Xadrez escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 4
4 - As Pequenas Vitórias


Notas iniciais do capítulo

Olá! Hoje eu tenho alguns recados para dar...
Primeiro, muito obrigada a todos que comentaram! Recebi comentários muito divos e fiquei extremamente feliz. Talvez eu tenha demorado para responder alguns, mas li todos e me apaixonei por todos vocês. s2
Segundo, eu vim trazer um MIMO PARA VOCÊS! Estava conversando com a minha beta (Moni :3) e a gente acabou chegando num consenso de atores que são mais ou menos parecidos com o casal de protagonistas. Para hoje, trago fotos de Davi:
http://goo.gl/U4rHQm AND http://goo.gl/ygcs95.
O Davi é mais escuro que o Rob Sheehan (o nome desse bonitinho), mas os traços batem com o que eu imaginei, então... Aproveitem. o/
Terceiro... Esse capítulo pede uma trilha sonora, principalmente a última parte. Não vou colocar links nem nada, mas quem estiver disposto, escute Mad World, do Gary Jules. É uma música perfeita. :3
Se você leu essa nota gigante, parabéns pela sua coragem. Agora, espero que aproveite o capítulo. o/



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Sexta-feira, 06 de junho de 2014, Vespasiano

Ele estava dançando, seu corpo construindo sozinho a seqüência mais louca e inebriante de passos que ele já dançara, ao mesmo tempo em que a exaustão chegava; apenas mais uma na multidão. Davi não queria parar de dançar, ele simplesmente não podiaparar de dançar; era uma questão vital, como a pulsação do sangue em suas veias, mas dez vezes mais quente e cem vezes mais prazeroso.

Davi já não conseguia diferenciar mais nada na louca bateria de corpos que o apertava de um lado para o outro, nas dezenas de mãos que passeavam por seu corpo sem permissão e nas bocas que sussurravam coisas em sua orelha, baixinho — promessas de amor de milésimos de segundo. Era a melhor confusão de sua vida e ele não se importava nem um pouco, morrendo em uma festa que há muito tempo deixara de ser um local para se tornar um organismo vivo, onde centenas de pessoas seguiam o mesmo ritmo pulsante, como as batidas de um coração.

Ele já tinha perdido a conta de quantas bocas beijara. Nutria um carinho especial pela última, que lhe deixara um gosto de gloss de menta nos lábios, mas sabia que duraria pouco: ele já tinha seus olhos em um dos dançarinos da pista, cuja dança lasciva o hipnotizava, o corpo se movendo em uma sincronia quase ofídica. Não havia sentido em sua coreografia, como não havia na de ninguém ali, mas a sintonia de mãos, pés e quadris era tão estupidamente sensual que Davi se viu gravitando em sua direção, os olhos fascinados.

“There's a place downtown, where the freaks all come around…”

—Que legal! — ele exclamou para ninguém e todo mundo, porque parecia importante. A música, que começara em um tom baixo, aumentava o volume, e a gradação estava levando o organismo da boate ao limite da histeria. Até mesmo Davi se sentiu cheio de energia, como uma bomba prestes a explodir.

—Essa música é o toque do meu celular!

Ninguém respondeu, mas Davi não precisava de resposta: o dançarino que prendia seus olhos se virara para ele, conduzindo a dança libertina em sua direção, como que despertado por aquela fala. Em pouco tempo, os dois dançavam juntos, cada vez mais perto, os corpos unidos a ponto de uma fusão, as bocas muito, muito próximas, a música aumentando o volume cada vez mais, atingindo o limite do insuportável...

Davi levantou a cabeça do travesseiro e pegou o celular que tocava, observando o visor por meio segundo antes de praguejar e atender.

— Guilherme. — apenas o tom do cumprimento poderia congelar o inferno. — Olhe no seu relógio e me diga que horas são.

Tiago, na outra cama, também levantou a cabeça e moveu os lábios para formar uma frase silenciosa: “quer ajuda para matá-lo?”.

Davi riu por entre a nuvem do sono e moveu os lábios igualmente em resposta: “você segura, eu meto a faca.”.

São... Cinco e quinze da manhã? — a voz de Guilherme estava macia de felicidade. — Desculpe aí, cara. Eu dormi na casa da Tábata e tive que acordar cedo para chegar no colégio.

— E me diga... — Davi respirou fundo algumas vezes para não gritar. Ele não merece a morte, é um castigo muito leve. Estamos falando de castração aqui. — Por que raios você me acordou?

Eu queria contar para alguém!

