Xadrez escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 1
1 - Colcha de Retalhos


Notas iniciais do capítulo

Era para ser o prólogo, mas ficou grande demais para eu poder chamá-lo assim, então... Já entra como o número 1. o/Este capítulo conta os acontecimentos anteriores à história. Enjoy it!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/503511/chapter/1

06 de janeiro de 2012, Colégio Vespasiano

O auditório estava cheio, todas as cadeiras ocupadas por jovens do sexo masculino, anormalmente silenciosos. Havia certa tensão no ar, aquela ansiedade que antecede um acontecimento glorioso — todos os alunos do Vespasiano, vestidos com conjuntos azul-marinho e gravatas cinza, respiravam muito silenciosamente, como se qualquer barulho fosse quebrar a magia.

Davi, sentado na última fileira, alisou o blazer que vestia com carinho. A maior parte dos alunos presentes naquele salão eram relativamente novos no Vespasiando, não tendo mais que quatro anos decorridos na escola, e alguns poucos tinham estudado todos os anos da trajetória escolar no internato, mas todos eles conheciam o significado daquele uniforme — todos haviam fantasiado com ele pelo menos uma vez, sonhando com o dia em que o usariam, porque aquelas vestes eram o símbolo de uma nova fase na vida dos alunos. Piscando nos corredores e no orgulho de cada um, as palavras ENSINO MÉDIO não davam trégua.

E estar no ensino médio na Vespasiano era tudo. Era ter liberdade para entrar no 4º casarão, proibido para alunos do fundamental, ganhar um novo dormitório, poder ficar acordado até as onze da noite e pegar os livros da Sessão 3 da biblioteca... Todo um mundo novo se abria, cheio de oportunidades. E tudo o que eles precisavam fazer para ter acesso àquilo era escutar o discurso chato de início de ano do diretor por duas horas. Duas míseras horas. Depois, seria tudo festa.

—Você está pronto? — perguntou-lhe Guilherme, melhor amigo de Davi desde o primeiro ano dos dois no internato, sentado ao seu lado. Os dois trocaram um sorriso nervoso enquanto o diretor subia no palco, régio e engomado, e se preparava para começar. —Eu mal posso acreditar.

—Cara... Eu nasci pronto.

—Alunos do Internato de Jovens Rapazes Vespasiano! — o nome sempre pareceria ridículo, mesmo depois de escutar o diretor proclamá-lo orgulhosamente por dez anos. Davi riu baixinho, e Guilherme o acompanhou. —É com orgulho que eu anuncio o ingresso de vocês no Ensino Médio! Como vocês sabem, é uma parte importante da sua trajetória acadêmica, onde vocês ganham mais liberdade no internato. Lembrem-se apenas de que com as liberdades vêm as responsabilidades...

E ele falou. Falou sobre a história do Vespasiano, um dos últimos internatos ativos no Brasil, construído no século XIX — e desde o primeiro dia, um colégio apenas para rapazes. Cinqüenta anos depois da inauguração foi criado um campus unicamente feminino, o Colégio Madalena, mas os alunos de ambos os campus nunca se misturaram. Explicou como funcionava o esquema de turnos: duas turmas pela manhã, duas turmas à tarde, educação física às cinco horas, três vezes por semana, com opções variadas de modalidades. E falou sobre as regras: nada de drogas, nada de pornografia, nada de passeios à noite, nada de se esgueirar para o Madalena para se encontrar com meninas...

Davi fechou os olhos escuros com prazer. Nada daquilo era novo para ele, mas era sempre bom ouvir novamente, principalmente as regras — ele sabia todas de cor, conseguia recitá-las no mesmo tempo e ordem que o diretor e tinha conseguido a excelente proeza de desobedecer a todas elas.

— Isso tudo provavelmente não é novidade para a maioria de vocês. — o diretor continuou, brandamente, o que chamou a atenção do garoto. —Mas no Ensino Médio, algumas coisas mudam. Além das coisas que todos aqui já sabem e esperam ansiosamente para colocar em prática: acesso ao casarão quatro e à sessão três da biblioteca, além de uma hora a mais acordados e remanejamento dos dormitórios, nós temos também o sistema de clubes, também conhecido como associações estudantis.

