Xadrez escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 6
6 - Aqueles Inícios Estranhos


Notas iniciais do capítulo

Hello, amores!
Gostaria de agradecer a todos os leitores que leem e deixam comentários: gosto de ver as opiniões que vocês têm a respeito da história e elas me deixam animada para caramba para escrever mais e mais. Acho que a história está indo bem, isso me deixa satisfeita. :3
Espero que gostem do capítulo. o/



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Segunda-feira, 07 de julho de 2014, casa de Davi

Mais tarde, em um momento sóbrio, Davi conseguiria resumir o resto da noite no Jolly Roger em um grande borrão negro, do qual ele só conseguia resgatar alguns lampejos: alguns beijos mais quentes com a garota (ele nunca soube o nome dela), uma alça de sutiã (ele passou horas remoendo isso até concluir que a peça era azul), as fachadas de uma rua qualquer enquanto tropeçava, o olhar de reprovação e desprezo do pai quando ele passou pela sala de casa e a sensação deliciosa dos lençóis de sua cama.

Dormiu por um dia inteiro, um sono sem sonhos ou interrupções; e quando acordou à noite, estava desorientado e dolorido: seu corpo inteiro latejava, como se alguém tivesse passado um rolo compressor por cima de seu corpo e ele sentia uma enorme dor de cabeça, como se alguém estivesse martelando sem parar em cima de seus nervos. Ressacas não costumavam assaltar Davi com muita frequência — a bebida precisava ser forte para deixá-lo mal —, mas no momento em que ele abriu os olhos, o garoto soube que aquela seria forte.

“Eu sou tão burro. Sempre consigo fazer a ressaca atual ser duas vezes pior que a da última vez... Vou acabar morrendo.”

Fazia o frio típico dos dias de julho e durante vários minutos, Davi apenas se encolheu nas cobertas, gemendo baixinho de dor. Ele não queria se levantar, mas sabia que se não tomasse uma aspirina, não ia conseguir dormir novamente e, além disso, sentia fome também; as várias horas ininterruptas de sono estavam finalmente cobrando seu preço. O dilema se estendeu por um tempo que pareceu infinito e Davi já tinha até fechado os olhos, rezando para o sono chegar novamente, quando seu estômago reclamou no volume máximo, fazendo-o se lamentar baixinho. Não tinha jeito... Teria que se levantar.

—Ok, fome, você venceu. — resmungou para si mesmo enquanto se levantava, a visão rodando horrores antes de se estabilizar. —E a dor de cabeça também está quase me ganhando... Morrer teria sido bem mais legal. Sério.

A reclamação não surtiu nenhum efeito — a surpreendente coexistência de fome e vertigem o acompanhou fielmente no percurso pela casa, fazendo da simples tarefa de descer a escada uma tortura e criando miragens em sua mente: enquanto atravessava a sala para chegar à cozinha, ele jurou ter visto a mãe sentada no sofá, com um jornal na mão, lendo pacificamente.

—Menino do céu! O que aconteceu com você, menino? — a cozinheira-chefe da casa, Marta, só o chamava de “menino”. Era raro vê-la chocada; ele não soube se ficava feliz ou triste por fazê-la atingir esse estado. —Aonde é que tu foi ontem, que só chegou hoje?

—Fui para as “quebradas da vida”, Martinha. — a voz saiu pastosa. —Mas lá eles servem bebida de graça... Você sabe o resto da história.

—Onde é que fica esse tal de “quebradas da vida”? Meu filho não pode chegar perto de lá! — ela piscou para Davi, que riu fracamente. —Certo. Para você hoje, nós temos que arrumar um banquete antiporre... Espere um pouquinho, já está saindo.

Sem forçar para fazer muito mais que isso, Davi se sentou na grande mesa, onde as massas e outras coisas eram preparadas, e esperou. Marta era eficiente e sabia exatamente o que preparar (ela tinha experiência com as ressacas de Davi; foi ela quem o ressuscitou na sua primeira, aos doze anos), de modo que, em pouco mais de dez minutos, ele se viu em frente a uma bandeja com torradas, uma tigela de sopa, um copo de água e aspirinas.

—Marta... — ele cheirou a sopa. De mandioca, e quentinha. —Você sabe que eu te amo, não sabe?

—Claro que sei. Tem que me amar mesmo! Eu tenho o melhor banquete antiporre de todos... Torradas, sopa esquentada e aspirinas. Tome os comprimidos por último, ok? Não quero que você vomite na minha cozinha.