—Contar o quê? Que você transou? Legal! Mas são cinco e quinze da manhã e eu não quero saber!— não houve esforço que contivesse o grito. Tiago deu uma gargalhada sonolenta, parecendo achar aquilo algo muito divertido, e Davi pensou que castrar o colega de quarto também não seria uma ideia ruim. Isadora provavelmente ficaria brava, mas ela não poderia culpá-lo depois que ele explicasse a situação. —Então mexa esse traseiro gordo para seu dormitório e VÁ DORMIR!

Cara, que mau humor! —Guilherme tentou falhamente colocar alguma seriedade na voz. —Eu achei que você ia estar acordado ainda... Afinal, não foi na festa ontem à noite?

—Não, não fui. Fui jogar xadrez com Matheus.

Sério? — e o tom flutuante de animação retornou. Davi quis vomitar. —E como foi?

—Terrível, estranho, mas eu não vou falar sobre isso agora porque são cinco e dezessete da manhã e eu vou dormir. Quando eu acordar meio-dia, eu converso com você. Tchau, Guilherme.

Tábata vai dar uma festa de aniversário no mês que vem. — o amigo ignorou completamente a última fala de Davi. Ele quer morrer. Você já está convidado. Vou aproveitar e te avisar enquanto está fresco na minha memória.

—Então também mantenha isso fresco nessa sua cabeça burra: eu não vou. — ele respirou fundo. —Agora, VAI DORMIR!

E desligou o telefone.

Tiago ainda ria gostosamente quando Davi finalmente conseguiu pegar no sono novamente, pensando que não, não iria a nenhuma festa, que não conheceria nenhuma Tábata e que, se brincasse muito, não iria nunca mais chegar perto de Guilherme também.

>><<

Sexta-feira, 4 de julho de 2014, uma casa de um bairro qualquer de BH

Sentado na festa de aniversário de Tábatanquanto escutava a moça contar um caso randômico sobre o namoro com Guilherme, os pensamentos de Davi não eram muito diferentes: ele podia estar ali, mas não queria se envolver de modo algum com a garota, e, com certeza, nunca mais chegaria perto de Guilherme novamente. Ele tinha se sentado no canto, afastado de todos os convidados, e embora os casos da namorada do amigo fossem engraçados — Tábata tinha excelente desenvoltura, e até mesmos seus gestos eram acréscimos interessantes às ideias que ela queria passar —, não pretendia ficar ali muito tempo. Apenas o suficiente para dizer que comparecera e evitar que o amigo falasse na cabeça dele pelo resto das férias, como tinha feito durante todo o mês anterior.

Davi suspirou. Desde o dia da ligação às cinco horas da manhã, o único assunto de Guilherme, em todas as conversas, sem exceção, fora Tábata: aonde ele levaria Tábata para jantar, as roupas que a Tábata vestia, as músicas que a Tábata gostava, os filmes que a Tábata assistia, Tábata, Tábata, Tábata. Depois de uma semana convivendo com a versão apaixonada de Guilherme, Davi simplesmente não aguentava mais o amigo, e passara a evitá-lo de todas as maneiras possíveis, o que não adiantou muito: a criatura fora procurá-lo mais de uma vez para desabafar suas alegrias, contar sobre as noites lindas com Tábata e provar ao estômago de Davi que ele era um órgão forte. O terceiranista chegou à beira do vômito várias vezes.

Matheus também não ajudara em nada naquelas últimas quatro semanas. Depois da primeira partida e da despedida emblemática entre os dois, o garoto passara a tratar Davi com um silêncio gelado, aparecendo duas ou três noites por semana apenas para que os jogos acontecessem. No exato momento em que alguém vencia — ou que um empate ocorria, o que era mais comum — ele se levantava e saía, sem se despedir ou fazer comentários. O segundanista nunca parecia feliz: quando as vitórias eram de Davi, crispava os lábios e observava o tabuleiro, como se um simples olhar pudesse fazê-lo queimar, e quando as vitórias eram dele, Matheus simplesmente fechava os olhos, quase como se estivesse decepcionado.

Davi, em todas as partidas que tinham jogado, quisera socá-lo: sem exceção.

Na verdade, mais do que socar Matheus, ele queria socar a si mesmo quando, no último dia antes das férias, aceitara a proposta do segundanista — aquela fora a primeira vez que eles tinham se falado desde a partida na biblioteca — de jogar partidas virtuais com o garoto durante o período afastados da escola. Matheus havia recomendado um aplicativo virtual onde as partidas podiam ser jogadas em tempo real e, como um idiota, Davi o baixara. Apesar de ter se xingado mentalmente mil vezes por aquilo, acabou descobrindo que jogar xadrez virtualmente era um ótimo passatempo, mesmo sendo solenemente ignorado na área do aplicativo reservada para o bate-papo.

