Xadrez escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 11
11 - Entre Eu e Você Floresce Vazio


Notas iniciais do capítulo

Olá novamente, pessoas! Estou aqui por insistência da Moni, eu ia voltar só mais tarde, mas tive Hitler me dizendo que eu tinha que aparecer, logo, I'm here! (Mentira, Moni, eu te amo, cê sabe)

Gente, muito obrigada pelos comentários! Tive novos leitores nesse capítulo e receber novos comentários me deixou extremamente satisfeita. A reação ao beijo foi muito boa e eu estou meio eufórica com isso, então, MUITO OBRIGADA MESMO, GENTE!

Também quero agradecer ao Ganimedes, o lindo maravilhoso do Ganimedes, porque o Matheus, o Davi e mais uma penca de figurantes vão aparecer na história dele, a Rosa dos Ventos! E leiam, gente, porque o negócio é bom, é pica das galáxias, é foda para caramba! (http://fanfiction.com.br/historia/468141/Rosa_dos_Ventos)


Também quero agradecer à Midichan, pois o Matheus fez uma participação especialíssima no último capítulo da fic dela! A participação dele lá pode ser um pouco spoiler para vocês, mas nenhum problema, nada que não será citado aqui. E eu adorei vê-lo lá, obrigada, viu, Midi? s2 (Leiam a fic dela, é linda: http://fanfiction.com.br/historia/541827/Para_nao_deixar_de_amar-te_nunca)

Mas nem tudo são flores, eu tenho um aviso para dar, por isso, LEIAM AS NOTAS FINAIS.
Enjoy!



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Quinta-feira, 3 de setembro de 2014, Vespasiano

“Estava no telhado do prédio de aulas dos anos do fundamental do Vespasiano. Aquele era seu lugar favorito em toda a escola, pois não havia outro local no colégio onde Davi experimentasse igual sensação de liberdade; era como se, ali, no telhado, observando as imediações tantos e tantos metros abaixo, ele fosse finalmente dono de sua vida, alguém com um plano, com filosofias, conjecturas... Alguém com poder de decisão: ele podia ficar ali e observar, assim como podia pular e atravessar o infinito que o separava do chão, aqueles doces metros de queda que sempre lhe pareceram o caminho mais curto para um tipo bem diferente de liberdade.

— Eu sabia que conseguiria encontrá-lo aqui. — A voz soou exatamente atrás dele, mas Davi não se virou. Sabia quem era; só havia duas pessoas que conheciam sua fascinação por aquele lugar e a voz grave de William não era exatamente difícil de reconhecer. — Qual é o seu amor por esse lugar, hein? Toda vez que te vejo aqui, a impressão que eu tenho é que você vai se jogar.

— É uma queda razoável, não é? — Davi deu um meio sorriso. — Não vou dizer que não pensei nisso algumas vezes. O que foi, William? Tem alguma coisa importante para falar comigo?

— De certa forma, tenho. — O garoto sentou-se ao seu lado. Aos quatorze anos, William era anormalmente atarracado e poderia tranquilamente se passar por um adolescente dois ou três anos mais velho, se assim quisesse. Davi, por outro lado, ainda mantinha uma conjuntura magra, não exatamente franzina, mas sem muitos atrativos, e sempre ficava na dúvida entre admirar e invejar o corpo do outro; na maior parte das vezes, sentia uma mistura estranha das duas coisas. — Você anda fugindo de mim, não diga que não, sei que está. Por quê? Eu fico pensando exatamente no que eu fiz de errado. Sempre gostei de você e quando você disse que não queria mais olhar na minha cara, eu aceitei, porque sabia que você havia grandes chances de você endoidar. Aqui estamos, quase um ano depois.

Davi suspirou, ainda sem olhar para ele.

— Perdeu a paciência, William?

— Eu só quero que você pare com isso. Desejar é diferente de amar, sabia? — respondeu o garoto, muito sabiamente, e isso fez Davi encará-lo, os olhos cheios de dúvidas. — Dá para você conviver com os dois. Eu poderia dizer que apenas desejo você e você poderia dizer que apenas me deseja. É fácil colocar as coisas desse jeito. Pare de se preocupar tanto, não vai dar em nada. — E ele sorriu o sorriso todo dentes que fazia seu rosto se assemelhar às coisas que Davi assimilava imediatamente com conforto: casa, biscoitos quentinhos, cobertores e horas e horas de sono sem preocupações. — E sim, eu perdi a paciência.

E ele se curvou, rapidamente, como tinha feito naquela festa no ano anterior, o primeiro beijo problemático da vida de Davi, aquele que tinha começado todo aquele problema. Por muito tempo, Davi pensou se deveria odiar William por tê-lo beijado, por ter destruído suas doces e fáceis ilusões de heterossexualidade, mas, naquele momento, ele decidiu que não valia a pena; gostava de William, gostava de como ele o fazia se sentir em casa, da doce sensação de família que o garoto exalava. Não havia muitas coisas que poderiam atrapalhar aquele momento.

Mas o beijo que Davi esperava nunca veio. Ao invés disso, ele se viu encarando o rosto de Matheus, aqueles olhos escuros que o perseguiam tão exaustivamente, e os dois estavam pegando fogo. Enquanto queimava, Davi não pôde deixar de pensar que as chamas eram a coisa mais linda que ele já tinha visto.”

Abriu os olhos, levantou a cabeça num estalo e olhou em volta, confuso; não estava no teto do prédio, e sim em seu quarto. Não estava queimando, e sim sentindo o efeito dos últimos suspiros do inverno, que aos poucos começava a perder forças para a chegada da primavera. É apenas um sonho, repetiu Davi para si mesmo enquanto deixava a cabeça cair suavemente de volta no travesseiro. Mais um sonho.