—Mas é claro. — Davi sorriu antes de pegar a primeira torrada e mergulhar na sopa. A consistência amolecida parecia exatamente o que seu estômago sensível precisava e ele gemeu de alegria; em cinco minutos, estava raspando a tigela à procura de mais comida. Marta observou a cena com satisfação. —Juro que você faz milagres com esses banquetes, Martita, juro mesmo...

—Magia nada, isso são só os meus dedos ricos e satisfeitos. Túlio vai me dar um aumento, me avisou hoje!

—Sério? — ele tomou as aspirinas, seu estômago reclamando um pouco. —Parabéns, Martes! Isso é a prova de que aquele cara faz alguma coisa que presta... Agora você pode fazer banquetes antiporre como esse com mais freqüência!

—Menino... — a voz da mulher adquiriu certa censura. Ela defendera Davi nos acontecimentos de anos anteriores, mas nunca aceitara bem a ruptura entre o pai e o filho. —Não seja tão duro com seu... Com o Túlio. Ele faz bem para a sua mãe; até consegui tirá-la da cama! Hoje ela ficou na sala várias vezes, vendo televisão e lendo. Se você não vai respeitá-lo por mais nada, respeita o cara por isso.

Davi torceu o nariz para o discurso, mas o sentimento durou pouco — ele logo se lembrou da “miragem” que tivera a caminho da cozinha, a mãe deitada no sofá com um jornal... Então não fora apenas uma ilusão! A perspectiva de vê-la o deixou imediatamente mais alegre.

—Era ela quem estava deitada na sala? Minha mãe? Será que ela ainda está lá? Onde está o Túlio?

—Acalme-se, menino! — Marta riu. —Sua mãe estava lá até meia hora atrás, mas como estou aqui com você, não sei se já a prenderam de volta no quarto... E seu pai saiu. Foi resolver algum assunto, fazer alguma coisa... Esta pobre cozinheira não sabe. Mas logo está de volta.

Davi se levantou com energia — as vertigens o tinham abandonado, embora uma dor de cabeça forte ainda permanecesse — e deu um beijo na bochecha de Marta, a guisa de despedida.

—Então vou lá aproveitar minha mãe enquanto o Túlio não chega e rouba ela de mim. E se tem uma coisa que você não é, Titita, é uma pobre cozinheira... Aceite isso.

Ela riu.

—E se tem uma coisa que você não decide, menino, é qual a merda do apelido que você vai me dar. — ela fez um gesto autoritário para a porta, abrandado pela expressão risonha. —Vaza da minha cozinha, menino. Já! Está contaminando isso daqui com seu suor bêbado e cheio de ressaca. TCHAU!

E mesmo sabendo que era tudo brincadeira, ele simplesmente obedeceu: a saudosa Marta, brincando ou não, era o tipo certo de pessoa para não se contrariar.

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A mãe realmente estava sentada na sala, mas não lia mais o jornal — estava recostada no encosto do sofá, ressonando suavemente, e não notou a chegada do filho. Suspirando, Davi sentou-se muito calmamente ao lado da mãe, tentando não fazer qualquer som, aproveitando a raridade daquela situação — era muito incomum ver Mônica fora do quarto — ao mesmo em que refreava sua própria vontade de abraçá-la, pois sabia que não era o mais sensato a ser feito; ao invés disso, abraçou a si próprio, satisfeito por escutar a respiração calma da mulher enquanto a observava.

Mônica era uma mulher bonita, mesmo doente, e Davi se orgulhava de se parecer com ela: ambos tinham pele morena e estatura comprida, os cabelos com cachos apertados (os de Davi cortados curtos, os da mãe caídos como uma cascata sem controle em volta de sua cabeça) e os olhos estranhamente fundos, dotados de algo como “olheiras permanentes”. Contudo, ao contrário dos de Davi, que sempre se mostravam um pouco tristes quando ele se encarava no espelho, os olhos da mãe eram sóbrios e claros, mesmo naquele momento, quando ela os abriu e encarou o filho, a expressão nublada de sono.

—Davi...? — ela abriu um sorriso sonolento. —Finalmente acordou da ressaca e veio me ver? Estava achando que você não sairia do quarto! Como está se sentindo?

—Alguém que foi pego por um compactador de lixo se sentiria melhor... Mas eu sobrevivo. E você, como está? É um milagre deixarem você ficar fora da cama!

Mônica sentou-se ereta no sofá, recuperando a altivez de sempre, e deu alguns tapinhas nas próprias coxas. A ordem era clara e Davi obedeceu: deitou-se no colo da mãe, observando seu rosto pálido enquanto ela brincava com os cabelos dele.