E a conclusão de todo aquele mês era que a vida era uma sacana: aquele aplicativo, que Davi xingara tanto enquanto baixava, pensando que realmente, eu só posso estar louco, esse cara me odeia, estava salvando-o do completo tédio naquela festa. Talvez ele devesse agradecer a Matheus depois.

—E Guilherme estava saindo, apoiado em mim, tão bêbado que acho que ele estava vendo duas de mim... — Tábata continuou sua narrativa, balançando os longos cabelos castanhos. —E ele vomitou!

Davi revirou os olhos — só a paixão para fazer aquelas histórias parecerem interessantes. Bufando, ele se voltou para seu celular, onde Matheus acabara de mover um bispo no tabuleiro virtual, e moveu seu próprio em resposta. Esperou.

—Claro, eu fiquei fedendo. — a garota moveu suas mãos em um gesto engraçado, e ele se viu rindo sem querer. —E talvez eu tenha odiado meu namorado, só um pouquinho. Um pouquinho gigante. — Tábata apertou nariz de Guilherme, e Davi sentiu o sorriso morrer. —No fim, a gente se pegou atrás da festa com vômito assim mesmo. Eu xinguei ele depois. Mas, cara...

Ela baixou o nível da história de repente ou eu realmente fiquei louco? Eu preciso sair daqui.

Davi se levantou, espreguiçando-se levemente, e caminhou discretamente até uma das saídas presentes no cômodo. Chegando ao vão da porta, ele parou, levemente hesitante, pensando que estava traindo o amigo: Guilherme insistiu por semanas para que ele fosse àquela festa porque era “importante para ele”. O amigo tinha estado com Davi em todas as ocasiões mais toscas e desagradáveis, sem reclamar — ok, nem tanto. Por isso, seria muita ingratidão não ficar sentado no meio de um monte de gente que ele não conhecia e...

—Ok. — disse Guilherme, animado, de dentro do cômodo. —Agora é a minha vez de contar um caso!

Davi não se arrependeu nem por um segundo: saiu do lugar.

Meu contrato de amizade não cobre escutar Guilherme falando besteiras na minha cabeça. Chega.

Curioso, ele caminhou pelos cômodos da casa, todos cheirando a mofo antigo, até que deu de cara com uma sacada, de onde o ar frio de julho entrava, congelando-o até os ossos. Satisfeito por encontrar um lugar onde provavelmente não seria incomodado, Davi se sentou no parapeito da varanda, observando a vista que o pequeno sobrado lhe oferecia: toda a Belo Horizonte, pulsante e brilhante, alguns quilômetros ao longe.

Seu celular apitou, o aplicativo lhe avisando que Matheus respondera no pequeno tabuleiro virtual, então Davi se concentrou na partida. Ali fora, tremendo eventualmente com as correntes de ar, ele se distraiu com o jogo pelo que poderiam ter sido minutos ou horas — a noção do tempo o abandonou após algumas jogadas.

—Ah! — Tábata apareceu de repente, assustando Davi, que quase caiu do parapeito onde estava sentado. —Você está aí! Guilherme reparou que você sumiu da festa. Ele está chateado.

Davi respirou fundo para se acalmar antes de responder. Uma queda daquela altura lhe renderia, no mínimo, todos membros quebrados.

—Guilherme ia começar a contar um caso. Você é namorada dele, deve saber que quando Guilherme diz que vai contar um caso, ele só fala bobagens.

Tábata riu, aproximando-se para se sentar ao lado dele no parapeito.

—É. Você não deixa de ter razão. Ele é bem chatinho.

Davi não respondeu, pegando o celular para começar uma nova partida — a décima da noite — e Tábata também não disse nada. Durante alguns minutos, ficaram ali em silêncio, sentados lado a lado, cada um imerso nos próprios pensamentos, a falta de conversação se mostrando confortável para os dois.

—E como é? — Tábata disse de repente.

Davi, distraído com o jogo, deu outro pulo, o celular escapando de suas mãos. Por alguns segundos agonizantes, ele desesperadamente tentou salvar o aparelho de uma queda de quase cinco metros, suspirando profundamente quando o teve,seguro,nas mãos.

—Garota... — ele começou, esforçando-se pra não gritar. —Avise que vai falar!

—Não me culpe por você ser distraído! — Tábata se defendeu. —E pra eu avisar que vou falar, eu preciso falar, sua anta!

Os dois se encararam, semicerrando os olhos, até que Davi finalmente suspirou, admitindo derrota — algo que vinha acontecendo muito nos últimos tempos.

—Ok... Você venceu. O que estava dizendo?