Aquele era o oitavo dia após o beijo que ele e Matheus tinham trocado. Coincidentemente, também era a oitava noite na qual Matheus invadia seus sonhos; seus malditos olhos que não eram pretos, e sim castanho-escuros, perseguindo-o em todas as situações que seu subconsciente insistia em criar. Parecia quase uma brincadeira de mal gosto de sua mente com ele, encontrar modos de encaixar Matheus em todos os cenários possíveis para que o segundanista fosse a primeira coisa em que Davi pensasse quando acordasse pela manhã, mas naquele dia em particular, seu cérebro tinha se superado. Como cargas d`água a mente dele tinha conseguido enfiar Matheus em uma de suas lembranças mais queridas? E, mais interessante, de onde é que seu cérebro tinha desenterrado William?

Ele digeriu o nome por um momento, fechando os olhos. Havia tanto tempo que aquela figura não surgia, nem mesmo em seus pensamentos! Faz tanto tempo... Aquele foi o dia em que ele me pediu em namoro, acho. Quatorze anos e nenhuma maturidade, nenhum dos dois.

Olhando para o lado, Davi checou rapidamente as horas: seis e cinquenta e sete. Normalmente, aquilo significaria que ele logo teria que levantar, pois as atividades do clube começavam às oito, mas, para sua sorte (ou azar, tudo dependia do ponto de vista), naquele semana e na seguinte, não haveria qualquer atividade relacionada às associações: todo o tempo livre dos alunos deveria ser direcionado para as revisões para as provas que estavam acontecendo. Davi adorava aquelas épocas porque, geralmente, seus estudos eram todos feitos à noite, na escuridão de seu quarto e sozinho (fins de bimestre eram os únicos momentos do ano em que a biblioteca lotava), e ele ficava com as manhãs só para ele, geralmente para dormir, ler ou fazer qualquer outra coisa que ele quisesse.

O que naquele momento, significava pensar em William.

William fora uma das pessoas mais interessantes que Davi já conhecera, a única que o pedira em namoro e tivera coragem para aguentá-lo por um tempo considerável. Os dois mantiveram o relacionamento por um ano e, por ter resistido àqueles doze meses, o terceiranista considerava o ex-namorado um senhor sobrevivente; Davi reconhecia que fora um parceiro chato, inseguro, por muitas vezes enjoado e definitivamente complicado de lidar. Em seus dias mais difíceis, seu passatempo favorito era perguntar a si mesmo se amava William e resposta nunca deixou de amedrontá-lo; quando os dois finalmente terminaram, Davi percebeu que aquilo não o incomodava e ficou claro que a aquela maldita pergunta nunca fora um bicho de sete cabeças, o garoto quase quis correr atrás de William e pedir desculpas por sua estupidez. Contudo, o término fora a última vez em que eles se falaram.

Basicamente, William pagou o preço por uma insegurança minha. Davi se virou na cama, indagando a si mesmo se valia a pena voltar a dormir ou não. E eu o obliterei da minha mente, porque não vale a pena ficar pensando nisso. Se pelo menos eu o tivesse visto recentemente, justificaria o sonho, mas sinceramente, faz muito tempo que eu não vejo o bicho. Claro, eu o parafraseei sem perceber na semana passada, enquanto falava com Matheus, mas será que isso foi suficiente para provocar um sonho?

Davi não entendia muito de sonhos — geralmente, ele não se lembrava de nenhum deles — e, por isso, não sabia a resposta. Na verdade, nenhum dos oito sonhos estranhos que ele tivera naquela última semana havia feito algum sentido para Davi e ele passou horas dissecando cada um deles até finalmente entender que foram apenas sonhos; frutos de sua mente, perturbada por aquele beijo, provavelmente, mas sonhos, e aquela lembrança com William não se mostrava nem um pouco diferente. Sentindo-se cansado, Davi decidiu que não valia a pena ficar remoendo demais aquilo e reprogramou o despertador para um cochilo de mais meia hora, fechando os olhos suavemente quase ao mesmo tempo em que colocava novamente o aparelho sobre o criado mudo...

— Davi! — chamou-lhe alguém no que pareceu ser apenas um segundo depois, a voz parecendo ribombar dentro de seu cérebro. Assustado, Davi levantou a cabeça em uma fração de segundo, temendo ser alguma emergência ou algo do tipo, mas não; era Matheus, observando-o com a expressão parecendo sinceramente dividida entre a preocupação e o riso. — Acalme-se, meu filho. Sou só eu.

— Ah... — Davi passou a mão no cabelo, desorientado. — Que horas são?

— Dez para as oito. Eu tomei a liberdade de desligar seu alarme para pensar na melhor forma de assustá-lo, mas, no fim, decidi pela mais simples. — Matheus deu um sorriso brilhante. — Tiago me disse que você estaria aqui.

Hã?

— E desde quando você e Tiago são assim, tão amigos?

— Desde que eu e ele conversamos, semana passada, e decidimos que não valia a pena levar uma briga de bêbados para frente. Não somos melhores amigos, mas conversamos — explicou, desinteressado. — E eu atualmente preciso da sua ajuda para estudar para português. Agora. Minha prova é hoje e eu não estudei nem uma linha sobre figuras de linguagem.

— Peça ao Marcelo, ele é o cara das colas.

— Não tente me enganar, eu já sei que, em português, quem dita as colas é você. O Victor me disse.

Maldito Marcelo e sua boca grande, Davi pensou, desanimado. Não queria passar uma manhã inteira sozinho com Matheus, ainda mais estudando português. Quero ver você conseguir colas comigo nesse bimestre, desgraçado.

— Encontro você mais tarde, então. — Davi tentou se esquivar, arriscando um olhar para Matheus, mas logo o desviando, a lembrança das chamas do sonho o deixando desconfortável. — Tenho que tomar café.