—Seu pai conversou com as minhas enfermeiras... Disse que seria responsável por mim hoje. Nós ficamos aqui conversando o dia inteiro, mas agora ele saiu. Foi buscar sorvete para mim... Vou sentir falta do seu pai quando ele viajar de novo.

Davi franziu o cenho; Mônica era a única pessoa que ele ainda permitia chamar Túlio de “seu pai”, mas mesmo assim, era algo que ele detestava escutar: Era como se, para a mãe, a ruptura nunca houvesse existido — ela ainda os tratava como se fossem uma grande e estúpida família feliz. Ele gostaria de ter forças para corrigi-la e explicar tudo novamente, mas ele não queria perder o pouco e precioso tempo que tinha com a mãe falando sobre Túlio. Por isso, suspirou e abraçou sua cintura, disposto a mudar de assunto o mais rápido possível.

—E eu sinto falta de você todo o tempo quando estou na escola. — murmurou, soando um pouco manhoso. Mônica riu fracamente. —Mesmo a gente se falando por telefone todos os dias.

—Pena que eu mal lembro que você existe...

—Mãe!

—É verdade! — ela escovou os dedos na testa dele. —Você é um garoto independente, não preciso me preocupar com você todo o tempo.

—Mas eu sei que você morre de curiosidade sobre tudo o que acontece na minha vida... — ele deu um risinho malicioso. —E como nossas conversas por telefone são curtas, eu não te contei nem metade do que aconteceu esse ano. Tem muita coisa interessante para você saber...

Pronto. A mãe não suportava qualquer mistério e não se importava de morder iscas óbvias como essa — empertigou-se no sofá rapidamente, encarando Davi com um olhar de perscrutínio.

—O quê? — exigiu. —Conte-me tudo e JÁ!

Davi riu e começou a contar tudo o que acontecera naquele ano: desde o primeiro reencontro com Matheus até os detalhes do bimestre infernal e a aposta que tinham batido. Ele também falou sobre Tábata e Guilherme, sobre como o namoro dos dois começara sem o seu aval (a mãe riu nessa parte) e como as coisas estavam naquele momento. Mônica era uma ótima ouvinte, fazendo comentários nas horas certas e incentivando-o a falar quando sentia que havia mais a ser dito — no momento em que se deu conta, Davi acabara de dissecar, com detalhes, todos os acontecimentos dos últimos seis meses para a mãe, que parecia ligeiramente pensativa.

—Esse Matheus... — ela brincou com um dos cachos dele, esticando-o até ficar liso e soltando-o, divertindo-se com o efeito de mola. — Seria Matheus Cadore?

—Sabe que eu não faço a menor ideia? Mas pode ser. Você sabe o nível dos freqüentadores daquela prisão que vocês insistem em chamar de Colégio Interno... Por quê?

—Porque você conhece os Cadore. Seu pai te ensinou sobre eles. Vamos lá, você consegue se lembrar.

O garoto odiava lembrar qualquer coisa que tivesse sido ensinada por Túlio, mas investigou a própria memória atrás do sobrenome Cadore. De fato, o nome lhe parecia meio familiar, e Davi logo descobriu o porquê: lembrou-se do dia em que Túlio lhe deu uma aula sobre as famílias tradicionais do país, ressaltando a importância de manter as boas relações com elas, e começou a repetir mecanicamente o discurso de Túlio:

—Cadore. Família tradicional mineira... Mexe com artigos de fundição. As fundições Cadore estão espalhadas pelo sudeste atualmente... O cabeça da família era Jorge Cadore, que tinha três filhos... Diego, Fabrício e Helena. Fabrício é o cabeça agora, suponho. Diego é enxadrista desde a adolescência, ganhou vários campeonatos e acabou fazendo o nome em cima do xadrez... Helena era jogadora de vôlei, muito famosa, inclusive.

—Exatamente. — Mônica balançou a cabeça em aprovação. —Se eu não me engano, Diego Cadore tem um filho chamado Matheus, e filho de peixe, peixinho é... Se Matheus for de fato um Cadore, você sabe o que isso significa, não sabe?

—Que eu — Davi começou, esperançoso —, posso dar nele uma surra tão tradicional quanto a família dele?

A mãe gargalhou.

—Claro que não, seu besta. Significa que é interessante você manter suas boas relações com ele... E nada de sair jogando seus charmes promíscuos para cima do menino! — ela cutucou o nariz dele. —Você pode ficar com quem quiser, para mim, mas manter relações cordiais com os Cadore vai te fazer mais feliz.

