar? Não. Se esse fosse o caso ele não teria parado para analisar. Tento segui-lo, pulando de um galho para o outro. Finalmente ele parece parar. Escondo-me atrás de um galho a alguns metros de distancia e vejo o homem começar a descer.

Seus movimentos são ensaiados, o que mostra que ele já fez isso antes. Esforço-me para acompanhar seu ritmo e finalmente chego ao chão. Meu queixo cai em completa surpresa pelo que encontro.

Uma pequena clareira no meio da floresta, que definitivamente não poderia ter sido percebida de cima. A copa das árvores em volta escondem grande parte do céu, mas vejo raios de sol cortados entrarem na clareira. A luz é perfeita. No centro há uma casa, bem simples, mas grande.

Aproximo-me com cautela, ainda espantada com a situação. Encosto meu corpo nas paredes e tento escutar algo vindo de dentro, mas há apenas silencio. Minutos depois a porta se abre. Levo um susto e espio o homem por trás de uma parede, ainda escondida. Ele boceja preguiçosamente e se espreguiça, segurando um molho de chaves na mão.

Era Jaime. Tento conter minha surpresa e acabo engasgando. Felizmente, Jaime não percebe minha presença e sai correndo pela clareira na direção que parecia ser do internato. Quando o homem já está fora de vista saio do meu pequeno esconderijo e admiro a casa. Espremo meu rosto contra a janela, e vejo um enorme salão com chão de madeira e tatames do lado. Parecia um dojo gigante.

A curiosidade começa a me devorar viva. Pego um grampo de cabelo e torço-o de modo a ficar fino e quase reto. A partir dai começo a trabalhar na fechadura do jeito de Peter havia me ensinado. Meu coração aperta um pouco ao pensar em Peter, mas logo me distraio com o trabalho de arrombar a porta.

Passam-se alguns minutos até que eu consiga escutar o “clique” da porta se abrindo. Entro na casa e fecho a porta, pronta para explorar. Começo a andar pelo salão. Ele era dividido em duas partes, alguns tatames estendidos em um canto, mas principalmente uma enorme área com piso de madeira. Decido tirar meus tênis na entrada e coloco-os no canto, pisando no chão gelado de meias. Rodo pelo chão escorregadio de madeira e vou me guiando pelo lugar. Agora que estava dentro não era tão grande quanto tinha achado.

Uma porta na lateral me chama atenção. Patino até ela e abro-a. Surpreendo-me ao entrar na nova sala. Parecia um pequeno apartamento. Bem na minha frente havia uma bancada com varias gavetas e um pouco mais adiante dois beliches, quase se encostando. Duas janelas enormes se estendiam diagonais as camas fechando as paredes.

Um pouco a frente dos beliches, bem ao meu lado, vejo um sofá em formato de “L” e uma mesa de jantar com 4 cadeiras de madeira envolta. Sinto-me estranha entrando nessa parte da casa, como se estivesse invadindo a privacidade de algum. Engolindo minha curiosidade volto para o salão e fecho a porta atrás de mim.

– Você nunca bate na porta? – uma voz me assusta e dou um pulo, imediatamente recorrendo a arma.

– James – solto a respiração.

– E você sabe que essa arma está descarregada, certo?

Faço que sim com a cabeça e guardo-a no coldre. Abro a boca para me desculpar pela invasão, mas ele me interrompe.

– E ai o que achou da minha casa?

– Ótima – murmuro, meio envergonhada pela invasão.

– Ah relaxe! – Jaime exclama, batendo nas minhas costas com força – somos amigos não? Não precisa se preocupar em bater.

Sorrio com o comentário dele e dou um soquinho em seu braço de volta.

– Mas já que você estaa aqui na minha gloriosa casa, será que posso oferecer algo para comer? – James pergunta, abrindo a porta que levava para a parte domestica da casa.

– Não, imagina – me desculpo – eu tenho que voltar para a escola logo.

– Oh, que pena – homem suspira – mas tudo bem então. Quer que eu te acompanhe de volta?

– Não precisa – recuso me afastando um pouco dele – eu sei o caminho de volta.

– Oky doky então.

Viro de costas para o homem e começo a caminhar em direção a porta de saída. Tento me acalmar e caminhar mais devagar, mas a sensação dos olhos de Jaime em cima de mim me faz quere sair correndo.

– Ren – ele chama. Paro imediatamente, ainda no meio do caminho até a porta.

– Sim?

– O que você estava fazendo fora do internato a essa hora? – seu tom de voz é grave e preocupado.