— Não, não tem. — Matheus esticou uma bandeja cheia de comida para ele, rindo alto da expressão de choque no rosto do terceiranista. — Eu peguei uma coisa de cada porque você come feito um porco, mas deve servir. Come depressa, se você demorar muito, não vai ter mais vaga na biblioteca. E eu preciso estudar. Sou um nada em português, é sério. Ainda bem que literatura não tem provas, senão eu ia dar um jeito de levar você para a sala do segundo ano na hora da prova.

Ele deve estar desesperado... Mais desesperado que eu. Que legal. Não tenho motivos para não ajudá-lo.

Davi respirou fundo, encarando a bandeja e todos os itens que Matheus recolhera. Como ele conseguira pegar tudo aquilo sem ser pego pelas cantineiras? E o pior, se ele se dera ao trabalho, Davi não devia simplesmente agradecer e deixar as coisas estúpidas sobre as quais sonhava de lado? Em um ímpeto de coragem, o terceiranista encarou Matheus, esperando que algo horrível acontecesse, mas não havia nada para acontecer; o segundanista acordara na semana anterior disposto a fingir que o beijo não acontecera e estava levando essa filosofia à risca, encarando-o de volta com nada mais do que uma leve e genuína confusão.

Ele finge que não aconteceu e talvez não tenha acontecido... Talvez tenha sido apenas um dos meus sonhos doidos. Foi bem convincente, claro, mas não tem nada que prove que realmente aconteceu. Nada.

— Ok, Matheus, você venceu — suspirou Davi, pegando uma bolacha da bandeja de comida e mordendo preguiçosamente. — Se você pregar sua bunda magra aí e esperar eu terminar de comer, eu ajudo você com as matérias que você precisar. Não é como se eu tivesse muita opção, não é mesmo?

Matheus olhou para ele como se a resposta fosse óbvia.

— Não, é claro que não. — Ele estendeu a mão. — Me dê um potinho de geléia, as de morango são as melhores.

— Um dia eu ainda vou me vingar de você por ser tão folgado. — Davi jogou o tal potinho para ele, sem encará-lo. — Sinceramente, entrar no meu quarto assim, me acordar e ainda exigir comida; não é um absurdo?

O segundanista deu um sorriso maligno.

— Até parece que você já não está acostumado...

Davi não tinha resposta para aquilo e, admitindo a derrota, pôs-se a comer os demais itens da bandeja, se perguntando como iria sobreviver a uma manhã inteira com um Matheus naquele humor tão alegre. Claro, havia certas coisas que eram feitas por uma amizade que não se explicavam, muitas por fidelidade, ou gratidão, ou simplesmente porque a pessoa é sua amiga; mas, naquela vez, Davi só conseguiu pensar que fazer aquilo era uma tremenda burrice de sua parte. Ele devia dormir; Matheus podia perfeitamente estudar sozinho e não o estava obrigando a nada, não de fato.

Por que ele tinha aceitado ajudá-lo a estudar, então?

.. Davi fechou os olhos, obrigando seus pensamentos inconvenientes a se calarem. Esse dia vai ser tão legal...

>>

O humor desanimado de Davi não melhorou quando ele e Matheus chegaram à biblioteca; o lugar, geralmente silencioso e calmo, estava anormalmente cheio, um movimento constante de alunos para lá e para cá que podia parecer até mesmo claustrofóbico para pessoas mais sensíveis. Das mesas lotadas, surgia um burburinho, uma mistura de vozes que forçava entrada de maneira desagradável pelos ouvidos de Davi, que pescavam frases inteiras, a maior parte delas constituindo perguntas que ele, involuntariamente, acabava respondendo em seus pensamentos.

Cinquenta ao quadrado? Dois mil e quinhentos. Sistemas de equações com duas incógnitas? Faça pelo método de adição, é mais fácil. Hitler se suicidou, sua anta, não levou um tiro! Stalingrado era uma cidade russa, gente, nada de... Por favor, me diga que esse menino acabou de falar que Machado de Assis escreveu Senhora, é burrice demais para uma pessoa só, meu Deus...

— Davi, você está bem? — Matheus se aproximou com os livros que o terceiranista o mandara buscar; faziam uma pilha considerável em seus braços. Os dois tinham combinado que, enquanto Matheus procuraria os livros, Davi garantiria uma mesa para os dois, algo que não foi exatamente fácil, já que a biblioteca se tornara, de repente, o centro de atividades da escola; o terceiranista precisou cercar os garotinhos do sétimo ano que estavam sentados naquela mesa por cinco minutos até eles que eles finalmente percebessem que aquele era um convite não verbal para que saíssem e o fizessem, as expressões mal humoradas. — Parece meio pálido.

Davi balançou a cabeça, distraindo-se quase sem perceber do burburinho enquanto sua mente se preenchia com algo muito mais torturante: Matheus.

— Não, estou bem. Achou todos os livros que eu pedi?

— Sim, acho que encontrei todos. — Matheus jogou a pilha em cima da mesa, levantando uma enorme nuvem de poeira. Davi espirrou. — Saúde. Esses livros são da época de Matusalém, tem uma suruba de ácaros aí dentro... Você vai sobreviver?

Davi espirrou novamente, e mais uma vez, e outra, os olhos de Matheus se arregalando gradualmente a cada espirro; eles estavam quase saltando do rosto quando a crise finalmente passou.

— Acho que sim — gemeu o terceiranista, coçando o nariz, a saliva grossa na boca. — Sou muito alérgico, mas fazer o quê? Vamos lá, vamos ver esses livros... — Ele foi desfazendo a pilha, passando os olhos distraidamente pelos títulos. Português e História, Português Projeto 2, Português Segundo Ano, Português e Literatura Aplicada, A Cidadela... Parou. A Cidadela? Confuso, folheou o livro brevemente, pensando ser algum tipo de engano, mas não; era de fato A Cidadela, o livro que ele lia praticamente todos os dias antes de dormir e, com olhos interrogativos, Davi o ergueu para que Matheus o visse. — Você não pegou isso por engano, pegou?

Matheus encolheu os ombros.