—Eu não quero que você pense que eu estou sendo intrometida, mesmo que eu esteja. — ela explicou. —Mas eu tenho um amigo... E esse amigo está confuso. Eu quero ajudá-lo de algum jeito e quando Guilherme me contou, eu decidi que tinha que te perguntar: como você descobriu que era bissexual?

Davi estacou, incrédulo: até isso Guilherme tinha contado para ela? Aquilo era uma informação dele, unicamente dele, e mesmo que Davi assumisse sua sexualidade para si mesmo, não saía divulgando-a para os outros; era mais seguro assim. O amigo não tinha o direito de sair espalhando para todo mundo.

Até que ponto as pessoas apaixonadas podem ser sem-noção? Aquele estúpido.

Tábata o encarou, esperando pela resposta, e pareceu sincera; mesmo que, como ela mesma havia dito, estivesse sendo intrometida. Analisando a situação rapidamente, Davi decidiu que não havia nenhum problema em falar sobre o assunto, uma vez que a garota já sabia — mas Guilherme, a grande boca grande, não sairia impune. Os dois iriam conversar depois.

—Bom... — Davi começou, pensando na melhor forma de resumir dois anos de confusão sobre sua sexualidade em um parágrafo de conversa. —Um dia, eu, que ficava só com moças, fiquei com um moço. Eu estava curioso, e era para ser aquele tipo de experiência uau, fiquei com um cara, foi muito louco, passou... Mas não foi. Eu adorei. Na verdade, eu descobri que eu gostava de ficar tanto com moços quanto com moças. Eu tinha treze anos na época. — ele suspirou. —Enfim, algum tempo depois, eu acordei: estou pegando rapazes, o que vai ser de mim? Passei dois anos sentindo pena de mim mesmo, continuando a ficar com os dois lados, sentindo culpa igual para ambos... Até que eu me toquei que não estava cometendo nenhum crime. Estou bem hoje.

A garota absorveu o que ele disse durante alguns segundos.

—E como é? Ser bissexual, digo.

Que merda de pergunta é essa?

—Bem, é algo, sei lá, surreal. Nós somos uma sociedade hierárquica e cada um de nós é controlado por um general. A minha é a Megan Fox. Nós estamos planejando instalar chips na cabeça das pessoas para fazê-las jogar nos dois times, então se você um dia acordar e descobrir que gosta de garotas, não se assuste. — ele fez uma pausa educada para esperar Tábata acabar de rir, e quando a garota terminou, ele deu de ombros. —Agora, falando sério... É a mesma coisa de ser gay ou hétero. Eu só tenho preferências mais amplas. Tome cuidado com o chip, é sério.

Tábata balançou os longos cabelos negros enquanto recuperava o fôlego, e ele reconheceu os atributos físicos que Guilherme provavelmente havia admirado na garota: ela era bonita de uma forma ligeiramente indígena, com os cabelos muito lisos, a pele num tom de marrom cremoso e os olhos escuros, levemente puxados nos cantos, que estavam sempre rindo. Mesmo quando sérios.

—E como seus pais reagiram? — o riso a abandonara completamente a esta altura. —Eles não sabem?

—Ah, eles sabem. — Davi estremeceu ao se lembrar do dia em que os pais descobriram. Não era um assunto que ele queria relembrar com detalhes. —Não foi fácil. Minha mãe aceita hoje, me ama como eu sou e tudo mais... E eu não tenho pai. Já faz alguns anos.

—Oh. Me desculpe.

—Não é um problema.

Ela ficou em silêncio por algum tempo.

—E é legal? Ser bissexual?

Sei de uma coisa que não é legal... Ter você me fazendo perguntas estúpidas sem saber aonde você quer chegar. O que você quer, garota?

—Tábata, eu sou um cara que pega rapazes e moças. — ele começou, condescendente. —Não um robô que solta lasers pelos olhos. Se eu soltasse, você não teria namorado a essa altura, eu teria o matado um mês atrás.

—Por quê?

—Atualmente, por sua causa. Ele não para de falar de você. Me acordou às cinco da manhã pra falar de você. Eu não aguento mais escutar seu nome.

—Lamento. — ela não parecia arrependida.

—Não lamente. Algumas coisas que ele fez, como certas vergonhas que ele passou e me levou junto... — ele deu um sorriso maleficamente conspiratório. —Você não faz ideia.

—Isso é legal! Me conta!. — os olhos da garota brilharam. —Saber as vergonhas do Guilherme vai ser uma ótima arma para chantagens depois.