O diretor esquadrinhou o auditório calmamente.

—Não é inteligente colocar os alunos do fundamental para participar de associações por que eles têm energia demais e geralmente causam muitos problemas. — e Davi pode jurar que nesse momento, o diretor estava olhando para ele. — Mas nós esperamos maturidade o suficiente de vocês para que consigam arcar com mais responsabilidades além dos seus seis horários diários. As associações são diversas e é obrigatório que vocês participem de pelo menos uma. Se vocês sentirem que conseguem administrar horários de duas ou mais associações, estão livres para participarem de quantas quiserem. Mas os alunos que não participarem de nenhuma, chorarão quando receberem seus boletins. Então recomendo que pensem com cuidado.

—Assustador. — Guilherme assoviou, a boca crispada em uma expressão divertida.

Davi deu de ombros.

—Como sempre.

—Vocês receberão cartilhas com todas as associações que a Vespasiano possui. Saibam que, uma vez em uma associação, vocês só poderão sair com justificativas válidas, e eu não considero “esse clube não é a minha cara” como justificativa válida. Ou seja... Tenham parcimônia. — e essas duas últimas palavras ecoaram no salão como uma sentença de morte. Todos prenderem a respiração, até que o diretor finalmente sorriu, parecendo satisfeito com o resultado de sua fala. —Dito isto, sejam bem vindos ao Ensino Médio. Passem de ano com boas notas e não me deem mais problemas do que o normal. Estão dispensados.

Foi como se algo tivesse explodido no auditório de repente — de um silêncio agourento, o ambiente passou para um falatório excitado que subiu vários tons gradualmente, até se tornar uma gritaria generalizada.

—Estamos no Ensino Médio cara! No Ensino Médio! Ensino... Médio! — Guilherme gritou, um punho pra cima. —Eu mal posso esperar pelas excursões para o Madalena!

—Eu mal posso esperar para as aulas começarem, Gui. — Davi replicou, o diabo em seus olhos, sorrindo. —Eu preciso explodir uma bomba caseira no casarão quatro! Você me ajuda a preparar?

—Você não seria o Davi se não sugerisse isso. Vamos!

E juntos os dois saíram do auditório, a festa alta demais para qualquer um notar, porque era liberdade, mesmo que dentro de uma prisão gigante, e só faltavam três anos para terminar — e aquela perspectiva, mesmo que parecesse falsamente otimista até para ele, sempre conseguia colocar Davi para cima.

Três anos. Para se divertir.

>>

No dia seguinte, Davi acordou às sete da manhã, ainda cheirando a pólvora e se sentindo absolutamente ótimo. Seu companheiro de dormitório, um cara estranho com sobrancelhas que se uniam e enormes cabelos lisos chamado Tiago, saíra furtivamente do quarto à uma da manhã e ainda não havia retornado — e apenas por isso, Davi já o admirava profundamente. Andar à noite pelo Vespasiano sem ser pego era uma arte que ele ainda não tinha dominado.

O adolescente não perdeu muito tempo com a higiene matinal e logo que terminou, foi para o refeitório, que não era muito longe de seu novo quarto, algo pelo que ele se sentiu extremamente satisfeito. Cantarolou enquanto enchia sua bandeja com um item de cada opção disponível para o café da manhã e quase dançou em direção à mesa que Guilherme ocupava, fazendo malabarismos para equilibrar toda a comida em cima da chapa de metal.

—Guilherme. — ele cumprimentou, enquanto fazia uma manobra impossível e deslizava a bandeja intacta por cima da mesa. —Eu juro que vou ser equilibrista de circo, olha só o meu talento!

Guilherme o encarou com olhos pouco amigáveis.

—Do jeito que você come, talvez você devesse esquecer o circo e fazer cosplay de orca no parque aquático. Eu pagaria pra te ver batendo palminhas.

—São as focas que batem palmas.

—Dane-se quem bate as palmas. — ele lhe lançou um olhar analítico. —Mas tem razão. Você é baixinho demais pra ser uma orca, tem que ser uma foca. E eu vou ser seu empresário e vou ganhar milhões com você. Talvez eu chame você de “Davizinho, seu amiguinho foca”.

