A captura do tordo escrita por Maga Clari, Katsudon


Capítulo 22
Real ou não-real?


Notas iniciais do capítulo

Nossa!
Depois que postei, vi que tinha um erro grotesco nesse capítulo.
Agora, depois de nós duas resolvermos este probleminha, podem desfrutar do último capítulo antes do Epílogo.
Feliz Páscoa ♥



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Panem amanhece com um raio de sol estranhamente morno.

Nem quente, nem frio. Apenas morno. Como se nada pudesse ser mais extraordinário do que os humanos sobreviventes. Os vitoriosos.

Depois do histórico dia em que minha pobre irmãzinha atirou no Presidente Snow, tudo pareceu finalmente alcançar um nível relativo de normalidade.

Quando Snow despencou a cabeça para o lado, as mãos de Prim não paravam de tremer. Por algum estranho motivo, o som do tiro me acordou. Pude ver a cena com os olhos confusos, mas, apesar disso, tive total consciência do que havia acontecido.

"Não foi ela", Peeta havia sussurrado para mim, apressando-se em me tranquilizar, "A arma disparou sem querer".

Mais tarde, Finnick me disse que estava tentando tirá-la das mãos de Prim, e aquilo acabou acontecendo. Que ironia, não? Justo a irmã do Tordo. A escolhida. A tributo não jogadora. A menina por quem me ofereci para morrer em seu lugar. Justo ela, a sua assassina.

Apesar de toda a confusão do meu estado de subconsciência, lembro-me de ter rido. Um riso descontrolado e nervoso. Todos subitamente olharam para mim, com olhos atordoados.

Gale tirou-me do chão e me carregou no colo, com uma arma em sua mão direita. Não havia outro som além de minha risada histérica.

Nossa saída foi estranhamente facilitada. Não havia guardas, armadilhas, nada. Parecia que todos estavam assustados demais, anestesiados demais, para fazer qualquer coisa.

O Presidente Snow estava morto.

Não havia vida em seus olhos.

Nem mesmo o cheiro nauseante em sua boca me atormentaria naquele momento em que celebravam o seu velório.

Depois de me deixarem descansar algumas horas, eu fizera questão de presenciar os votos para ele.

Cheguei a levantar o meu arco, apontando uma flecha para seu corpo inerte, exposto num pedestal.

“Deixem-me prestar minha homenagem”, gritei para todos.

E então, atirei uma flecha de fogo, bem acima de sua cabeça. Pudemos apreciar a inteira luz em volta dele.

Mas tudo isso parece distante demais agora, nesta manhã morna. Peeta está ao meu lado, apertando minha mão bem forte.

Estamos assistindo ao casamento de Finnick e Annie, reunidos em fileiras de convidados. E esta estranha harmonia e calma me perturbam. Como se não fosse certo, como se não fosse real.

Há muito tempo, não consigo mais distinguir as cenas em minha mente. Embora já tenha se passado algumas semanas, temo nunca mais voltar a ser a Katniss antes dos Jogos.

Peeta me diz que preciso começar a agradecer ao invés de reclamar de tudo. Mas é fácil demais dizer isso quando a mente dele está saudável. É duro ter esses conflitos de realidade o tempo inteiro. Como o mecanismo de um relógio. Tic. Tac. Real. Não-real. Real. Não-real.

Mas para começar a agradecer, penso no jogo que ele e os médicos do D13 desenvolveram para mim depois da morte de Snow. Cada um faz uma pergunta, e depois o outro responde dizendo se é real ou não-real. Na maior parte das vezes, eu erro. E é exatamente isso que me perturba.

Será que isso não vai mais passar?

É tudo culpa do Snow.

Eu vou eternamente odiá-lo por isso.

Agora, sou eu que aperto a mão de Peeta, muito fortemente.

— O que foi? — ele diz, encarando-me com seus olhos distantes.

— Um dia... — pergunto devagar, tentando me controlar e procurando as palavras certas — Um dia ainda poderei me casar? Você sabe... Ninguém aguentará meus surtos. Ninguém me amará o suficiente para isso.

Peeta não responde. Apenas baixa o olhar para seus pés, respirando fundo.