E foi com essa frase que Davi decidiu que gostava de Tábata. Ela podia ter sido intrometida (embora, aparentemente, por uma boa causa) e ter feito perguntas idiotas, além de ser o motivo por ele estar ali ao invés de em qualquer outro lugar mais divertido, mas ela era adepta à chantagem — e na situação atual, qualquer pessoa que quisesse afetar Guilherme (mesmo com algo muito suave como uma intimidação) se tornava, imediatamente, amiga de Davi.

As vergonhas que Guilherme passara eram engraçadas; ele ficou feliz em relembrá-las.

—Ok. — ele tinha a mesma expressão de uma criança prestes a fazer algo muito errado. —Vou começar te contando o que ele fez quando a gente tinha sete anos. Ele apareceu na aula de artes sem o dever de casa, e o professor...

Davi falou durante bastante tempo, empolgado em contar as desonras de Guilherme para a garota. Tábata ouvia com atenção, pontuando com comentários muitas vezes sem noção, e os dois, várias vezes, terminaram rindo juntos. Era legal falar sobre a amizade de Guilherme, que em dez anos tinha rendido muitas histórias.

Quando, mais tarde, o garoto os encontrou sentados na sacada, já estavam sem fôlego de tanto gargalhar.

—O que está acontecendo? — o amigo perguntou, desconfiado. —O que vocês estão fazendo?

—Estávamos conversando... — Davi exagerou na falsa inocência, mas não importava: estava se divertindo. —Sobre você. Contei algumas histórias.

A mudança do desespero para o pânico no rosto do garoto ocorreu em menos de um segundo.

—O que você contou para ela?

—Só algumas coisas inocentes, cara. Como quando você mijou nas calças quando deu seu primeiro beijo, lembra?

Pronto. Do pânico, Guilherme foi à extrema e quase mórbida palidez, começando a falar desesperadamente sem um interlocutor fixo. Em sua ladainha, se misturavam os xingamentos a Davi com as desculpas para Tábata, a histeria da fala se tornando quase cômica.

Ele fica idiota quando está apaixonado. Olhe só para isso, pelo amor de Deus. Ele está fazendo birra como um menino de cinco anos!

—Davi, me passe seu telefone. — disse Tábata, interrompendo a linha de pensamento indignada de Davi. Parecia completamente indiferente ao namorado. —É bom manter contato com os amigos do meu namorado.

Confirmando com a cabeça, Davi forneceu seu número à garota, que lhe forneceu o dela em resposta. Ao pegar o celular para salvar Tábata como contato, o garoto percebeu que Matheus esperava uma resposta no tabuleiro virtual há exatos quarenta e dois minutos. O aplicativo entrara no stand-by após os primeiros trinta.

Davi deu de ombros — lidaria com Matheus depois.

Finalmente se penalizando com o estado de Guilherme, ele se levantou, batendo no ombro do garoto com força desnecessária para acordá-lo, o que funcionou: o amigo se calou imediatamente.

—Guilheme, cara. Se essa jovem aqui não terminou com você depois de ter vomitado nela... Ela não termina mais. — ele piscou para Tábata enquanto dava tapas amistosos nas costas de Guilherme, e decidiu que consolar o amigo daquela maneira seria o último ato da noite. Ele já tinha cumprido papel de amigo-apoiador-de-namoros do ano; era hora de ir embora. —Deu para mim. Estou indo nessa... Tchau para os que ficam.

E os deixou lá, Tábata com a expressão entretida e Guilherme com cara de tacho. Era uma cena que ele gostaria de lembrar.

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Sábado, 5 de julho de 2014

Férias, na maior parte das vezes e para a maior parte das pessoas, eram consideradas algo agradável, o mês onde todos ganhavam distância da escola e dos colegas chatos. Para alguns, elas ainda vinham com o bônus das viagens, maravilhosas excursões para lugares distantes onde era fácil arejar a cabeça de todos os problemas. Durante toda a sua vida, Davi se acostumara a escutar seus colegas do Vespasiano contarem sobre suas aventuras em praias paradisíacas, lugares de natureza selvagem e resorts de ares pacíficos; na cabeça dele, aquilo não fazia muito sentido. Era algo completamente discrepante da realidade do garoto. Como um mês fora da escola poderia ser legal?

Férias podiam ser o paraíso na terra para quase todo mundo, mas Davi, desde que se entendia por gente, as odiava.

Quando era pequeno, aquela sensação o intrigava: as férias eram a única oportunidade que ele tinha de ver os pais em meses! Como todos os seus coleguinhas, ele sentia que deveria ficar feliz e alegre, mas todas as vezes que a mãe o esperava do lado de fora do Vespasiano, ele fazia seus passos como se estivesse indo para uma prisão. Em algumas várias vezes, o garoto chorara antes de entrar no carro. A mãe, constrangida, o consolava enquanto todas as crianças passavam por eles, tagarelando alegres sobre seus planos. Era incompreensível.