—Talvez você deva ir se ferrar.

—Talvez você deva parar de comer e escolher qual associação vai te escravizar. — replicou Guilherme, sorrindo, lhe passando um panfleto cheio de marcas de dobras. —Era o que eu estava fazendo antes de você chegar.

Davi mordeu uma barrinha de cereal e segurou-a entre os dentes enquanto pegava e abria o panfleto. Estava impresso em uma fonte sinuosa e rebuscada, que passava uma falsa impressão de que ele tinha sido escrito à mão, e não tinha nenhuma explicação — apenas a lista de todas as associações disponíveis no colégio.

IJRV – Associações

Grêmio Estudantil

Colegiado

Natação

Vôlei

Basquete

Handebol

Leitura

Jornalismo

Xadrez

Planejamento

Luta Livre

Canto

Dança

Artesanato

Equitação

Atletismo

Desenho/Pintura

Escrita

Tênis

—Não é nenhuma surpresa só ter esportes aqui, praticamente. — Davi resmungou, devolvendo o panfleto para Guilherme enquanto passava geléia em uma torrada. —Estou vendo que estou ferrado, já que o único esporte que eu gosto é natação, mas os caras da natação são verdadeiros malas e eu me recuso a me aproximar deles mais do que o necessário. Você já sabe o que vai fazer?

—Provavelmente, desenho. — Guilherme tinha talento para a coisa: em uma aula de artes, tinha conseguido fazer um autorretrato perfeito com um pincel e um potinho de tinta preta. —Penso a mesma coisa que você sobre os caras dos esportes, e esses clubes vão estar lotados rapidinho.

—Já é complicado aguentar esse monte de homens o tempo inteiro na minha cola... Aguentar esse monte de homens suados e dizendo pra mim o que eu tenho que fazer parece demais. Você vai se dar bem no desenho. — Davi mordeu uma maçã, distraído. — Será que eu daria certo no Colegiado? Ou no Grêmio? Você sabe, é para esses clubes que os alunos mais responsáveis vão.

Guilherme riu gostosamente até se dobrar para trás. Não mesmo.

—Davi, você alegrou o meu dia. Sério. — ele respirou fundo algumas vezes antes de se levantar, checando os horários que eles tinham recebido na noite anterior distraidamente. —Fiquei com o turno da manhã. Levando em conta como o Senhor Ensebado nos adora, aposto eu você ficou com o turno da tarde.

Davi checou seu próprio horário.

—Senhor Ensebado já está ficando previsível. — os dois riram. —Vou entrar à uma da tarde. Já você pode ir saindo com a sua bunda magra daqui: precisa aprender tudo para me passar as devidas colas na época de provas.

Guilherme lhe deu um soco amigável no braço, ao que Davi respondeu com um chute na canela, e os dois se despediram. Ele observou o amigo se unir à multidão de alunos que deixava o refeitório em direção às suas próprias aulas antes de se voltar para o único item da bandeja restante na bandeja.

Bebendo o copo de iogurte lentamente, Davi notou que o amigo tinha esquecido o panfleto com as associações em cima da mesa, e o pegou para ler novamente. Uma daquelas atividades preencheria seus dias pelos próximos três anos, e nenhuma delas parecia boa o suficiente — o que ele menos queria era escolher uma associação e descobrir no final que ela era um lugar horrível para se estar.

Jogou o panfleto de lado novamente e se levantou, sentindo-se satisfeito: nada de cursos por enquanto, nada de associações. Decidiu por voltar para o quarto e tentar conversar com o tal Tiago para descobrir como era possível sair
à uma da manhã sem ser pego e depois dormir.

Escolheria a tal associação depois.

>>

Senhor Davi Fernandez Montecruz

Redijo essa carta sentindo o mais absoluto desgosto. Seus modos despreocupados e gritante desprezo pelas regras não são novos para mim lidei com eles durante muitos anos , mas eu esperava que pelo menos desta vez você demonstrasse algum interesse. Sinceramente acreditei que a atividade de associações iria atraí-lo, mas parece que me enganei novamente: faz um mês que as aulas começaram e você ainda não escolheu a sua.