— Não é como se isso me atormentasse, afinal, posso me virar sozinha. Ou melhor, podia. Não sei mais, Peeta... Só estou assustada.

Peeta volta a encarar Finnick, que não para de pular no mesmo lugar, enquanto a sua noiva não chega. Não consigo dizer mais nada. É como se as palavras estivessem sufocando nós dois, tornando-nos uma espécie de avox psicológica.

Eu entendo Peeta. Ele é calmo assim justamente por engolir as palavras, quando sente que elas irão inundá-lo com seus sentimentos gigantescos. Juro que entendo. Mas, por algum motivo, fico envergonhada com o que eu havia acabado de dizer.

Então, começo a pensar em Finnick. É reconfortante vê-lo tão animado, depois de tantos meses afundado em depressão. É muito bom vê-lo tão feliz com alguma coisa.

E apesar de tudo, Finnick perdoou Annie. Mesmo depois de todos termos descoberto que ela ajudou Snow. Claro que houve um choque, à princípio. Mas depois, soubemos que ele a controlou mentalmente.

Snow se mostra a cada dia mais sujo.

Podre.

Ele fede até mesmo morto.

Procuro afastar o pensamento, para me concentrar apenas na felicidade dos noivos. E então, começo a devanear sobre meu próprio casamento. 

Olho para Gale, um pouco afastado de mim. Ele está com uma postura reta e firme, levando um copo de cerveja à boca. Sua outra mão está dentro dos bolsos. Ao seu lado, Haymitch bebe o resto de uma garrafa inteira de álcool.

Por um estranho motivo, enxergo aquilo como dois amigos afogando as mágoas na bebida. E talvez, apenas talvez, Gale estivesse tentando se afastar de mim para não ferir seu coração todos os dias. Mas não acho que ele aguentaria um dia de casado comigo. Sei que nós dois somos insuportáveis demais juntos.

De repente, sinto uma dor no peito. É como se somente agora eu houvesse percebido que algo entre mim e Gale havia se quebrado. Não somos mais duas crianças caçando para sobreviver. Não precisamos mais um do outro. 

Agora, vejo com clareza: Gale nunca foi o garoto da Costura que dividia sua caça comigo. Eu não havia notado sua arrogância, sua firmeza, sua falta de altruísmo, muito provavelmente porque eu era uma criança assustada, precisando de um amigo.

Continuo pensando nisso para evitar ter que falar com Peeta. E apesar dele não largar a minha mão, não quero falar com ele. Não agora.

E talvez eu esteja errada.

Talvez exista uma pessoa para todo mundo, mesmo que não terminem juntos. 

Talvez tenha alguém passivo o suficiente para suportar uma vida inteira ao lado de Gale. Alguém que ele possa dominar.

Talvez exista alguém por quem Haymitch beba todos os dias. Alguém que lhe deixa amargurado demais para ver qualquer felicidade na vida.

Talvez exista alguém até mesmo para Johanna. Alguém responsável pelo seu ódio ao mundo, sua irritabilidade.

E prosseguindo com o raciocínio, deve existir uma pessoa certa para mim e Peeta.

— Olha lá a noiva! Saltem a música!

Meus pensamentos são interrompidos quando me viro para assistir Annie cruzar o tapete cor-de-rosa em direção ao altar improvisado. A cerimônia está sendo feita no jardim de sua casa, no Distrito 4.

E de acordo com Finnick, o lugar onde os dois tiveram o primeiro encontro. Na praia.

O vestido azul de Annie balança com o vento, como se fosse feito de água do mar. Seu sorriso é largo e doce, como a própria Annie.

Finnick afasta uma lágrima dos olhos e sorri para sua quase esposa quando ela se aproxima.

— Estamos aqui — Boggs começa, também sorrindo. Ele ficara realmente animado em ter sido escolhido para unir o casal — para celebrar o casamento entre Finnick Odair e Annie Cresta. Quando Finnick me chamou, fiquei um pouco de tempo maquinando o que diria...

Finnick balança a cabeça, achando graça.

