Um Lanche Literário. escrita por Mayumi Sato


Capítulo 3
01º Banquete.


Notas iniciais do capítulo

As estórias curtas presentes aqui são:- A superfície da pele(USUKUS). - requisitado no tumblr. - Um trem na neve(PruAus). - desafio de: Freeattention.- (In)dependência(PruAus) - requisitado no tumblr.



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"Alfred passa hidratante em um Arthur com queimaduras de sol."

– Entrada: A superfície da pele.

Alfred Franklin Jones gostava de se ver como o dono da posição “um cara legal”. Oh, vocês sabem que título é esse. Todo grupo social tem aquela pessoa que é indicada aos outros, quando um favor é necessário. “Se você quiser resolver isso, fale com aquele garoto. Ele é um cara legal”.

Alfred, no caso, era o “cara legal” dos seus grupos, que prestava serviços a quem precisasse e distribuía largos sorrisos em todos os cantos que ia, sendo sempre lembrado quando alguém necessitava de ajuda. Às vezes, ele aprontava algumas peças, mas elas eram facilmente perdoadas como peripécias juvenis. Era difícil se irritar verdadeiramente com alguém que oferecia um sorriso inocente de “Ops” quando o descobriam. Em retorno, Alfred amava o seu reconhecimento. Ele se sentia um verdadeiro super-herói quando via quantos contavam com ele e recomendavam sua assistência a terceiros.

Mas esse defensor da justiça tinha um ponto fraco que fazia uma porção menos nobre sua aparecer.

Não era muito louvável, por exemplo, que ele estivesse rindo do rosto vermelho e queimado do seu rival de atletismo, porém esse foi o seu impulso imediato quando ele foi verificar o Kirkland no vestuário e se deparou com olhos arregalados, bochechas com grandes manchas vermelhas e uma boca aberta em horror.

Em sua defesa, era uma cena épica demais para ser recebida de outro modo.

– Nossa! - ele exclamou entre risos entretidos e satisfeitos. - Eu deixo você sozinho por algumas horas e você visita o deserto do Saara sem mim, Artie?

Pelo que se lembrava, essa era a primeira vez em que ele via o efeito do sol em Arthur Kirkland e, cara, o Kirkland devia ter algum ancestral vampiro porque o resultado foi horrendo. Ele estava com o rosto muito, muito vermelho mesmo. A cor rubra não aparecia em seu rosto como pinceladas bem distribuídas, e sim como se toda a cabeça dele tivesse virado um sinal de “Pare” com um centro bastante luminoso no nariz.

Ele estava sentado em um dos bancos do vestiário. A blusa branca e

sem mangas do uniforme estava colada em seu torso, por conta do suor. O short verde e revoltantemente curto da equipe era visível em suas pernas que se moviam inquietamente para frente e para trás. Cada parte exposta da sua pele tinha diferentes matizes de escarlate.

– Escute, seu idiota! - ele encarou Alfred com olhos que, apesar de verdes, transmitiam uma mensagem de “Pare” bem mais expressiva do que o seu rosto. - Eu estou muito cansado, irritado… e provavelmente com uma insolação! Eu não vou desperdiçar a pouca energia que me resta com um discurso sobre como não valeria à pena explicar para você sobre minha situação atual, considerando-se que você é um tonto imaturo e pouco confiável.

– Você não acabou de fazer isso? - Alfred não resistiu a perguntar, com um sorriso muito satisfeito.

Arthur piscou os olhos, confuso, e a gradativa realização do que ele havia acabado de fazer, foi bastante visível na maneira como seu lábio inferior começou a cair e suas sobrancelhas começaram titubear em diferentes alturas.

– Sim, mas eu…! - ele tentou se consertar - Bem, não é…! Esqueça!- ele acabou bufando, cruzando os braços sobre o peito, aborrecido.

Alfred apoiou-se em um armário para se sustentar, enquanto ria fartamente e não conseguia parar de apontar para a cara super-hilária do Artie.