As atividades das associações vão começar daqui a cinco dias. E esses cinco dias são todo o tempo que você tem para escolher um clube e ingressar nele. As conseqüências de seu não-ingresso serão severas, mas o mais importante a respeito é que a sua atividade nas associações é responsável por trinta por cento da sua nota. Sem esses trinta por cento, você estará automaticamente reprovado.

Seja um garoto consciente e escolha uma associação. Todas elas terão a boa vontade de te receber.

Senhor Diretor, Cristiano Caldarias.

>>

12 de março de 2012

E ali ele estava. Não que houvesse tido muita escolha — o diretor tinha sido bastante enfático em sua pressão, mandando primeiro mensageiros para apressá-lo, os professores para aconselhá-lo gentilmente e por fim a carta mais simpática que ele já lera, comparável às cartas mensais que recebia de seu pai. Por mais que Davi gostasse de desobedecer ordens, ele não queria repetir o primeiro ano, então leu a lista novamente, com certo desespero, e marcou a primeira opção que não tinha lhe parecido absurda.

O que o tinha colocado na Associação de Xadrez.

A sede do Clube de Xadrez ficava no último andar do quarto casarão, o que contava muitos pontos positivos para o lugar— a construção era a mais alta que a escola possuía e a vista de seu último andar era gloriosa, com os campos de grama bem aparada nas imediações e a mata atlântica abundante mais ao longe. O professor responsável pela associação ainda não tinha chegado, e Davi descobriu que espionar as atividades do Clube de Equitação pela janela era algo bastante divertido — os tombos absurdos que eles levavam de seus belíssimos cavalos foram suficiente para deixar o dia do adolescente bem mais alegre.

—Vocês são meus alunos? Surpreendente.

A voz era de mulher, e isso fez Davi virar o pescoço com tanta velocidade que ele suspeitou de um torcicolo por um segundo. Mulheres não eram proibidas de entrar no corpo docente do Vespasiano, mas por uma questão de conveniência, elas sempre acabavam preferindo lecionar no Madalena, e por isso era muito raro encontrar mulheres na escola — mas ali estava uma, apoiada no espaço da porta aberta, a postura descontraída.

—Você é uma mulher. — um dos alunos mais próximos balbuciou, com a expressão de quem foi ao inferno e voltou. A mulher o observou por um segundo, crispando os lábios como se estivesse contendo um impulso incontrolável de riso.

—Uma observação inteligente, meu jovem. — ela entrou na sala e fechou a porta atrás de si. —Eu sou uma mulher. Meu nome é Marina, e eu sou, a partir desse ano, a coordenadora chefe da Associação de Xadrez da Vespasiano.

—Onde está o Jair?

Marina deu um suspiro desgostoso e encarou o terceiranista que fez a pergunta com certa severidade.

—O seu antigo coordenador, que atende pelo nome de Jair, está atualmente incapaz de dar aula. Não me pergunte mais do que isso, eu não sei. — as últimas palavras foram proferidas com um tom definitivo. —Enfim... Vocês são o Clube de Xadrez (odeio a palavra associação, é brega), e eu estou surpresa! Não esperava mais do que dez pessoas, mas parece que nós temos aproximadamente umas trinta aqui. Ótimo!

Ela juntou os cabelos crespos em um coque e olhou em volta, medindo cada ocupante da sala. Quando os olhos pousaram em Davi, ele se sentiu como se estivesse aquém da expectativa presente neles. Ela tinha íris de um castanho tão escuro que poderia ser considerado preto, duras, analíticas e exigentes.

—Muito bem. — ela continuou. —Quantos de vocês aqui conhecem e dominam as regras do xadrez? Não respondam, apenas levantem a mão para que eu possa contá-los. — aproximadamente quinze mãos se levantaram, e Marina as registrou com um aceno de cabeça. —Quantos aqui conhecem as regras superficialmente? — cinco mãos cortaram o ar. —E quantos não sabem absolutamente nada sobre as regras do xadrez?