Com o tempo, Davi acabou entendendo que não gostava das férias simplesmente por que elas não eram divertidas — Túlio nunca estava em casa, sempre viajando a trabalho, e nas raras vezes em que via o filho, o tratava com frio respeito. A mesma coisa acontecia com Mônica, que mesmo sendo uma mãe carinhosa e expansiva com o filho, nunca podia ficar muito tempo em casa, o trabalho de diplomata consumindo-lhe dias valiosos. No fim, Davi sobrava para as babás, dezenas de babás que nunca duravam muito tempo, e assim, suas férias se resumiam a ocasiões solitárias.

E quanto mais velho ficava, mais consciente ele se tornava do próprio tédio, inclusive passando a odiá-lo. Em suas dezenas de horas vagas em casa, o garoto reconhecia que o Vespasiano era muito melhor, pois lá ele tinha amigos — ao passo que as pessoas da própria casa lhes eram meros “conhecidos”. Ele adorava a mãe e lamentava muito o fato de ela não poder estar por perto, mas Mônica, pelo menos, mantinha contato, sempre com cartas ou telefonemas: eles se falavam quase todos os dias. O pai, ao contrário, era alguém que ele via de tempos em tempos, e que não lamentava de ter perdido.

Atualmente, Davi sabia que a única coisa que o permitia voltar à própria casa era a presença da mãe doente — depois de tantos anos sem poder vê-lo direito, ela simplesmente morreria se o filho não pudesse visitá-la em seu repouso. Por isso, desde que a mãe descobrira sua saúde frágil, ele passava todo o tempo possível de seus dias com ela, o que se revelou uma coisa extremamente fácil. E o resto do tempo, aquele que Mônica passava dormindo, Davi ocupava caminhando por Belo Horizonte — ou jogando xadrez na feira. Depois de um tempo, aquele lugar havia se tornado uma segunda casa para o garoto.

Naquele dia, ele não pôde passar muito tempo com a mãe. Depois de meia hora, foi expulso do quarto, o que não o deixou exatamente satisfeito; depois de anos naquela ladainha, entretanto, Davi aprendera a não reclamar. Saiu de casa já com destino definido, tendo em mente que era sábado e que a feira estaria a pleno vapor naquela manhã, o que era sinônimo de muitos oponentes diferentes para jogos interessantes. A perspectiva o deixou mais alegre.

Chegando à feira, a primeira coisa que ele notou foi que ela estava cheia, pululando pessoas para todos os lados, o que o fez sorrir quase involuntariamente. Em seguida, seus olhos se voltaram para a mesa em que ele geralmente se sentava, onde o tabuleiro já estava montado e uma oponente o esperava.

—Você tinha me dito que não viria hoje, Dani. — ele a cumprimentou, sentando-se. —Sua mentirosa.

A garota sorriu, e Davi não pôde deixar de retribuir: ela era sua oponente mais antiga da feira. Começara a ensiná-la antes de a garota completar seus dez anos, e agora que Daniele era uma adversária admirável, ele se sentia orgulhoso por ter sido o responsável pela melhora da menina. Os dois, em três anos de jogo, tinham evoluído da relação de parceria para uma espécie de amizade, leve e cheia de provocações.

—Sim, mas eu mudei de ideia. Queria jogar

—Você sempre quer jogar.

—E você não?

Davi ergueu as mãos em rendição, e Daniele riu enquanto comemorava sua vitória. O garoto esperou pacientemente que ela terminasse, mostrando-lhe a língua no processo, e assim que a menina se recompôs, iniciou o jogo.

Ao contrário das partidas com Matheus, sempre tensas e silenciosas, jogar com Daniele era algo divertido e leve. Eles conversavam durante as jogadas, comentando sobre os próprios movimentos, coisas do cotidiano de cada um, fazendo piadas, implicando um com o outro. Na maior parte das vezes, os jogos terminavam com vitórias de Davi (as quais Daniele desprezava solenemente), mas aquele não seguiu o padrão. Enquanto Daniele pulava e comemorava seu empate efusivamente, Davi reconheceu pra si mesmo que estava se sentindo bem melhor, embora, inicialmente, ele nem mesmo soubesse que estava se sentindo mal antes.

—Isso foi ótimo! — ela disse, alegre. — Meu namorado terminou comigo, eu precisava vencer alguém para me sentir melhor. Eu não deveria estar rindo tanto, mas...

—Você não venceu, foi um empate e... Você tem doze anos, nem deveria ter um namorado para começar. — ele usou o tom de voz mais implicante que tinha. —Doze anos! Cadê as suas bonecas?