—Assim você me ofende... Não é porque eu sou bi que eu vou dar em cima de todo mundo! Eu sou bonito, não preciso me desesperar.

—Eu sei que não. — a mãe demorara um pouco para aceitar aquela verdade, mas Davi ficou feliz por ter esperado; no dia em que Mônica finalmente superara seus preconceitos a respeito do filho, as coisas tinham ficado mais fáceis entre os dois. —Mas aquela família... O conservadorismo lá é do modelo mais antigo possível; eles têm muitos preconceitos que são difíceis de quebrar.

—Nem os pais dele? Uma geração mais jovem? — Davi lembrou-se da noite anterior, as impressões que tivera a respeito de Matheus, sua aparente atração por Tiago; se fosse verdade, um ambiente familiar hostil só atrapalharia. —Não têm a mente mais aberta?

—Não posso falar sobre Diego, nunca o conheci... Mas se Matheus for de fato filho dele, eu conheci sua esposa, Patrícia. Como você sabe, eu sou de São Paulo e estudei em um Colégio Militar em uma época “militar demais”. Patrícia estava duas séries na minha frente. Nós nunca conversamos, mas ela era ativa nos discursos militares mais conservadores e vencia TODOS os concursos de xadrez, enquanto eu me encabulava para matar as aulas. Não chuto que ela se tornou uma pessoa melhor agora... E lembre-se que os Cadore servem seus valores na mamadeira dos seus bebês.

Ou seja, Matheus tem pais que provavelmente vão arrancar seu couro. Isso é legal.

A mãe suspirou e escorregou no sofá, como se a conversa estivesse começando a deixar seu corpo cansado, e ele resolveu deixar para lá e mudar para um assunto mais fácil: sua curiosidade não era nada que valesse a exaustão da mãe.

—Você odiava xadrez? Isso é sério? É um jogo tão bom!

—Eu passei de ano com os exatos setenta por cento de presença necessária no xadrez. Matei todas as aulas que podia. — Mônica deu uma piscadela cúmplice. —Na verdade, não sei como você gosta tanto de xadrez... Eu sempre odiei o jogo e seu pai nunca teve paciência para ele; era um esportista, gostava de natação, futebol, corrida... Davi, você não é meu filho!

Os dois riram por vários minutos e a conversa morreu, sem nenhum desconforto: ficaram mãe e filho ali, um clima bom na sala, cada um com seus próprios pensamentos.

Distraído, Davi rolou os olhos pela sala, absorvendo seus detalhes (ele raramente ficava em casa), até chegar na mesinha de centro, onde seu celular estava descuidadamente disposto. Ao vê-lo, o garoto franziu as sobrancelhas e esticou a mão para pegá-lo — não se lembrava de tê-lo deixado ali.

—Você se esqueceu dele ontem, no bar onde saiu com seus amigos. Guilherme veio trazê-lo para você. — a mãe explicou, parecendo sonolenta novamente. —Ele inclusive mandou um recado... Disse que você vai pagar pela conta que ele pagou, algo assim. Faz sentido para você?

Davi se lembrou da conta quilométrica da noite anterior e gargalhou longamente.

—Faz muito sentido.

A mãe deu de ombros, sem se importar muito, e Davi voltou-se para o próprio celular. O aplicativo de xadrez tinha uma notificação, o que significava que Matheus tinha se lembrado dele, provavelmente para infernizá-lo — e não deu outra. A mensagem havia sido enviada vinte minutos antes.

“Espero que a sua ressaca tenha sido proporcional ao trabalho que você me deu ontem.”

Davi suspirou. Aquilo era tão Matheus que ele nem ficou surpreso — e se preparou para a conversa. Ele tinha um objetivo ao conversar com o segundanista daquela vez; queria descobrir se o interesse do garoto por Tiago era verídico ou se era apenas uma impressão de sua mente alcoolizada.

Se fosse verdade... Não, ele ainda não havia pensado nessa parte.

Então minha ressaca devia ter sido muito mais leve. Eu não te dei trabalho nenhum!”

“Não, só me enfiou naquele antro de gente louca, me deixou sozinho para levar aquele seu maldito amigo praticamente desacordado para casa. E, claro, cantou Gledi Iú Queime, do Dé Uantedi, na minha cabeça.”

Davi gemeu. As vergonhas que passava quando bêbadosó pioravam... Ainda chegaria o dia em que ele tiraria a roupa na frente de todo mundo.

Esquece isso. Você vai ser mais feliz se esquecer isso, eu te garanto.”