Davi foi um dos primeiros a levantar a mão, preocupado que ela fosse xingá-lo — o que vocês estão fazendo em um clube de xadrez se nem sabem jogar? — mas Marina sorriu levemente enquanto contava as mãos levantadas, parecendo satisfeita ao fazer um sinal para que elas fossem abaixadas.

—Certo. Vocês que não sabem nada sobre o xadrez não precisam fazer isso, mas ao resto... Esqueçam tudo o que sabem sobre o xadrez: é fácil dominar as regras, qualquer jogo de xadrez comprado por aí vem com elas no verso. O que eu vou ensinar aqui esse ano é a jogar xadrez. Eu vou ensiná-los a amar a dinâmica do jogo, a entender a estratégia, a ver o tabuleiro como um campo de batalha e não apenas um amontoado de peças. Eu vou torná-los enxadristas, e não apenas jogadores de xadrez.

Os olhos dela brilhavam com um ímpeto tão competitivo que fez Davi querer socar alguém: Marina parecia o tipo de pessoa que desestabilizava seu oponente apenas olhando para ele, incitando-o à rivalidade.

—Mas professora... Nós só temos mais um ano aqui.

—Marina. Meu nome é Marina e é assim que vocês vão me chamar. E eu creio que um ano vai ser suficiente para que vocês aprendam. Eu confio em vocês o suficiente para isso. — ela sorriu, animada, e o ato iluminou todo o rosto. —Não vou perguntar a vocês seus nomes, pois não os decorarei. O tempo vai dizer se vocês vão ou não gostar de mim, e vamos lá, eu não poderia me importar menos... Vamos para o que interessa. Quem quer — e os olhos dela encararam cada um por um segundo, a competição queimando por trás deles —, jogar uma partida comigo?

Davi não se voluntariou. Mas observando Marina com mais atenção, sua atenção e suavidade quase maníaca com as peças do jogo, ele ficou sinceramente em dúvida. Talvez escolher a Associação de Xadrez fosse uma das maiores burradas que ele já fizera.

Ele esperava que não.

>>

Setembro de 2012

Era estranho que ele gostasse tanto dali, já que Davi não era uma pessoa particularmente chegada em leitura. Também odiava pintura, embora apreciasse tudo o que Guilherme fizesse — mais por consideração aos dez anos de amizade dos dois do que por qualquer outra coisa — e era indiferente à escultura e desenho. Não gostava de artesanato. E ainda assim passava a maior parte de seus finais de semana naquela feira, que se resumia em leitura, pintura, esculturas e artesanatos.

Ele gostava de mentir para si mesmo, inventando mil razões pelas quais ele ia para aquele lugar simples, até mesmo simplório, ao invés de ficar em sua própria casa rica e luxuosa, mas no fim, tudo sempre se resumia ao fato de que ali ele não se sentia tão sozinho. Era como se cada pessoa que passasse e sorrisse para ele, a mente focada nas promoções e pechinchas, se preocupasse com ele. Mesmo que por um segundo, ele se sentia querido. Era um sentimento bom.

E nos últimos finais de semana, ele ainda tinha conseguido um agradável adicional para alegrar suas tardes na feira, que consistia no tabuleiro de xadrez rústico com pesadas peças entalhadas em madeira nobre. Davi reconhecia que o conjunto era uma relíquia e o tratava com muito respeito, principalmente por que era um empréstimo do dono da banca de revistas — depois de ver o adolescente perambular sem rumo durante várias semanas seguidas, o jornaleiro acabou puxando conversa e descobrindo que ele gostava de jogar. Não havia muita graça em jogar contra si mesmo — o velho não sabia absolutamente nada de xadrez — mas Davi apreciou a intenção e aceitou o tabuleiro por uma tarde, o que se revelou uma atitude muito gentil.

Várias pessoas paravam ao vê-lo jogar, e algumas se sentavam com ele para uma partida. A maioria não sabia nem os movimentos básicos do xadrez, mas Davi descobriu que gostava de ensinar — havia algo de interessante em jogar contra alguém contando histórias sobre o jogo, explicando a origem e o funcionamento de cada movimento. As partidas disputadas na feira não se mostravam um grande desafio, ele sempre vencia todas, mas eram muito mais divertidas do que a maioria jogada no Clube de Xadrez, e depois de alguns finais de semana, tornou-se hábito para ele sentar-se para ensinar — Davi já reconhecia algumas pessoas que iam ao lugar unicamente para jogar contra ele.