— Não. Você está sempre com esse livro na mão, o mínimo que podia acontecer era eu ficar curioso. Quantas vezes já o releu só nas últimas duas semanas?

— Não sei, perdi a conta. — Davi estendeu o livro para ele. — Eu acho que você vai gostar; é necessário um pouco de paciência na primeira vez, mas é um ótimo livro... E o meu favorito desde sempre, eu não faço nenhum esforço para lê-lo, é quase uma terapia. Tipo, eu o ganhei de aniversário do meu pai quando tinha onze anos e tento relê-lo pelo menos uma vez por mês desde então.

— Não foi você quem disse“eu não tenho pai”? — perguntou Matheus, fazendo falsete. — Além do mais, que tipo de pai cruel dá um livro tão assustador para um menino tão novo?

— O meu. — Davi folheou Português e Literatura Aplicada enquanto respondia. — E, só para sua informação, eu tenho um pai, só tive uma briga muito séria com ele há algum tempo e por isso, não conversamos mais. Simples.

— Algo tão profundo a ponto de ele te dar esse livro de velho de aniversário?

Davi teve que rir.

— Não, sua anta, isso foi antes. E não é um livro de velho. Além do mais, seu pai te dá tabuleiros todos os anos no seu aniversário, o que você pode falar? — Finalmente encontrando a página do livro que queria, o terceiranista começou a fazer, com traços leves de lapiseira, marcações por toda a sua extensão. — Quando foi o seu aniversário, inclusive?

— Não foi. Será. Vinte de setembro. — Matheus parou, como se tivesse acabado de se dar conta de algo. — Cara, isso está perto! Vai ser num sábado, se eu não me engano, então meu pai, provavelmente, vai me chamar para uma partida comemorativa com o tabuleiro do ano, enquanto a minha mãe vai aprontar alguma coisa para a gente comer. Ela gosta de cozinhar e inventa umas coisas bem maneiras para os almoços de aniversário... Vou fazer dezessete anos e acho que ela nunca repetiu nenhum prato, mesmo se for contar com os aniversários da Karina.

— Que cenário mais animador — comentou Davi, a cabeça baixa, ainda fazendo marcações no livro. — Meu aniversário é no final do ano e sempre, sempre, cai na semana final de provas; é uma grande merda. Eu não posso ir para casa comemorar e nem posso receber visitas, então, para me colocar para cima, meus colegas costumam organizar umas supercolas para me passar e, se o professor do dia for bonzinho, ele me promete uma boa nota, independente de como eu for na prova. Mas tudo depende, teve um ano em que eu passei a manhã do meu aniversário inteira estudando para uma maldita prova de matemática e perdi média, o que foi ótimo. Sabe o que significa isso?

— Que você é um azarado, mas podia ser pior; pelo menos você não faz aniversário no dia vinte e cinco de dezembro. — Sorriu maldoso. — Karina não faz no dia vinte e cinco, mas faz no dia vinte e dois e ela nunca ganha dois presentes. Nem dos nossos pais.

Davi considerou isso por um segundo enquanto terminava de fazer marcações do rodapé da página, virando o livro na direção de Matheus e indicando a ele um dos primeiros sublinhados com o dedo.

— Pobre da sua irmã — disse, soando mais divertido que empático. — Mas eu sou capaz de apostar que, apesar de ela ganhar um presente apenas, esse presente não é um maldito tabuleiro de xadrez, todos os anos. — Ele sorriu satisfeito quando os olhos de Matheus se cerraram para ele, afiados como navalhas. — Enfim, vamos começar. Comparação é a aproximação de dois elementos com a ajuda de um conectivo...

Ficaram ali por horas que, futuramente, Davi admitiu terem se passado bem depressa. Matheus parecia ter decidido compensar o incômodo da manhã com aplicação e as matérias fluíram com bastante facilidade, o silêncio se mostrando bastante confortável para os dois; com exceção das crises eventuais de espirros de Davi — depois da terceira, o segundanista desistiu de desejar-lhe saúde — e de algumas explicações pontuais, não houve nenhuma conversa por um longo tempo.

Contudo, apesar de o tempo ter se passado velozmente, Davi jamais poderia dizer a si mesmo que aquela foi uma manhã fácil; entre as horas em que tinha que explicar a matéria ao segundanista e os momentos em que corrigia os exercícios que ele próprio passava para testar o outro, só lhe restava o tédio, e para preenchê-lo, Matheus era a única coisa interessante que havia para se observar. Era estranho, quase ridículo, o modo como os olhos de Davi acabavam se deitando sobre detalhes mínimos — os movimentos das mãos, as sombras na pele, o modo como a franja caía sobre a testa inclinada — e dissecando coisas nas quais ele nunca tinha reparado, como o formato das bochechas, a curva dos lábios levemente desproporcionais, que involuntariamente lhe remetia àquele maldito beijo...

Ele não devia ter suspirado de alívio quando Marcelo apareceu, sentando-se sem permissão em uma cadeira enquanto cumprimentava aos dois presentes com acenos efusivos de mão, quebrando totalmente clima de concentração que cobria a mesa; mas levando em conta Matheus e a tortura que ele representava para Davi, a sensação de desafogo foi quase inevitável.

— Ei, Davi! — Marcelo se esticou folgadamente na cadeira. — Te cacei em tudo quanto é lugar, Gasparzinho, devia ter adivinhado que você tava aqui enfiado, você é meio rato de biblioteca mesmo...

— Me caçou, me achou — interrompeu Davi, com um mau pressentimento; Marcelo estava falante, e um Marcelo falante denunciava nervosismo. Que merda aconteceu agora, Deus? — O que foi?

— Você sabe do negócio da formatura, não é? Aquela coisa do comitê. Nós, do conselho, escolhemos cinquenta alunos para organizar a festa. — Ele parou, esperando por uma confirmação, e desatou a falar novamente assim que Davi acenou afirmativamente com a cabeça: — Então... Os nomes surgem e são votados e você teve uma votação bem expressiva. Parabéns! — Marcelo sorriu brilhante. — Você faz parte do comitê!