Ele tinha previsto que o Kirkland tentaria se exceder nos treinos para compensar a sua perda na última corrida. Uma teoria atualmente confirmada, tendo em conta que apesar de todos os esforços do mesmo em transmitir uma despreocupação quanto ao seu treinamento, aquele rosto atacado covardemente pelo sol não podia de forma alguma pertencer a alguém que ficou “apenas alguns minutos a mais” no campo de corrida.

O engraçado era que antes de entrar na faculdade e conhecer o Kirkland, Alfred jamais pensou que ele teria tanto entusiasmo quanto ao atletismo. Digo, não era exatamente um esporte que gerava os urros de multidões e atraía todas as garotas. Ciente disso, o propósito original dele ao entrar na equipe de atletismo da sua faculdade, desde o princípio, não tinha a ambição e competitividade que seriam esperados em um esportista.

Ele queria correr porque ele gostava da sensação de quase se soltar do chão, proporcionada pelas suas pernas. Ele gostava de sentir o vento batendo em seu rosto e sentir que estava prestes voar. Era um esporte subestimado, o atletismo, e de certo modo, aquilo era algo bom. A sua equipe era bem mais tranquila e menos preocupada com a sua imagem pública. Eles tinham noites de pizza e filmes para comemorar os jogos e a atitude mais ousada deles em um acampamento foi passar trotes pelo telefone para o treinador. Em resumo, nada de álcool e drogas, embora rock and roll fosse muito bem vindo para alguns deles.

Eles podiam continuar sendo garotos bobos e livres.

Ninguém naquela equipe pretendia entrar nas olimpíadas, então eles não tinham que ser tão sérios em relação aos seus treinos. O senhor Jones pretendia ser um arqueólogo, não um atleta. A única situação da vida prática em que ele usaria o que aprendeu no campo seria, sei lá, em um desabamento de uma construção milenar que ele estivesse explorando ou no caso de uma das maldições da múmia se mostrasse verdadeira. Nesses contextos, sim, ele correria em disparada e poderia atingir tempos recordes. O seu interesse em fazer o mesmo durante uma competição era zero.

Até ele encontrar o Kirkland.

Como na maioria das comédias românticas, o primeiro encontro deles foi o culpado pela relação complicada que os dois possuíam.

Tudo começou quando entrou um novo integrante na equipe, o qual foi apresentado pelo Gilbert, após um dos treinos, com o entusiasmo de um artista mostrando sua obra prima.

Arthur Kirkland era um veterano e a presença dele ali era bastante curiosa porque as pessoas geralmente entravam em equipes de esportes nos seus primeiros anos de faculdade. Segundo a explicação do próprio Arthur, ele havia feito atletismo quando era mais novo e ganhado uma ou outra medalha, contudo teve que parar devido a problemas familiares e recentemente havia sido convencido a dar uma nova chance ao esporte.

Bom, por mais que o recém-chegado tivesse narrado o que lhe acontecera com uma voz de profunda monotonia e com um ar vagamente impaciente que não inspirava nenhuma pena ou consideração especial, Alfred achou a sua estória um pouco triste e simpatizou-se com ele. Afinal, era um saco quando pessoas com potencial perdiam as suas chances de explorá-lo. Era pertubador ter o conhecimento de que tantos talentos eram desperdiçados pelo funcionamento problemático do mundo. O Kirkland era um desses e ele quase chegou a ser um daqueles velhos com um talento secreto que se lamentam por não terem conseguido seguir os seus sonhos! Ele precisava de uma boa acolhida e de incentivo máximo para conseguir resgatar o fôlego que tinha em anos anteriores, concluiu Alfred, e como ele era um “cara legal”, assumiu como tarefa sua a incumbência de fazer o Kirkland se sentir bem-vindo ao grupo.

Para tanto, o seu movimento foi passar o braço em torno dos ombros dele, rir calorosamente e anunciar que o Kirkland deveria sair com eles para comemorar a sua entrada na melhor equipe de atletismo do mundo. De imediato, Arthur recusou educadamente o seu pedido. Foi chato, mas Alfred não desistiu. Ele apertou mais o Kirkland em seu braço e acrescentou o argumento de que “Vamos! Será legal! Você faz ideia de quantas garotas o seu sotaque irá atrair?”.