Novamente, a sensação de se sentir querido. Talvez ele já soubesse por que gostava tanto dali.

— E então eu movimento meu bispo três casas na diagonal... — ele explicou para sua oponente da vez, uma garota que nem tinha completado seus dez anos. Ela bebia as lições com interesse. —E você responde. Assim mesmo. Você colocou sua torre quatro casas para frente. Só que se eu colocar minha rainha quatro casas para frente também... Olhe aqui. — Davi indicou o tabuleiro, sorrindo. —Cerquei seu rei.

A menina olhou as peças por vários minutos, analisando.

—É verdade! — ela admitiu, encantada. —E agora?

—E agora você perdeu. Xeque-mate. — ele apertou o nariz dela com carinho. Era a terceira vez que a garotinha aparecia, e ela estava ficando melhor. —Até semana que vem?

—Se a mamãe me trouxer, sim! Até mais, moço!

A garotinha saiu, acenando alegremente enquanto ia se encontrar com a mãe, sentada não muito distante dos dois. Davi as observou ir embora distraidamente, a mente voando longe, na multidão que passava. Ainda faltavam duas horas para ele voltar para casa, trocar de roupa e sair de novo — dessa vez para beber e acordar na cama de alguém que ele provavelmente não conhecia. Belo Horizonte tinha boas festas, era só saber procurar, e Guilherme parecia ter um radar para todas elas: a ressaca começou a ser a melhor amiga de Davi, junto com a feirinha e o xadrez.

—Dizem que você sabe jogar. Se parar de olhar para o nada e prestar atenção, talvez eu possa ter certeza.

Davi acordou de seu devaneio e olhou para frente. O dono da voz era um menino aparentemente mais novo que ele, dado seu rosto ainda levemente arredondado que contrastava com sua postura rígida e expressão controlada — um tipo desagradável, com exceção dos olhos. Havia uma competição quase doente queimando por trás deles, uma piscina de areia movediça que o chamava para um mergulho; Davi imediatamente soube que estava lidando com alguém que sabia jogar xadrez. Mesmo.

—Arrume o tabuleiro. — Davi convidou, o tom de trégua. —Vamos jogar então.

O estranho deu de ombros e se pôs a organizar as peças. Ele não perguntou se poderia começar ao virar as brancas em sua direção e fazer o primeiro movimento, e Davi decidiu que não se importava — de repente, ele estava queimando de curiosidade para saber como aquilo ia terminar.

O jogo durou meia hora, Davi contou depois no relógio — mas para ele, alternando o olhar entre as peças e os olhos simplesmente ensandecido de rivalidade de seu oponente, pareceu durar dias. Cada movimento era feito com cautela calculada, como se houvessem vidas reais em jogo, e sua mente começou a fritar com o cálculo dos próximos movimentos: eu mexo um bispo, e ele mexe uma torre. Sse ele mexer um cavalo, eu coloco meu peão duas casas para frente, mas se ele mexer a rainha eu desloco o meu cavalo para proteger meu rei e...

E ele se sentiu vivo. Sangue cantando nas orelhas e a adrenalina — pela primeira vez ele entendeu as palavras apaixonadas de Marina ditas meses antes. Aquilo era um jogo de xadrez, e de alguma forma, era diferente de todos os outros. Talvez por causa da aura de seriedade projetada por seu oponente... Ou talvez por causa da competição que ele tinha lido naqueles olhos, que o tinha incitado tão violentamente ao desejo pela vitória.

Os dedos de Davi tremiam quando ele pegou a pesada peça que representava sua rainha e a deslocou cinco casas para a diagonal, levantando a cabeça para encarar seu adversário.

—Xeque... — suspiro. — Mate.

O garoto que o enfrentava não disse nada, e o fogo de seus olhos só pareceu se tornar mais venenoso e amargo, em contraste violento com o sorriso simpático que seus lábios tentavam formar.

—Parabéns.