“Tá doido? Eu vou me lembrar disso para sempre! Estou louco para as aulas voltarem. Vou contar para todo mundo do clube! Se eu tivesse gravado, seria perfeito.”

“Ok. Você é um legítimo desgraçado. Era só isso?”

“Não. Nossos treinos no xadrez estão um pouco defasados... Se você aumentar a freqüência deles, talvez eu não conte nada para ninguém. Que tal?”

Davi revirou os olhos. Ser chantageado por Matheus já não era mais nenhuma novidade.

Pode contar. Minhas aventuras bêbadas não me incomodam.”

“Mas eu te garanto que mais dois meses de inferno te incomodam, e pra caramba. Vai aumentar a freqüência dos treinos ou não?”

“Quando você quiser treinar, estarei aqui.” Ele digitou a frase com os dedos tremendo de raiva. “Mas você sabe que eu provavelmente vou me vingar por isso, não sabe?”

A resposta demorou algum tempo para chegar.

Vou esperar ansiosamente por isso. Mas enquanto o momento não chega, comecei uma partida... E prepare-se. Ao longo dessas férias, posso te chamar para jogar a qualquer momento.”

Davi não respondeu, apenas voltou seus olhos para o pequeno tabuleiro presente na tela, notando que Matheus mexera seu peão e movendo seu próprio em resposta. O jogo prosseguiu sem problemas, calmo e despretensioso, terminando com uma vitória bem trabalhada de Matheus.

Você venceu.” Davi afirmou o óbvio. “Vai comemorar agora?”

Mas como sempre, aquele era Matheus — vitórias em cima de Davi nunca o deixavam feliz. No máximo, decepcionado.

Claro que vou. Já estou pulando de felicidade aqui! Você precisa ver, vou até gravar um vídeo para você... Até amanhã Davi. Boa noite, durma bem.”

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Terça-feira, 08 de julho de 2014, 10h00min, casa de Davi

“DAVI! Acorde! Hora de jogar! Se você não responder em dez minutos, eu vou te ligar!

Davi...

Faltam cinco minutos.

Três minutos...

Um minuto...”

“JÁ ACORDEI, MATHEUS! FELIZ? SATISFEITO? DEZ DA MANHÃ NÃO SÃO HORAS DE ACORDAR ALGUÉM!”

“Eu disse que poderia te chamar para jogar a qualquer momento. Agora é um momento. Anda! Já comecei com as brancas.”

Como que para explicar a fala, Matheus moveu uma peça branca no tabuleiro virtual, dando início ao jogo.

Você sabe que isso é sadismo, não é?”

“Sadismo é outra coisa. Eu chamo isso de vingança pela vergonha de domingo... Qual era o nome daquela garota?”

“Sabe que eu não perguntei? E... Você deveria estar com raiva do Tiago, foi ele quem deu trabalho.” Davi também fez seu movimento, distraidamente, a atenção voltada para a conversa. Talvez aquela fosse a hora de jogar uma pequena isca para descobrir se as impressões de domingo eram ou não verdadeiras. “E falando no Tiago... Por que você o odiou tanto? O cara não fez nada para você.”

Eu não o odeio, disse isso a você.” a resposta finalmente chegou, quase dez minutos depois da pergunta. “Eu não me senti confortável com ele, apenas... Tiago me pareceu um idiota, drogado e estúpido.”

Outra peça branca se moveu no pequeno tabuleiro virtual.

“Mas... É isso o que ele é. Só que ele também é um cara legal. Ele não faz nada para você e você pareceu tão... Sentido. Como se ele te incomodasse. Eu nunca te vi tão irritado. Só queria saber o porquê.”

Davi, você é um intrometido... Mas acho que não tem problema te contar.” O terceiranista prendeu a respiração ao ler isso. “Odiei o Tiago porque ele é idêntico ao atual namorado da minha ex-namorada. Feliz?”

Davi quase jogou o celular na parede de frustração. Eles não estavam se falando pessoalmente, logo ele não podia identificar se havia alguma mentira na afirmação, mas parecia tão estupidamente conveniente para Matheus dizer aquilo... Tinha parecido óbvio na noite da festa que a irritação de Matheus fora movida por um interesse reprimido, mas agora soava perfeitamente plausível que tudo houvesse ocorrido por ciúmes de uma ex-namorada. Talvez Davi tivesse realmente apenas imaginado o interesse de Matheus por Tiago...

Ele processou aquilo enquanto o jogo continuava. Algumas capturas foram feitas, mas nenhum grande movimento ou ataque foi executado: mais uma vez, eles estavam se estudando, cercando um ao outro; um jogo mais analítico que feroz e, durante algum tempo, nada de interessante aconteceu.