Aperto o pote de soníferos dentro do bolso do meu moletom com força e tento me acalmar. Se minha voz tremesse, ele iria perceber.

– Resolvi sair para uma caminhada.

A desculpa é tão patética que tenho vontade de morrer. Mas meu cérebro estava cansado e todas as inúmeras semanas em que não havia dormido bem estavam começando a me afetar. Minha velocidade de reação tinha caído.

– E como você saiu do internato sem nenhum professor?

Sinto a raiva de James me atingir mesmo dessa distância. Ele quer que eu conte o que estava acontecendo, ele está preocupado. Respiro fundo mais uma vez, não podia deixar ele perceber o quão cansada estava. Eles tinham que ficar fora disso.

– Você fugiu – ele se responde antes que eu possa.

Meu coração dá um pulo. Tento responder algo, mas minha garganta está tão seca.

– É melhor voltar antes que alguém perceba que você tenha saído – sua voz volta a ser amena – o Diretor já não gosta de você, imagine se você fugisse! – o homem exclama toda a tensão ausente.

– Sim – manejo responder sem tremer.

Com as pernas fracas, volto a caminhar em direção a porta. Minha mente grita comigo e meu raciocínio está tão lento e embaralhado. Deslizo para dentro dos meus tênis e pouso a mão sobre o trinco, preparada para sair.

– Ren! – Jaime chama de novo.

Meu coração dá mais um pulo. Viro para encara-lo antes que possa me controlar. Ele está com as mãos nos bolsos. Seus olhos perfuram minha alma, e tentam escavar meu segredo.

– Da próxima vez, jogue o chá no lixo – ele reclama. Uma de suas mãos abandonam o bolso e apontam para o copo de papel em cima de uma cômoda do lado da porta.

Estendo uma mão tremula para pegar o copo e trago ele para perto do meu corpo.

– Obrigada – murmuro.

Saio da casa rapidamente e fecho a porta. Ainda ciente de que James me encarava preocupado com meus pesadelos e comigo. Sabia que ele só queria me ajudar e me proteger. Mas esse era meu problema, e de jeito nenhum mais pessoas iriam morrer por minha causa.

Nunca.

°_°_°_°

Gritos ecoam pela casa fazendo tremer as paredes, antes tão poderosas. Uma menina corre descalça pelo chão de madeira que range com o peso, mas barulhos não eram mais um problema, pois ela já havia sido descoberta.

Passos pesados ecoam logo em seguida. Apressados, desesperados, assustados. Vozes se chocam e mais gritos voam.

“Por favor não me deixe!” medo.

“Porque? Para que eu possa viver o resto da minha vida sob seus comandos?” determinação.

“Porque eu não quero lhe perder” desespero.

“Me perder, ou perder seus poderes?” raiva.

“Por favor não me abandone...” dor. “Você prometeu. Não me deixe...” um coração quebrado.

E olhos, aqueles olhos azuis. Aqueles malditos olhos azuis. Tao tristes, desesperados, seu mundo inteiro está caindo aos pedaços e o que você faz? Encara sua destruição com esses olhos azuis tão doces, tão cheios de amor.

Mas não se preocupe. Sim, sim. Descanse em paz agora minhas caras orbes, cheias do mais puro líquido, pois logo, logo, essa pureza vai desaparecer e a dor se transformará em raiva. Mas não sinta por isso, porque raiva é sempre preferível à dor, tristeza. Então abrace essa raiva, porque quando você mais precisar de uma salvador, apenas esses olhos frios, feitos do mais maléfico azul, irão vir te ajudar.

A separação é curta e rápida, como uma alma quebrando em duas. Primeiro vem a dor, depois a tristeza, depois a saudade e por fim, a raiva. Olhos borbulhando de raiva me encaram, distantes. Olhos preparados para fazer o pior para alcançar seus objetivos. Objetivos tão sangrentos e penosos, mas ainda assim objetivos.

A separação foi a primeira de muitas, muito mais dolorosas. Historias sendo repetidas sem fim, em um circulo que dor e perda. Todas revoltas ao redor do par de olhos azuis. E eles piscam, uma, duas vezes. A carne que antes pertencia a uma pessoa se amontoa em volta das orbes dando forma a um rosto. Belo, fino, gracioso e tão delicado. Cílios tocam de relance macas do rosto protuberantes e fazem o caminho de volta.

Pisque, uma duas vezes. Oh! Destino tão terrível. Oh! Passado tão tenebroso. Oh! Vida tão infame. Oh! Olhos tão raivosos.