—Te dei de presente assim que descobri a sua mentalidade idiota, sua anta isolada. Além do mais, você tem dezessete. Nós dois somos menores de idade, não venha falar comigo como se tivesse quarenta nos, ancião de araque.

Davi colocou a mão no peito teatralmente.

—Interessante. A língua de alguém está afiada hoje.

—Está. Hoje eu vim preparada. — ela sorriu. —Porque meu coração está partido! — os olhos de Dani se desviaram para algum ponto atrás dele por um instante, e ela franziu as sobrancelhas. Depois, fez um gesto indicativo com a cabeça. —Tem alguém me encarando ali... Não está legal, estou sendo fuzilada. Ah... Na verdade, ele está encarando você. É seu namorado?

Confuso, Davi acompanhou o olhar da garota até dar de cara com Matheus, sentado a alguns metros de distância, com uma expressão realmente pavorosa no rosto. Gemeu de desgosto.

—Não é meu namorado, é um fã. — ele disse, desanimado. —E você sabe que eu só tenho olhos para você.

—Sai pra lá, seu velho.

—Eu não era velho cinco minutos atrás.

—Você só é velho quando me interessa. — Daniele semicerrou os olhos. —Seu coroa caduco.

Os dois riram juntos por alguns instantes.

—Ok, eu preciso ir. Semana que vem não vou aparecer, vou a um concurso de dança. — Daniele era dançarina desde que se entendia por gente. Competições faziam parte da rotina da garota. —Me deseje sorte.

—Boa sorte! — ele foi sincero. —Traga-me um troféu, para me provar que você vence em alguma coisa.

—Acabei de empatar com você. Se eu consegui empatar com você... Venço de qualquer outra pessoa.

Davi desprezou a frase com um aceno de mão.

—Golpe de sorte.

E ela sorriu, genuinamente; ainda sorria quando virou a esquina de uma das ruas próximas à praça e Davi a perdeu de vista, voltando-se para encarar Matheus, agora sentado na cadeira de onde a garota acabara de se levantar.

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Por um longo tempo, nenhum dos dois disse absolutamente nada, trocando olhares gélidos, até que Davi finalmente suspirou e decidiu que não tinha problema tentar conversar com o garoto novamente. Mesmo que em todas as outras vezes, as tentativas de iniciar uma conversa tivessem terminado em densos silêncios.

Eu não tenho vergonha na cara mesmo.

—O que você está fazendo aqui? — perguntou, a voz destilando certo desprezo. —Duvido que seja coincidência.

—Vim jogar, obviamente. — o garoto cerrou os olhos. — Eu sabia que você estaria aqui. É para cá que vem aos sábados.

—Que interessante — ele carregou na ironia da voz. — Alguém tem me espionado!

—Humor sarcástico não combina com você.

—Não é como se você soubesse o que combina comigo. Enfim, não vou jogar com você, porque não quero que estrague meu dia. Saia agora — ele fez um gesto amplo para que Matheus se levantasse —, ou eu saio.

—Irritação supérflua também não combina com você.

Davi o encarou, firmemente. Matheus estava aparentemente despreocupado, mas era possível ver que o confronto começara a deixá-lo tenso. E depois de um mês sendo firmemente ignorado, desperdiçando suas noites com grosserias e jogos que nunca deixavam o garoto satisfeito, perdendo sono com o estresse remanescente, Davi não podia se importar menos.

—Sabe o que não combina comigo? Perder meu tempo jogando xadrez com você, sendo que isso nunca te deixa satisfeito. Você me estressa. Eu quase soquei a sua cara feia várias vezes! Você perde: ai que ruim, perdi. — o falsete poderia ter sido cômico se não fosse a fúria em sua voz. — Você ganha: ai que ruim, ganhei! Qual é a sua? Vai se ferrar! Além de, claro, me encarar como se eu fosse a droga de um verme. Então, já que eu estou perdendo noites na escola, e sinceramente, eu nem sei por que, para me estressar com você, faça o favor de não ferrar com meu fim de semana também.

Matheus o contemplou com indiferença, embora as mãos, dispostas em cima da mesa, estivessem retesadas em punhos apertados.

—Nós não somos amigos. Não tenho que te tratar como se fosse.

—Mas também não precisa me tratar como se eu fosse aidético.

—Davi...

—Matheus! — ele interrompeu, se levantando. —Olha, eu tenho um trato com você e por mais que eu odeie isso, vou cumprí-lo, ok? Mas eu não gosto de você. E se eu não gosto de você, eu não vou me empenhar. Vou deixar você ganhar todas as partidas e pronto. Porque, já que você me trata como se eu fosse inferior a você, que necessidade eu tenho de ir contra isso, não é mesmo? Você não se acha o mestre, Matheus? Responda!