Me parece bom.” Acabou digitando, desistindo da hipótese de Matheus estar afim de Tiago. “Qual é o nome dela? Da sua ex-namorada?”

“Rebecca.”

E terminaram por quê?”

“Ela estava insatisfeita com o meu jeito. Disse que eu era estúpido e entupido... Idiota e insensível. Eu tenho um discurso dela decorado em algum lugar da minha cabeça.”

Matheus lançou suas peças em uma ofensiva, mas não obteve muito sucesso — provavelmente, não reparou que Davi o cercava, reforçando suas defesas, preparando o terreno para uma jogada grande.

Você não pode culpá-la. Você É entupido.”

“Todas as pessoas para quem eu contei isso disseram A MESMA COISA. Que tal vocês todos serem amigos da Rebecca ao invés de meus? Não vai fazer falta, eu garanto.”

Davi riu e, com o esquema todo montado, fez sua investida, satisfeito quando ela se mostrou eficiente: o rei branco foi completamente cercado e um pequeno aviso de “XEQUE-MATE!”piscou no canto inferior da tela.

“Não falo pelos outros, mas falo por mim... Garanto que eu não faria um xeque-mate bonito desses na Rebecca.”

Aquilo provavelmente desagradou Matheus; ele demorou quase vinte minutos para enviar sua resposta.

Até a próxima, Davi, e sem conversas. Como você deve ter percebido, elas me distraem.”

Davi não pôde deixar de rir.

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Sexta-feira, 11 de julho, 22h00min, casa de Davi

“Davi, vamos jogar. E nem finja que você está dormindo, eu sei que não está!”

“Não, eu não estou dormindo, mas também não quero jogar xadrez com você. Lamento, volte amanhã, sem indenizações.”

“Sério? E por que não?”

Davi hesitou por um minuto, deitado na própria cama, encarando o celular, antes de dar de ombros. Qual era o problema em contar? Matheus provavelmente o implicaria com ele, mas diante da atual situação, até as gozações do segundanista pareciam uma coisa legal.

Briguei com o cara que mora aqui em casa. Ele fala muita besteira... No geral, preconceituosa. E eu não consigo ficar quieto.”

“Que cara? Seu pai?”

“Eles gostam de chamá-lo assim, mas eu não tenho pai.”

“...?”

“No dia em que você parar de me chantagear, eu prometo que te conto essa história.” Davi quase riu ao digitar isso. “Ou seja, você provavelmente nunca vai ouví-la.”

Matheus demorou um pouco a responder.

Ok, não tenho argumentos para isso, terei de conviver com a minha curiosidade. Me pegou, touché, parabéns! Quer uma estrelinha dourada? Juro que depois te entrego. Agora me conte por que esse cara que mora na sua casa (fale o nome dele, é mais fácil) brigou com você.”

Davi riu de verdade dessa vez, encarando a tela do celular. Ok, aquilo era uma implicância, mas pelo menos era uma implicância engraçada.

Porque eu nasci? Ok, isso é um exagero... Acho que é porque eu larguei a igreja. Não por mágoa, nem por revolta, nem nada... Só percebi que não estava confortável lá. O cara não aceitou isso muito bem e de vez em quando desenterra o assunto. O nome dele é Túlio... E eu vou querer minha estrelinha, faço coleção e a sua vai ser importante.”

“Te entrego sua estrelinha no dia de São Nunca, ao meio dia. Pode esperar. Enquanto isso, digo que essa situação parece meio... Chata. Minha família e eu somos muito religiosos e eu nunca me senti forçado a nada, mas seria terrível se fosse.”

“Ah... Ele não me força, só joga isso na minha cara, mesmo. Todo o tempo. Não é algo que me deixa magoado... Mas eu fervo de raiva. Hoje não foi a primeira vez e também não vai ser a última, então deixa para lá. Vamos nos concentrar nas estrelinhas: vou chegar dez minutos mais cedo para recebê-la no dia! Estou ansiosíssimo! Espero que o fato de eu não jogar com você hoje não atrapalhe a minha premiação... Você pode me chamar amanhã para a gente jogar, já que você odeia conversar e as últimas dez partidas foram irritantemente silenciosas.”

“Concordo com o ‘silenciosas’, mas não com o irritantemente. Você não digitando besteira me traz muita paz, a rima inclusa.” Davi revirou os olhos com isso. “Mas como você parece estar realmente fervendo de raiva e pessoas assim me dão certa gastura...”.