Como pude me esquecer desses olhos?

°_°_°_°

– Ouch – exclamo, levando uma mão a cabeça e tentando me balancear novamente – desculpa Charlie, não vi para onde estava indo.

A menina apenas sorri para mim e faz um sinal de “tudo bem” se abaixando para juntar várias folhas do chão. Balanço minha cabeça, tentando me livrar da visão de antes. Abaixo-me também para ajuda-la quando percebo serem as mesmas linhas, aparentemente sem sentido, que formavam os lugares que Elizabeth havia me mostrado.

Começo a juntar alguns e empilha-los de modo a formar um desenho. Minha curiosidade aumenta quando vejo ser um rosto masculino. Passo a mão por cima dos traços, o desenho era extremamente realista. Vejo um queixo com uma fina linha no meio, uma boca pequena que parece estar sempre sorrindo na mais completa felicidade. Seus olhos tem rugas adoráveis, deixando o rosto bem mais infantil.

Começo a sorrir sem motivo para o papel. Analiso o cabelo da figura e de repente sinto vontade de passar os dedos pelos fios que parecem serem tão macios e desarrumados. Seu rosto no geral parece mais afinado e delicado, como o de uma criança e a única coisa que da uma pista de que ele possa ser alguém da minha idade são as grossas e expressivas sobrancelhas desancando logo acima dos olhos.

– Quem é esse Charlie? – pergunto, esticando as folhas de papel amontoadas.

– Boa pergunta – ela puxa o papel e me entrega o outro monte – não faço a menor ideia. Talvez mais alguma das minha previsões?

– Previsões?

– Ah claro – Charlie ri – eu não contei para você ainda né?

– Contou o que? – murmuro.

– O que são esses desenhos.

Espero ela continuar, mas quando isso não acontece, gesticulo para ela contar a história.

– Bom, aparentemente eu consigo desenhar certas coisas, como você percebeu, e as vezes ela ilustram o futuro.

Levanto uma sobrancelha, esperando a menina exemplificar a situação. O sorriso de Charlie de repente desaparece. Sinto ter tocado em uma assunto delicado e procuro algo para distrai-la. Movo rapidamente os papéis que ela havia me passado e acabo formando o rosto de outro menino.

– Hey! Olha isso – exclamo, tentando chamar a atenção de Charlie.

A menina imediatamente abandona o que estava fazendo e encara o papel comigo. Vejo seus olhos se arregalarem em surpresa. Analiso e vejo que é um segundo menino. Vejo que, ao contrário do primeiro, esse parece ter o rosto bem definido, com uma mandíbula forte e lábios esculpidos, ainda que pequenos.

Seus olhos são pequenos e levemente esticados, como se ele fosse oriental. Não japonês ou chinês, estava mais para russo ou alguma coisa nos arredores. Seu cabelo está jogado para cima de forma elegante e seu nariz cria uma pequena sombra do lado direito do rosto que emenda com suas sobrancelhas definidas.

Diferente do primeiro, esse rapaz parece ser mais velho do que nós, embora alguma coisa me diga que ele tem a nossa idade e que seus olhos, mais sérios do que o normal, são por causa das circunstâncias e não idade.

– Até que ele é bonitinho – Charlie comenta.

Ergo os papéis e posiciono-os do lado do rosto de Charlie, fingindo analisar alguma coisa.

– É... vocês formariam um belo casal.

Charlie ri sarcasticamente e tira os papéis das minhas mãos, mas não consegue impedir suas bochechas de ficarem levemente vermelhas. Sorrio um pouco e tento recuperar o papel. Para dificultar minha vida a menina segura-os acima da cabeça de modo que eu, mesmo pulando, não os alcance.

Resmungo alguns insultos em japonês e paro de pular até que ele decide devolver os desenhos para mim. Começo a brincar com os papéis tirando-os de ordem para ver o que mais eles formam. Depois de algumas mudanças uma imagem começa a se formar. Ela fica quase perfeita, mas mesmo assim parecem haver alguns detalhes perdidos.

Charlie percebe meu problema e retira a primeira folha do rosto do outro garoto e pousa sobre a minha pilha. No mesmo instante a figura, antes meio preenchida ganha vida.

O Obelisco se estende no fundo da figura e enormes massas negras se estendem dele agarrando o que parece ser uma pessoa vestida em trajes formais. A pessoa parece estar tentando se livrar das mãos puxando-a para dentro, mas essas são mais fortes e engolem praticamente seu corpo inteiro.