Mas como é que é? Davi sentiu uma onda de irritação e massageou as têmporas com força, para se acalmar. Como se eu já não tivesse problemas o suficiente por minha própria conta, lá vem o maldito comitê me enfiar mais alguns mil goela abaixo!

— Marcelo — murmurou, a voz perigosamente cortante —, há mais de seiscentos alunos apenas cursando o ensino médio desse maldito colégio e, não dizendo que sou muito modesto, mas merda, eu estou bem na média. Então, ao invés de me dizer que “nomes surgem”, me diga quem fez meu nome surgir, porque eu estou bem irritado agora.

O colega ergueu as mãos em um gesto autoexplicativo, sorrindo de uma maneira que, provavelmente, pretendia mostrar algum arrependimento, e Davi sentiu uma violenta onda de desânimo. Quem precisa de inimigos quando se tem amigos que te jogam para a forca desse jeito?

— Culpado. Desculpa, cara, mas pensei em você na hora! Você tem o espírito das festas, vive madrugando nelas... E agora não adianta chorar, é obrigatório e vale pontos na sua nota. Mas não fica chateado! Você vai descobrir que é bem divertido organizar essas festas e, além do mais, eu vou estar lá! — acrescentou, de forma convencida. — Mas não foi por isso que eu vim aqui te avisar, outra pessoa poderia ter feito isso, embora não de forma tão gentil, eu creio...

— Ah, super gentil, o que é isso — troçou Davi. — Mas vá lá, me conte, qual é a coisa que você tem de tão importante para me falar a ponto de precisar interromper os estudos do Matheus?

Ao ser citado, Matheus, à parte na conversa, levantou os olhos brevemente, encarando os dois amigos com tédio antes de voltar a fazer seus exercícios.

— Se liga... O Comitê é formado por cinquenta pessoas. É você, mais quarenta e oito e... O William, que também vai estar lá.

Davi respirou fundo, sentindo o efeito psicológico da pancada. É por isso que ele está nervoso. Está com medo de como eu vou reagir. Ele piscou longamente, o rosto do ex-namorado aparecendo sem permissão por trás de suas pálpebras. William. Parecia muita coincidência, sonhar com ele, gastar tempo pensando nele pela manhã e descobrir, no mesmo dia, que seria obrigado a conviver com o moleque pelos meses seguintes. Coincidência demais. Não que eu me importe, claro... Fui eu quem determinou a situação atual das coisas e não me arrependo. Contudo...

— Ah, é mesmo? — Davi manteve o tom cuidadosamente indiferente. — Ruim para ele, né? Ele me odeia, não vai suportar nem ficar na mesma sala que eu sem se coçar todo.

— Realmente, ele tem alergia a Davi — afirmou Marcelo, rindo um pouco, parecendo ligeiramente aliviado. O que ele achou que eu fosse fazer? Derrubar a mesa? Quem terminou o maldito namoro fui eu, caramba! — Mas eu realmente quis avisar antes, pois sei que vocês não se veem faz alguns anos e não queria que você pensasse que eu te joguei em algum tipo de armadilha, sabe...

Ele se calou; Davi lhe lançara um pesado olhar de advertência. O namoro com William não era segredo nenhum para os alunos que tinham convivido com os dois na época, mas, por algum motivo, de repente, o terceiranista não quis que Matheus soubesse sobre aquilo, queria poupá-lo... Mas de quê?Essa é a minha vida. Eu não tenho nada para esconder de ninguém... Tenho?

— Se está tão preocupado, vá até o William e avise isso para ELE — rosnou. — Mas obrigado — acrescentou, com mais suavidade. — Não ia ser uma surpresa agradável encontrá-lo depois de tanto tempo...

— Isso é porque eu sou incrível, um cara preocupado com os amigos e com a paz mundial e...

— Mas agora XÔ! — interrompeu-lhe Davi, batendo palmas como quem espanta galinhas. — Caso você não tenha reparado, estou bancando o professor aqui e a sua atmosfera de burrice está estragando a minha intelectualidade. Xô, xô, xô, XÔ! Anda! Esse traseiro magro seu ainda está aqui por quê? Tchau!

Marcelo riu, mas acabou saindo, os braços erguidos em uma rendição simbólica, Davi o acompanhando em um riso baixo que surgiu e rapidamente morreu em seus lábios ao ver os olhos de Matheus subirem para encarar os dele, a pergunta muda tão clara como se ele a tivesse gritado. Durante um momento, os dois apenas se entreolharam, em uma estranha conversa silenciosa, até que a determinação firme de Davi enfim venceu e o segundanista desviou os olhos, suspirando, aparentemente disposto a deixar o assunto para lá. E Davi, mais confuso do que nunca, apenas se perguntou por que se importava tanto com o que o outro pensava; havia de fato um por quê?

Tenho a impressão que, independente de qual for a resposta dessa pergunta, não vou gostar nem um pouco dela...

— Então, Davi — disse Matheus, a voz suave —, sobre a sinédoque, eu tenho uma dúvida...

>>

— Não vai dar tempo de você me passar tudo.

Não era uma pergunta. Matheus tinha acabado de checar o visor do celular e agora o exibia para Davi, que, ao ver as horas, não pôde deixar de concordar com o outro; já era meio-dia, hora do almoço, e logo após seriam aplicadas as primeiras provas do dia.

— Não vai dar tempo — concordou Davi, se espreguiçando com energia, todas as juntas estalando sonoramente. Estavam sozinhos na biblioteca àquela altura; todos os outros alunos já tinham fugido para o refeitório. — E nós não podemos levar os livros de estudo com a gente... No que você ainda tem dúvida?

— Metonímias. São muitas, não consigo identificá-las... E metáforas.

O amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente — citou Davi, poeticamente, se levantando da cadeira. Matheus o imitou. — O amor é como fogo que arde sem se ver, é como ferida que dói e não se sente. Na essência, a frase é a mesma. Qual é a diferença entre as duas?

Os dois caminharam lentamente para fora da biblioteca, Matheus franzindo os olhos enquanto processava a pergunta; estavam no meio do pátio que separava os prédios da biblioteca e refeitório quando o garoto enfim pareceu entender, fazendo uma expressão de desagrado, como quem diz caramba, como não saquei isso antes?

— É a droga do conectivo, certo? — perguntou, estalando os lábios quando Davi balançou a cabeça lentamente em confirmação. — São duas comparações, mas uma delas tem o conectivo e outra não; meu Deus, estou me sentindo uma anta!

— É porque uma anta é o que você é. E não olhe para mim com essa cara, é isso mesmo. — Davi sorriu para a careta que o outro lhe fez e os dois entraram no refeitório lotado, como sempre ficava, um falatório insuportável no ar; quando falou novamente, o terceiranista teve que gritar para ser ouvido: — Você quer que eu faça um resumo mega resumido da matéria de metonímia para ver se você pega de última hora?

— Não vai sentar com o Guilherme? — gritou Matheus de volta. — Se bem que eu não estou vendo o moleque... Ah, dane-se, vou pegar minha comida e eu aceito o resumo. E seu celular está tocando, sua toupeira surda!

Davi ia revidar, mas constatou que era verdade; seu celular estava realmente tocando e vibrando em seu bolso sem que ele percebesse. Mas que diabos... Eu não sou assim tão distraído, ele pensou enquanto retirava o aparelho do bolso, destravando o visor e constatando que não era uma ligação, e sim uma sequência de várias mensagens de Guilherme:

Cara, cadê vc, não veio pro café”

“Sua jorenga desmamada, depois reclama que eu não apareço”

“Vei, vc sumiu, eu precisava de resumo de português”

“Ah, dane-se, aposto que tá se pegando com alguém e não me contou”

“Eu sou seu amigo, então se tiver ficando com alguém, pelo menos me conta, porra.”

Aquelas tinham sido mandadas no começo da manhã e Davi, entrando logo atrás de Matheus na fila da comida, sentiu vontade de bater em si mesmo; para que ter um celular se você nunca está por perto para ler as mensagens que as pessoas te mandam? Desanimado, o terceiranista desceu a página, sabendo, antes de ler as mensagens mais recentes, que Guilherme estava puto com ele (e Davi admitia, com certa razão):

Para que vc tem a merda de um celular se você não responde as mensagens?”

‘Sei que vc não se importa, mas eu não vou p o almoço”

“Graças a vc, fi de mãe, eu to preso na sala com uma meia dúzia de pé-rapados E ainda não fiz metade da prova”

“Se eu reprovar a culpa é sua”

“Que tá se dando bem dando amasso em alguém enquanto eu sofro”

“Isso, não responde mesmo, deixa a minha praga pegar, tomara que seu cabelo caia também e você fique pobre”

— Cara, ele parece a minha mãe — comentou Matheus, entortando o corpo para ler as mensagens também. — Eu, se você fosse você, respondia depressa, sei lá, vai que a praga dele pega mesmo?

— Não tem como eu me pegar com alguém, aqui só tem homem, Matheus. — Tecnicamente, tem jeito, inclusive com você, seu filhote de cruz credo, mas... Pensou Davi, e Matheus pareceu ter feito a mesma coisa, pois um leve rubor coloriu suas bochechas. — Isso é ele se mordendo pela falta da minha companhia, apenas; mais tarde, ele vai vir correndo exigir mais atenção da minha pessoa.

— Ah, o bromance... — comentou o outro, subindo os olhos para ler as primeiras mensagens. — Então Guilherme não vem. Vou ganhar a revisão de metonímias?

— Vai. Arrume sua bandeja aí, vou responder ao bendito carente.

Matheus moveu os lábios em um fantasma de sorriso antes de se virar, pegar a bandeja e escolher a comida, Davi, logo atrás, digitando uma sequência rápida de mensagens em resposta para Guilherme:

“Não, não tô me pegando com ninguém.”

“Estava ajudando o Matheus a estudar”.

“E antes de você vir chorar, ele pediu primeiro.”

“E jorenga desmamada é você, sua jorenga-jorenga”

“Que se dá bem com a Tábata todo final de semana e vem em encher o saco.”

“Vai chorar para lá, seu ser insignificant”

Levantando a cabeça do visor do celular, Davi notou que Matheus já tinha terminado de arrumar seu prato e o esperava, a postura corporal toda indicando pressa, os pés batendo de forma aparentemente involuntária no chão. Havia certo orgulho teimoso no modo como ele se portava e, assim que o garoto encarou Davi, os olhos indagativos e impacientes, o terceiranista se viu arrumando sua bandeja rapidamente, quase sem perceber, servindo-se das comidas sem de fato olhar para elas, apenas por um ímpeto de... Agradar? Mas agradar a quem, meu Deus?

Quando terminou de arrumar o prato, cheio de coisas que ele não gostava de comer, e percebeu que tinha feito tudo aquilo apenas por causa do olhar impaciente que o outro lhe lançara, Davi sentiu um pânico frio se derramar como um balde de água por seu corpo; ele realmente tinha acabado de agir como um idiota apaixonado por causa de Matheus? A pergunta era retórica e a resposta lhe veio imediatamente, provocando no garoto um intenso desejo de cavar um buraco no chão e desaparecer da face da Terra.

Como assim? Isso não é normal, pensou, enquanto os dois caminhavam pelo refeitório à procura de uma mesa. Desde quando ele ganhou todo esse controle sobre mim?