Davi, ofegando um pouco, esperou que ele respondesse. Mas Matheus não disse nada e o terceiranista sentiu uma mistura estranha de decepção e presunção. Por alguns segundos, ele saboreou o fato de que aquela era a primeira discussão que ele vencia, observando a expressão pensativa de Matheus, ignorando completamente o fato de que todas as pessoas em volta tinham parado para observar. Depois, foi embora. Os passos rápidos, fervendo por dentro.

>>

Eu não entendi o que você quis dizer. Explique.”

Davi, deitado na própria cama com os fones estourando música em seus ouvidos, encarou o telefone, onde a janela de bate-papo do tabuleiro de xadrez virtual pulsava. Respondia? Não respondia? Estava em paz, a música atuando como uma terapia quase hipnótica, e não era como se estivesse ansioso para discutir novamente. Depois de um segundo de hesitação, decidiu: não responderia. Baixou o celular e voltou a se concentrar nos fones.

“Sua toupeira burra... Eu sei que você leu. Para seu azar, aparece uma janela de visualização no bate-papo. Responda.”

Davi suspirou, pegando o celular desanimadamente para responder no exato momento em que Mad Worldcomeçou a tocar. Mudou de ideia; não responderia droga nenhuma.

Sinceramente. Eu achei que conseguiria conversar civilizadamente com você.”

Ele encarou o celular, a boca formando um “o” perfeito. Era o cúmulo do absurdo: a pessoa que o vinha ignorando há tempos tinha acabado de chamá-lo de grosseiro. Sentindo-se irritado, apesar dos acordes calmantes da música que fluía por seus ouvidos, ele pegou o celular e digitou uma mensagem furiosa em resposta.

“Eu também achei. Morra.”

Por alguns minutos, o chat não mostrou nenhuma mensagem nova e Davi acreditou tolamente que o tinha afastado. O refrão de Mad World tocava, sereno e agradável — tudo parecia mais fácil de acreditar em meio a melodia melancólica. Porém alguns minutos depois, a janela piscou novamente e o garoto quis, por todas as forças que tinha, jogar o celular na parede. Maldito dia em que baixara aquele aplicativo. Maldito dia em que entrara para o Vespasiano. Maldito dia em que nascera.

“Eu entendi o que você disse, se é isso que você quer que eu diga. Mas eu só ativei esse maldito bate-papo para dizer outra coisa, então faça o favor de prestar atenção?”

Diga.”

E ele esperou. A música ainda tocava, lenta e interminável, doce e amarga. Agridoce da maneira mais agradável.

When the people run in circles it’s a very, very... — ele cantarolou baixinho. O celular piscou.

“Desculpe-me.”

—... Mad World…

Davi se levantou de qualquer jeito, os fones caindo dos ouvidos, enquanto relia a frase várias vezes. Aquilo era sério? Matheus tinha realmente acabado de lhe pedir desculpas? Seria realmente Matheus do outro lado do chat? Durante alguns minutos, o garoto encarou o celular como um idiota, pensando em como responderia aquilo, e mil possibilidades rondaram seu cérebro. Ele podia render o assunto e fazer Matheus se humilhar, podia pedir algo em troca de um perdão e podia fazer a coisa mais prazerosa de todas: dizer não.

Quando Davi finalmente digitou a resposta, ele estava se sentindo quase presunçoso.

“Eu mereço um soco por isso, mas te desculpo.”

Provavelmente merece, mas não mais do que eu. Você me irrita por motivos que não são sua culpa. Não preciso tratar você como meu amigo, mas já entendi. Ser grosso não vai adiantar nada. Então... Boa noite, Davi.”

“...Boa noite.”

A janela do bate-papo se apagou indicando que Matheus saíra do aplicativo, e Davi recuperou os fones que haviam caído. Outra música qualquer da playlist aleatória tocava e ele se deixou levar. Depois pensaria no porquê de ter desculpado o garoto, no porquê do pedido de desculpas, no porquê de ele irritar Matheus e no porquê de ele ser tão condescendente com o garoto. Mas naquele momento, não importava muito; ele tinha vencido. Ainda não sabia o que aquela vitória traria, e de certa forma, nem sabia o que vencera, mas dane-se! Ele tinha vencido.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado!
Meus agradecimentos à Moni (as melhores sugestões, sempre, always, forevá) e à vocês. É bom saber que há pessoas lendo e se identificando com a minha história. :3
No próximo capítulo trarei uma foto do ator que se parece com Matheus... Parece que pegaram o Matheus da minha imaginação e o imprimiram em 3D, é impressionante. '-'
Até o próximo! o/