Ele parece se contorcer dentro do papel e gritar para que ajudemos ele, mas sua voz é abafada pelos braços negros que tão desesperadamente precisam que ele não pronuncie nenhum palavra. A única parte visível de seu corpo é a gola de um smoking com uma rosa vermelha no bolso.

– Essa imagem me dá arrepios – comento em tom baixo.

– Nunca tinha visto essa antes – Charlie se aproxima e tira o desenho das minhas mãos – o que você acha que é?

– Parece ser bem explicito – espio os papéis por cima dos braços dela.

– Acho que sim – a garota guarda os desenhos junto com os outro, dentro de um caderno e começa a andar fazendo um sinal para que eu a acompanhe – mas quem você acha que era?

Suspiro e começo a pensar. Pela falta de detalhes nas roupas podia ser qualquer um e não havia nada que descartasse qualquer pessoa. Exceto pelo fato de que parecia ser um homem.

– Pode ser qualquer homem.

– Qualquer homem no baile de inverno – ela ponta para as roupas formais – a não ser que mais alguém use isso em um dia normal.

Concordo com a cabeça e continuamos andando em silêncio. Depois de um tempo percebo que Charlie estava se dirigindo a biblioteca e paro. A menina para logo em seguida e me encara.

– Tenho que voltar para o dormitório.

– Ainda são 15:00 – ela argumenta.

– Eu dou um jeito.

– Ah – a garota se aproxima – com os seus misteriosos poderes que você se recusa a compartilhar.

A resposta de Charlie me surpreende por um segundo.

– A culpa não é minha se meus poderes são mais discretos do que sua telecinése ou a... sei lá o que de dor da Katherina.

Ela acena a cabeça de volta e continua me olhando, como se esperando para eu contar o que eu podia fazer. Penso sobre o assunto por um segundo. Gostaria de manter meus poderes em segredo durante mais tempo, mas se alguma coisa ruim acontecesse talvez fosse bom que pelo menos uma delas soubesse.

Aceno que sim com a cabeça e faço um sinal para ela me seguir para dentro de uma parte mais isolada da biblioteca, no meio dos livros de física. A garota entende a mensagem e obedece.

– Então... comece a falar.

Respiro fundo e molho meus lábios, me preparando para a resposta.

– Então... aparentemente eu posso projetar minha... alma para fora do meu corpo e possuir o de uma outra pessoa e quando faço isso, além de ganhar completo controle sobre suas ações, também ganho as memórias de mais ou menos uma semana dessa pessoa.

Espero algum comentário, mas quando ela permanece em silêncio, termino a explicação.

– Mas as memórias não ficam dentro da minha cabeça para sempre, desaparecem depois de algumas horas e eu fico com a memória de ter perdido alguma coisa, mas não sei o que é.

– Que péssimo – ela finalmente fala.

– Você não faz ideia – completo, pensando no turbilhão de memórias que vinham junto.

Um silêncio pousa sobre nós. Percebo que a mente de Charlie estava a milhões de anos-luz de distância, mas não me importo, a menina tinha muitas coisas em que pensar. Como quem eram os meninos que ela havia desenhado? Quem era a pessoa sendo sugada pelo Obelisco? O que estava acontecendo com a gente? Suspiro fundo novamente e permito-me viajar para um lugar bem distante.

Um lugar sem poderes malucos, problemas sobrenaturais, mortes estranhas e um passado, presente e futuro que se emaranhavam até não serem mais distinguíveis. Penso nos meus pais, na minha família, na minha casa e em como daria tudo para ter aquilo de volta.

– Em que confusão nos metemos? – Charlie murmura depois de alguns segundos? Minutos? Era difícil saber quanto tempo havia passado.

– É... – respondo depois de alguns segundos – em que confusão nos metemos...?

°_°_°_°

Bolhas flutuam ao meu redor e dançam, zombando da minha incapacidade de lutar contra os seres me puxando para as profundezas do oceano. A água pressiona sua entrada dentro do meu nariz, tento ao máximo para-la, mas sei que meus esforços não vão adiantar nada. Estou afundado, mais profundamente em cada sonho, sendo afogada por essa criaturas repugnantes que querem o meu fim. Não consigo sair daqui, não consigo me libertar.

Porque tentar?

Já está tudo pedido mesmo.

Porque essa é você Ren, uma menina se afogando dentro dela mesma.

Seus sorrisos falsos não me enganam.

Suas risadas dolorosas não me escapam.

Porque lutar Ren?

Não era você que esteve afundando desde o principio?