— Então vá lá — disse Davi, tentando se distrair daqueles pensamentos deprimentes, enquanto pescava as coisas comestíveis de seu prato; havia até um pedaço de lasanha de berinjela ali, junto com uma fatia de salmão grelhado! Isso não é de Deus, gente, não é. — Faça perguntas, eu vou respondê-las, é mais rápido do que eu falar tudo de novo.

— Tipos de metonímia, quais são?

— Não há tipos, são situações; o continente pelo contido, a marca pelo produto... Tem uns trocentos, vou te mandar por mensagem, você faz uma cola discreta.

— “A Coca-cola fez uma campanha de marketing” — recitou Matheus, mecanicamente — é uma metonímia, certo?

— Certo. Mais perguntas?

— Perífrase é para coisas e antonomásia é para humanos, certo?

— Exato.

— O que é uma jorenga?

Davi parou, a colher de comida a meio caminho entre o prato e a boca, piscando várias vezes antes de romper em uma risada alta e clara.

— Cara, eu não faço ideia — disse ele, quase rindo novamente ao ver o olhar confuso que Matheus lhe lançava. — Ninguém sabe.

— Deus, olhe só para mim e veja as pessoas que escolhi para fazer amizade! — dramatizou Matheus em tom de sofrimento. — Por favor, eu tenho os garotos do segundo ano, todos como opção e faço turno com uma cambada de malucos fugidos do hospício do terceiro ano!

— Poderia ser pior — intrometeu-se Marcelo, aparecendo do nada do lado do garoto. — Pelo menos você fez amizade com uma cambada de fugidos do hospício que manjam da matéria e te ajudam a estudar para as provas! Imagine se fôssemos, além de doidos, burros? Aí você estaria perdido.

Matheus levantou os olhos para encará-lo por cima do ombro, parecendo bastante descrente; Davi cumprimentou o garoto com um aceno azedo de cabeça.

— Você, de novo? Está pior que o seu irmão, vocês têm a capacidade de aparecerem do nada em conversas para as quais não foram convidados.

— Ui, doeu. — Marcelo levou a mão ao peito de forma teatral, rindo sem humor. — Mas não é por querer, eu nem percebo que estou me intrometendo... Enfim. Preciso do Davi por um momento.

— Não, nada disso, ele é meu agora, eu preciso da minha revisão! — rebateu Matheus, parecendo irritado, e Davi prendeu a respiração sem perceber. Ele não faz ideia do poder das coisas que ele diz. — Sai, xô, você é quem passa as malditas colas, então não precisa de ajuda!

— Não preciso de ajuda, mas... — O garoto se virou para Davi, os olhos suplicantes. — É sobre o William.

É complô do mundo? Enfiar-me o William goela abaixo de novo? Não vou conversar com Marcelo, também... Ele pensou melhor por um segundo. Vou sim. Não vou. Vou sim. Não vou...

— Ah, ‘tá bom! — praguejou alto, se levantando de supetão, socando a mesa com força. — Já volto, Matheus.

E irritado, Davi praticamente arrastou Marcelo para o canto do refeitório — ali o falatório era mais intenso e, consequentemente, a possibilidade de serem ouvidos era menor —, encarando o garoto com olhos gelados enquanto esperava que ele falasse.

— Olha Davi, eu sei que você está irritado, mas...

— Eu ‘tô puto, Marcelo, putérrimo, porque, porra, eu terminei o maldito namoro há três anos e eu NÃO ligo para o que o William faz ou deixa de fazer! Pare de me enfiar o William goela abaixo, merda!

— Desculpa, cara, é sério — disse Marcelo com seriedade, parecendo de fato arrependido, e Davi sentiu sua raiva se abrandar alguns graus. — Mas, se eu não viesse, William disse que ele mesmo viria e eu tenho a impressão de que você não quer que o Matheus fique sabendo do namoro de vocês. Ele faz o tipo preconceituoso?

— Não interessa — retrucou Davi, com grosseria. — O que foi? O que o William quer comigo?

— Bem... Eu realmente segui seu conselho e fui lá avisar para ele que vocês dois estariam juntos no comitê... Ele deu um mega chilique e disse para você se encontrar com ele no lugar de sempre hoje à noite. Disse que você ia saber onde é.

O telhado, realizou Davi, a mente trabalhando depressa. Meu Deus, meu ex-namorado é um maldito nostálgico que não sabe a hora de deixar o passado para trás. Onde é que eu fui amarrar minha égua, Deus?

— Legal para ele, eu não vou mesmo. Tem mais algum recado ou veio me encher o saco só por causa disso?

— Tem reunião do comitê amanhã de manhã. É bom aparecer, ou eu vou recrutar o Matheus para tirar você da cama, ele parece ser bom nisso — avisou Marcelo, pouco afetado pelo claro ódio fervente do outro. — É sério, Davi, eu se fosse você, aparecia no tal lugar. O término de vocês dois não foi feito em bons termos e, se vocês vão ser obrigados a conviver pelos próximos meses, é bom que estejam de bem um com o outro para isso. Apareça lá, converse com ele, seja simpático... Vocês não precisam ser amigos, mas eu não vou ter paciência para aguentar briguinhas de vocês no comitê.

Então porque sugeriu meu maldito nome para votação, sua anta? Davi respirou fundo para se acalmar; às vezes, era difícil não pensar que ele tinha, simplesmente, o maior dedo podre do mundo para escolher amigos. Guilherme, que arranjou uma namorada e me esqueceu, Matheus, que não me deixava em paz, me beijou e agora brinca de fingir que nada aconteceu e esse desgraçado, que nem sequer pensou duas vezes antes de me mandar direto pro inferno!