“Como você consegue conviver consigo mesmo?”

“Ai. Essa doeu.”

“Sinta um pouco do seu próprio veneno, praga.”

“Estou disposto a animar você, embora não saiba que tipo de droga eu consumi para isso, então faça o favor de colaborar.”

O terceiranista ergueu as sobrancelhas: Matheus querendo animar alguém? Ele olhou para fora, pela janela, mas não estava chovendo (fazia uma noite linda lá fora, cheia de estrelas) e deu de ombros. Talvez Matheus só estivesse doente mesmo. E reconhecendo que estava sendo um pouco grosso, Davi resolveu que não tinha nenhum problema em deixar o segundanista tentar.

Não pedi nada a você, mas... Ok. Vamos lá, me anime.”

“Ugh, sou PÉSSIMO com isso. Se eu te contar sobre a minha vida, você se anima?”

Não.” Não havia motivos para mentir. “Mas vai ser uma coisa interessante de se ler, fique à vontade.”

“Ok. Vamos lá. Meu nome é Matheus Inácio Cadore, filho de Diego e Patrícia Cadore um casal cujo amor nasceu da pura competição entre os dois. Meu pai é enxadrista especializado em competições enquanto minha mãe é perita em estratégia e ensino de xadrez em escolas. Meu primeiro presente foi um tabuleiro de xadrez e esse foi, basicamente, o único presente que meu pai me deu durante toda a minha vida. A frase que eu mais escutei até hoje foi: ‘Você vai ser um grande enxadrista quando você crescer. ’”

Davi absorveu essas informações com interesse.

É por isso que você é um saco com essa coisa de ganhar? Chegando ao ponto de me endoidar para treinar contigo, inclusive?”

“Você pode dizer que sim. Eu tenho uma irmã mais nova, Carina, mas ela detesta xadrez, então meu pai decidiu que ‘a herança da família está comigo’. Fui treinado para ser um enxadrista desde pequeno; ele jogava comigo duas horas por dia, no começo, e ao longo dos anos, esse tempo só foi aumentando. Antes de me mandarem para estudar no Vespasiano, eu perdia quatro horas todos os dias jogando xadrez com meu pai. Nunca escutei nenhum elogio. Depois de cada partida, ele sempre me apontava os erros que eu tinha cometido, e na partida seguinte, ficava em cima para ver se eu ia cometê-los novamente.”

“Ofenderia se eu dissesse que seu pai é um mala?”

“Não. Mas eu não o culpo. Ele me treinou para ser um vencedor, para detestar perder e fazer de tudo para isso não acontecer.” O terceiranista novamente revirou os olhos, sentindo a prepotência natural de Matheus em cada palavra lida. “Mas pode ser que eu tenha querido matá-lo algumas vezes.”

“Se ele te treinou para ser um vencedor, para te fazer detestar perder e tudo mais, então POR QUE RAIOS VOCÊ AINDA ESTÁ ME ENXENDO O SACO PARA EU TREINAR COM VOCÊ?”

Davi sentiu que a pergunta tinha sido problemática no momento em que apertou o botão de “enviar”, embora não soubesse exatamente o porquê. Logo percebeu que tinha razão: o pequeno aviso de que a mensagem havia sido enviada e visualizada apareceu, mas durante meia hora, não houve nenhuma resposta. O garoto encarou o celular com dúvida, pensando se deixava para lá ou se mandava alguma outra mensagem, a primeira opção vencendo no fim — ele se virou para o lado e fechou os olhos, esperando o sono chegar, e estava quase dormindo quando o aparelho apitou novamente, indicando que havia uma resposta.

Por motivos que eu pretendo revelar para você no dia de São Nunca, ao meio dia... Talvez um pouco antes. Mas hoje não.”

O terceiranista encarou o celular com raiva. Me dá um vácuo, eu estou quase dormindo, me acorda e me apresenta essa resposta horrorosa. Cara maneiro você, hein?

“E seu pai sabe que você está jogando comigo, um enxadrista não profissional, por motivos que você só vai me revelar no dia de São Nunca, ao meio dia?”

“Não. O que Diego Cadore não vê, Diego Cadore não sente. Você não vai contar para ele, vai?Você é um bom garoto. Eu confio no seu silêncio, mas sempre posso comprá-lo com um pouco de chantagem.”

Davi sentiu o riso surgir contra sua vontade.

Não pretendo contar... Mas não fique convencido: eu costumo ser um péssimo garoto. Mas ignoremos essa parte. Você falou sobre você, vou falar sobre mim.”