— Mas a resposta estava bem na minha frente. Por que não falar de nós? Meu adorável amigo, Finn, passou dias a fio tentando enrolar e desenrolar nós no Distrito 13. Mas o que ele que queria mesmo era ter sua amada ao seu lado. Era apenas uma pequena distração. Agora, no entanto, tudo que posso fazer é justamente enrolar dois marinheiros para uma aventura ainda melhor do que qualquer aventura de pirata...

De repente, Prim aparece segurando duas caixinhas azuis. Ela oferece as caixas para Boggs, que tira de lá duas cordinhas.

— Onde estão os padrinhos? — Boggs grita, procurando por nós.

Peeta solta a minha mão e caminhamos para o altar.

— Nosso noivo tem um pedido especial para a madrinha, Katniss.

Meus olhos se arregalam. No momento, não faço ideia do que Finnick está tramando, só respondo com a voz falhada:

— O que... O que quer, Finnick?

— Pode cantar uma música para mim? A música que aprendeu com o seu pai? Por favor, Kat.

— Mas...

— Por favor...

Encaro o rosto de Finnick. Seus olhos estão esperando em expectativa. Ele franze a testa, sem deixar de sorrir.

— Por favor, Kat — Annie repete o pedido do noivo.

— Hum... — coloco uma mecha de cabelo atrás da orelha, e respiro fundo — Tudo bem.

No começo, não entendo o seu pedido. Mas à medida que os versos saem dos meus lábios, a compreensão chega até a mim.

Are you, are you? Coming to the tree. When the strung up a man. They said who murdered three.

Strange things did happen here, no stranger would it seems… If we met at midnight in the hanging tree…

… Where a dead man called out. For his love to flee…

         … Where I told you to run. So we’d both be free…

                            … Use a necklace of hop…

Então eu entendo. O trocadilho. Hope e rope. O trocadilho que usamos durante a revolução. Começo a rir quando compreendo o motivo de Finnick me pedir para cantar esta música. Usar um colar de corda/esperança, bem ao meu lado.

         Finnick alarga o sorriso enquanto estende o cordão para colocar no pescoço de Annie. Ele pisca para mim e deixa que Annie coloque o cordão dela no pescoço dele.

         Minha voz falha aos poucos até terminar a música. Observo Peeta, ao meu lado, completamente imóvel. Com o olhar distante que havia se apropriado dele desde o dia que tudo parou.

         — Você, Finnick Odair, aceita Annie Cresta para toda a vida? Aceita nos momentos de calmaria, mas também nos de tempestade?

         Finnick assente para Boggs e fala bem alto.

         — Aceito.

         — E você, Annie Cresta, aceita Finnick Odair para toda a vida? Nos momentos de grande pesca, mas também nos de pouca fartura?

         — Aceito! Aceito, aceito, aceito!

         — Finnick, agora pode beijar a...

Mas antes que Boggs conclua sua fala, Finnick e Annie já estão nos braços um do outro, exibindo um beijo cinematográfico. Por alguns instantes, não consigo olhar. Peeta também não.

— Talvez haja alguém que o ame o suficiente, Katniss — a voz de Peeta sai aveludada, mesmo depois de muito tempo.

Franzo a testa, sem entender logo.

— Talvez — ele tenta novamente, dessa vez, encarando profundamente meus olhos —, exista alguém que te ame todos os dias. Que não suporte os surtos, mas deixe de enxerga-los.

— Do que você está falando?

— Quem devia se preocupar com isso era eu, Katniss.

Percebo que a voz dele está embargada, e ele desvia o olhar novamente para os noivos, antes de voltar a falar:

— Você sempre teve o meu amor, Katniss. Mas e quanto a mim?

Respiro fundo, lutando contra a confusão dos meus sentimentos. Antes que eu tenha consciência do que estou dizendo, as palavras fogem de mim:

— Eu amo você, Peeta.

Ele se vira totalmente para mim. A ruga em sua testa continua lá, embora seu olhar seja sincero. E enquanto ele me encara, vejo apenas o meu salvador. O garoto que jogou o pão para que eu não morresse de fome; o adolescente que se recusou a me matar; o jovem que me amou mesmo quando destrocei o seu coração.

Peeta dá um passo à frente. Suas mãos tremem, ele as fecha com o punho. Vejo quando ele engole a saliva, dirigindo-se a mim.

— Real. Ou não-real?

— Real.


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