Davi o observou se levantar e sair, sem dizer mais nenhuma palavra, e quase deixou por isso mesmo; só que ele tinha jogado o que era provavelmente a partida mais interessante de sua vida e vencido, e ele queria algo em troca.

—Ei, você! — ele chamou, e o garoto parou, sem encará-lo. —Quero saber seu nome.

Lentamente, o jovem se virou. Quando finalmente Davi o encarou de novo, o rosto que antes estava feroz mostrava-se quase brando.

—Você ganhou, acho que realmente tem direito a pedir alguma coisa. — a voz estava morta. —Mas poderia ter pedido algo melhor. Meu nome é Matheus, e eu provavelmente nunca mais vou te ver na minha vida, então é inútil pra você saber. Passar bem.

E se embrenhou na multidão.

Nunca mais vou te ver na minha vida... Davi não podia dizer que ia sentir saudades.

>>

11 de março de 2013

—Docinhos! — Marina entrou na sala, empolgada, acompanhada por dez jovens com a animação de condenados indo para a execução. —A maior parte de vocês é segundanista agora, o que significa que, neste ano que se inicia, nós teremos outra turma de condenados para sofrer comigo! Deem boas vindas aos seus novos companheiros! E vocês, falem seus nomes, se apresentem!

Davi, que estava sentado no canto da sala estudando o modo de se aplicar um xeque pastor, não levantou os olhos do tabuleiro à sua frente: apenas mexeu um peão, completando o primeiro movimento da seqüência, e apurou os ouvidos para o falatório e para os nomes de seus novos colegas.

Caio... Felipe... Nicolas...

Ei, meu bispo se desloca quatro casas para a diagonal esquerda. Sim. Dá certo.

Lucca... Nataniel...

E minha rainha, duas casas para a diagonal direita. Acho que vai funcionar.

Júlio... Yuri...

Agora minha rainha vem quatro casas para frente e captura o peão do adversário...

Hugo... Gabriel...

Davi parou e analisou o tabuleiro, procurando alguma falha. Não encontrou nenhuma.

XEQUE PASTOR!

—Meu nome é Matheus.

Davi quis se levantar e começar a pular, tomado por uma onda de realização feroz, pouco se importando com a apresentação de seus novos colegas; mas um medo justificado do que Marina faria com ele caso se comportasse como um idiota o fez parar e observar o rosto de todos aqueles garotos, que seriam seus companheiros de clube próximos dois anos.

Nenhum rosto marcante. Todos eles eram bem comuns — mas depois de estudar dez anos no Vespasiano, onde apenas homens pisavam, todos pareciam os mesmos depois de um tempo. Ele varreu os rostos com desinteresse, registrando cada um por um segundo na mente, até chegar no último da fila e arquejar: ele conhecia aquele rosto. Lembrou-se de uma feirinha, de um jogo de xadrez feroz, e de uma despedida venenosa.

A expressão de Matheus denunciava que ele também tinha se lembrado do jogo e não parecia muito feliz com isso — alguém que comeu uvas azedas teria uma expressão melhor. Ou não. Davi começou a duvidar da força de sua própria comparação ao ver o desgosto de Matheus piorar ao encará-lo, ao ponto de deixar no rosto do jovem uma careta quase cômica... Mas Davi não riu. Não em voz alta. Apenas deu de ombros para o novato e se virou de novo para o seu tabuleiro, pensando que não se importava com Matheus ou com os sentimentos negativos que ele parecia nutrir em relação a si, mas que devia, pelo menos, investir em previsões um pouco melhores.

Meu nome é Matheus, e eu provavelmente nunca mais vou te ver na minha vida, então é inútil pra você saber. Passar bem.

Bem... Davi pensou, mordaz. Ledo engano, meu jovem.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

É o meu primeiro yaoi, espero que gostem! Não está programado para ser uma história muito longa, mas toda vez que eu programo, geralmente acaba saindo dos meus planos, então vou escrever a história e ver até onde ela me leva.Vou também agradecer à Monique por ser paciente e betar essa história para mim. Você me deixou mal acostumada, menina, agora eu vou querer que você bete tudo o que eu escrever! ♥A todos os leitores, nos encontramos no próximo capítulo.Até lá!