“Estou tão ansiozzzzzzzz”

“Ninguém liga. Davi Anchieta Montecruz, filho de Mônica e Túlio Montecruz, que nunca foram um casal adorável, mas sempre se amaram muito. Não me lembro qual foi primeiro presente que recebi (tá pedindo demais, né?), mas sei que ‘Débeis mentais não existem’ foi a frase que mais escutei na minha vida. Faço parte da turma de veteranos da morte do Vespasiano, junto com o Guilherme e mais uns vinte coitados, o que significa que eu cursei TODA a minha vida escolar naquela linda prisão. Lá é mais minha casa do que aqui... Ah, eu odeio férias também. Elas sempre foram mortalmente tediosas; eu nunca tinha nada para fazer, Guilherme sempre viajava, ou seja, solidão todos os dias.”

“Quanto amor ao Guilherme, hein?”

“Ele é meu melhor amigo desde sempre. Quando éramos pequenos, costumávamos dizer que éramos meio-irmãos de sobrenome: ele é Montenegro e eu sou Montecruz. A gente SEMPRE aprontou junto, explodimos algumas bombas caseiras naquela escola e fizemos muita bagunça lá... Até o Caldarias, que conhece a gente tão bem (o cara sabe meu nome, ele me cumprimenta nos corredores), nos colocou em turmas e turnos separados no Ensino Médio. Uma coisa inteligente da parte dele. Explodimos nossa última bomba caseira no primeiro dia do primeiro ano.”

“Quanta poesia. Chorei.”

“Que tal ir se ferrar?”

“Não. Estou pensando em como Tábata quis namorar um idiota que explodia bombas caseiras no colégio. Minha prima é uma destruidora de corações, ela tinha que ter sido mais inteligente que isso.”

Davi revirou os olhos — de novo. Aquilo estava se tornando um ato muito frequente.

Talvez porque Tábata NÃO seja uma pessoa estúpida e entupida... Idiota e insensível. Ela se apaixona.”

“Usando minhas palavras contra mim... Talvez eu deva levar duas estrelinhas para você no dia de São Nunca? Enfim, Tábata é bonita, alta, mais velha, segura de si e todas aquelas coisas que deixam um cara doido. Ela tem um nome legal... Na verdade, ela tem dois nomes legais e dois sobrenomes legais, e se você fosse se apaixonar por alguém só pelo nome, teria de ser a Tábata: Tábata Cristina Cadore Santoro. Chique para caramba. Todos os fatores indicam que ela é areia demais para o caminhãozinho do Guilherme.”

“Todos os fatores indicam que há uma séria ‘puxação de saco’ aqui.”

“Há sono sendo detectado aqui, isso sim. Te chamei para jogar e perdi uma hora e meia em um bate-papo inútil... Isso é maneiro. Adorei saber mais sobre você, mas pode ficar calado da próxima vez. Não vai fazer falta.”

O terceiranista bufou alto.

Claro.”

“Está melhor?”

Ele já ia perguntar o porquê, mas se lembrou do motivo pelo qual o chat começara: a briga com Túlio e a tentativa frustrada de Matheus de animá-lo. Aquela pergunta abrangia mil possibilidades, inclusive a de Matheus estar preocupado com ele, e Davi não conseguiu processar nenhuma delas.

Estou me sentindo radiante!”

“´Ótimo, porque da próxima vez que eu te chamar, serão dois jogos em sequência para compensar. Boa noite.”

Davi encarou o celular. Eles já tinham jogado umas vinte vezes, todas elas com conversas breves antes da partida começar e, a cada vez que se enfrentavam, ele sentia que Matheus se tornava mais fácil de lidar, como se estivesse relaxando. Isso era bom, pois tê-lo mais confiante em si talvez tornasse a convivência dos dois menos insuportável... Mas também era ruim, pois ele sentia que estava começando a considerar Matheus como um amigo, quando era suposto tratá-lo com fria cordialidade até o final do ano, onde finalmente se vingaria e se veria longe dele.

Ele olhou para o relógio. De fato, faltavam quinze para a meia-noite, hora de estar dormindo e não de ficar pensando em questões para as quais ele não obteria resposta imediata. Voltaria ao assunto no dia seguinte.

Ok, pequena praga. Boa noite.”


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Notas finais do capítulo

Agradecimentos à linda da Moni, like always, porque ela dá as melhores ideias, é linda e me deu fondue. Apenas. :3
As coisas vão "se agitar" a partir de agora... Espero que vocês apreciem o rumo que a história vai tomar.
Até o próximo capítulo! o/