— Marcelo... — ele sibilou, pensando se deveria gritar e fazer um escândalo, virando, sem sombra de dúvidas, assunto de fofocas pelo resto do dia no colégio ou se deveria simplesmente deixar para lá. A primeira opção era muito mais divertida e Davi realmente a considerou, mas como lutar com o fato de que ele tinha sido criado para ser um garoto sensato? Suspirando, o terceiranista se forçou a pensar em coisas agradáveis, como frango frito gorduroso e sorvete de menta, até finalmente readquirir controle suficiente sobre sua voz para falar novamente: — Ah, ok! Você venceu! Feliz? Satisfeito? Vou à reunião, vou ao maldito encontro com o William e você trate de me fazer tirar total em todas as provas, senão a coisa vai ficar feia para o seu lado! Que saco! Eu não tenho paz!

E, irritado, o terceiranista virou as costas para o amigo, pronto para voltar à companhia de Matheus, que, apesar de ser o pior garoto que Davi já conhecera e de irritá-lo horrores, pelo menos não ia encher-lhe o saco por causa de William. Pelo menos isso. Tive demais de William por hoje.

— Claro que sim! — gritou Marcelo, divertido, quando Davi já tinha atravessado metade da distância entre o garoto e Matheus. — Você tem essa carinha suave e frágil; todos querem encher o seu saco, literalmente, sabe?

Davi não gritou nada de volta. Apenas mostrou o dedo do meio para o amigo, com uma careta muito digna no rosto, e, ao receber o riso dele como resposta, não pôde deixar de pensar que, apesar de ser o tipo de amigo que atirava o outro direto para a forca, Marcelo valia a pena a sua paciência. Afinal de contas... Ele me passa colas. Isso é o tipo de coisa que vale como perdão para qualquer outro crime.

— Já terminaram? — perguntou Matheus, quando Davi se jogou novamente em sua cadeira, encarando a bandeja com desânimo; de repente, o prato de comida já não parecia mais tão apetitoso. — Eu fiz um resumo das metonímias que eu lembrei no meu celular, dá uma lida aqui e vê se está certo, por favor?

— Ah, claro, passa para cá. — O terceiranista estendeu a mão para receber o celular, distraidamente empurrando sua bandeja para o lado enquanto lia rapidamente os escritos na tela do aparelho. — Não, está tudo certo; em resumo, é basicamente isso. Tem mais alguma pergunta que queira me fazer?

— Sim. Quem é William?

Davi não levantou a cabeça imediatamente, mantendo o olhar grudado na tela do celular de Matheus, sem enxergá-la de fato, enquanto tentava entender a terrível e inédita sensação de sem jeito que o acometia; aquilo simplesmente não fazia sentido! O fato de que ele e William haviam tido um relacionamento nunca fora algo que Davi havia tido problema em admitir, nem mesmo na época em que o namoro era “segredo” e, de repente, quase três anos depois, ali estava ele, com medo do que Matheus iria pensar!

A lógica seria eu contar para Matheus que eu também curto rapazes para o cara sentir que não está sozinho no mundo, mas... Por que eu tenho a sensação de que ele não vai gostar do que vai escutar? Por que eu sinto que isso vai nos afastar? E... Davi piscou longamente, sentindo a cabeça cheia demais; Matheus e aquele beijo, William e a maldita nostalgia, Marcelo e aquela droga de comitê, as provas... Como ele ainda não tinha desmaiado? Tinha de haver um limite para a quantidade de pensamentos que uma cabeça conseguia comportar ao mesmo tempo. Por que eu me importo tanto com isso? Por que, de repente, minhas opiniões gravitam em volta do que Matheus vai pensar?

Abrindo os olhos, ele percebeu que o segundanista o encarava, esperando, e reconhecendo para si mesmo que aquilo era uma coisa meio suicida, Davi o encarou de volta. Não estavam tão próximos quanto tinham ficado no momento daquele teatro, mas o olhar era o mesmo, a sensação era a mesma, aqueles lábios eram os mesmos que tinham sorrido antes de beijá-lo — e Davi queria tanto saber se aquilo tinha significado alguma maldita coisa, pois o único fato que o incomodava mais do que fingir que nada acontecera, era o de pensar que tinha sido usado como alguma espécie de teste, alguém de quem Matheus se aproveitara para se reafirmar. Será que Matheus também estava tendo sonhos e pesadelos como ele estava tendo? Será que o segundanista sequer pensava naquilo?

Não interessava de fato, não naquele momento; conforme os segundos se passavam, os pensamentos de Davi foram aos poucos se esvaziando e ele se sentiu muito leve, de uma forma que não experimentava há muito tempo.

Ele não tem olhos pretos, mas castanho-escuros. Muito escuros. Os mais escuros que eu já vi. Foi o primeiro pensamento que emergiu no vazio que havia se tornado a sua cabeça, o que definitivamente era uma ironia. E... Eu não quero que ele saiba. Não sei por que, não tenho exatamente um motivo, mas eu não quero que ele saiba. Lamento, Matheus, mas dessa vez...

— Ninguém — disse Davi enfim, desviando o olhar no que pareceram ser horas depois, mas que o visor do celular de Matheus confirmou ser apenas dois minutos. — William não é ninguém.

Ele nunca pensou que seria tão doloroso mentir para Matheus.


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Notas finais do capítulo

1- Bem... Aqui é que entra a parte triste. Até o atual momento, eu tinha um capítulo de vantagem em relação ao que estava sendo postado, mas com a postagem do 11, isso se finda. O 12 ainda não está pronto e eu não faço a menor ideia de quando vai ficar, ou seja, não tenho previsão de quando o próximo capítulo irá sair. Espero que seja breve, mas não tenho previsões do quão breve. :3
Nada de bloqueios, viu? Só estou avançando em um ritmo de lesma de ressaca
Mas ele sai.
Prometo.

2- Agradecer à Moni, né? Se eu não agradecer à Moni, isso daqui não é Xadrez. Então linda, muito obrigada, feliz aniversário de novo, publicamente desta vez, e tomara que você viva muito para continuar me ajudando a fazer essa fic ir para frente, ok?

Amo todos vocês!
Beijos, até o próximo!