Sim. Eu sempre estive afundando, porque não importa o quanto eu acreditava que estava bem, o quanto eu queria não sofrer. Eu fechei uma porta e agora ela foi aberta, liberando todos os sentimentos que me afogam. Eu causei isso, eu mereço isso.

Meu olhos, já tão doloridos, começam a se fecharem. Eu desisto. Desisto de tudo, de tentar lutar e de tentar ser feliz. Oh fadas que tão incansavelmente querem me puxar para o fundo do mundo, eu me rendo a vocês. O azul tão escuro que me rodeia começa a se tornar ainda mais negro. Esse era o meu fim, eu sabia, e eu aceitava.

Aceita?

Meus olhos se abrem de supetão. A voz melodiosa ecoa pelas águas, acariciando o meu rosto gentilmente.

– Mirimel? – eu murmuro, inconsciente da água que já não parece que me afoga.

Asas negras começam a aparecerem do meu lado. Ossos escuros se esticam e se enrolam a minha volta, sendo cobertos por uma fina camada de pele negra, que agora reluz quase dourada. Viro o meu corpo e vejo a barriga coberta de escamas pretas de um enorme dragão. Sua mandíbula se estande semi aberta para mim e seus longos dentes, brancos como a neve e afiados como lanças brilham com a luz do fogo queimando em sua garganta.

– Mirimel? – repito incrédula – o que você está fazendo aqui?

O que você quer dizer. Eu só estou aqui porque você está aqui.

Sua voz ecoa em minha cabeça como já havia esquecido que fazia. Encaro seus olhos negros, com duas pequenas galáxias prateadas flutuando dentro. Eu esqueci você, eu me livrei de você. Você não é real.

Então como estou aqui agora? Então como lembra do meu nome? Então porque chora de saudades?

Minhas mãos voam para minhas bochechas. Não há lagrimas, mas meu coração se contorce de dor, eu senti sua falta. É claro que eu senti sua falta! Penso nadando mais perto do dragão e apoiando minha cabeça em seu torso. Calor volta a correr pelo meu corpo como uma chama.

Ren, abra seus olhos.

– Eles estão abertos – Afasto-me do corpo do dragão e volto a encarar seus olhos. Ela parece triste – Mas não consigo acordar.

Eu nunca disse para você acordar, disse para você abrir os olhos.

Dúvida se apossa de minha mente. Turbilhoes aparecem em meu cérebro e me deixam tonta. Tanta coisa para assimilar. Eles estão abertos.

Ren, olhe para baixo e abra seus olhos.

Meus músculos se contraem. Luto contra todos os meus instintos e forço minha cabeça a olhar para baixo. Olhar para as horríveis criaturas que estavam me afogando. Mas a medida que minha cabeça e meus olhos abaixam, sinto como se estivesse cada vez mais perto da superfície novamente.

Encaro as fadas se agarrando ao meu corpo e pela primeira vez percebo seus olhos assustados e suas mãos tremulas, se agarrando a mim, como se eu fosse sua ultima esperança de sobrevivência. Elas não me puxavam para baixo como eu achava, mas sim tentavam se erguerem me usando como um apoio. Elas nunca estiveram me afogando, elas só estavam tentando se puxarem para cima, mas como eu me recusava a ajuda-las elas tinham que me tratar como o inimigo.

Eram como seres humanos tentando se libertarem, ajudam aqueles que querem o mesmo que eles, mas lutam contra aqueles que tentam afunda-los ainda mais. Mirimel sorri e o bater de suas asas se torna mais forte ao meu redor, criando pequenos círculos que passeiam pela águas e logo, a escuridão do lago não parece mais tão assustadora.

– Podemos ir para a superfície agora? – ela pergunta, sua voz tão suave que faz as fadas relaxarem o aperto no meu corpo e se aproximarem, como que sentindo que a ameaça havia passado.

Passo os braços ao redor do meu corpo, delicadamente juntando todas as pequenas fadas em meus braços, protegendo-as da água que nos puxa para baixo. Elas olham para mim cheias de esperança de que finalmente alguém havia chegado para salva-las. Meu coração se aperta, como pude estar brigando com elas esse tempo todo?

– Sim – murmuro, sentindo o calor e carinho que havia ignorado durante todos esses meses. Eu sempre pude nadar para fora dessa escuridão, tudo que eu precisava fazer era abrir os olhos – finalmente podemos.

Porque esse era o meu poder.


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Notas finais do capítulo

Chibi – pequena
OPEN – aberto

#Ghost...



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