E foi nesse ponto que Arthur Kirkland disse que não era como se isso fizesse qualquer diferença, tendo em conta que ele era gay.

Alfred nunca conseguiu dar um pulo tão grande para trás quanto o que ele deu no segundo em que a palavra “gay” saiu da boca do Kirkland. Ele nem se lembrava de como conseguiu se desvencilhar dele e se afastar em tão pouco tempo. Foi rápido demais.

Ele não se orgulhava de ter agido assim.

Que tipo de babaca ele seria, caso aprovasse o que o seu corpo tinha acabado de fazer? Honestamente, foi um reflexo! Ele não pensou antes de agir!

Ele não era homofóbico. Ele não se via como homofóbico. As pessoas podiam ficar com quem quisessem e tal. Ele tinha pais liberais que apoiavam o casamento gay e a saída das tropas americanas do Iraque e a visão dele era bastante similar a essa. O problema é que, apesar de toda a sua filosofia de igualdade, ele nunca tinha encontrado uma pessoa que fosse assumidamente homossexual. Tudo era muito teórico e hipotético. Havia boatos sobre uns ou outros, claro, mas ouvir uma pessoa assumindo diretamente essa orientação sexual… Ouvir um cara assumindo que gosta de homens, enquanto os seus braços estavam em torno dele, foi um pouco… Bem, foi como a sensação de quando nós estamos prestes a beber o conteúdo de um copo, achando que o conteúdo possui um determinado sabor, sendo que, na verdade, ele tem um conteúdo diferente do que pensamos. Nós levamos um susto. Não porque o segundo sabor seja ruim, mas por não estarmos preparados para ele quando o colocamos na boca.

Em resumo, ele não fez aquilo porque quis e quando retomou o domínio sobre o seu corpo e piscou os olhos, perplexo consigo mesmo, o estrago estava feito. Depois de uma cena teatral e vergonhosa como aquela, como diabos ele poderia tornar a situação menos desconfortável? Como ele poderia se explicar?

Os olhos de todos os membros da equipe estavam sobre ele, cobrando uma resposta, e eles estavam de tal modo confusos que nem conseguiam ser críticos. Assim como os do Kirkland.

– Ah, você é…? - “Argh! Que pergunta idiota! Ele acabou de dizer que era gay! Toda a cara dele está dizendo um ‘eu não acredito que você fará essa pergunta óbvia’! Mude as suas falas, Jones! Mude!”. - Bom, cara, nada contra! - ele sorriu amistosamente, embora sentisse o nervosismo bagunçar um pouco a sua expressão. Ele estava indo bem. Ele só precisava deixar claro que não tinha problemas com as escolhas amorosas do Kirkland. Que ele não se incomodava com quem o Kirkland ficava ou deixava de ficar. Como ele poderia colocar essa frase…? - Desde que você não fique interessado por mim, tudo bem!

Quando terminou de falar, ele sentiu que a resposta foi errada. Ela não soou beeem como ele havia pensado. Assim que ele terminou de dizê-las, ele teve a sensação de que uma luz vermelha acompanhada por um barulho longo e desagradável foi acionada nas câmaras sociais da sua mente.

Confirmando esse alerta, o senhor Kirkland avançou um passo para a frente dele, franziu suas sobrancelhas e se pronunciou de maneira muito cáustica, com o queixo erguido e uma mão arrogantemente colocada na cintura:

– Oh, então você acha que o fato de que eu sou homossexual faz com que eu esteja interessado em qualquer espécime masculino na minha frente?

As sobrancelhas de Alfred saltaram para cima.

– Não, não foi isso que…!

– Para a sua informação, seu estúpido, eu tenho um bom gosto! - o Kirkland gritou com os ombros erguidos e punhos fechados, surpreendendo os membros da equipe com a intensidade da sua explosão e com a evaporação completa da sua postura cortês e contida anterior… Aquela era a mesma pessoa que havia acabado de se descrever para eles, como um rapaz “tranquilo de hábitos moderados que gostava de ler romances, enquanto tomava uma boa xícara de chá”? - Eu não estou interessado em indivíduos cuja roupa parece ter sido lavada no óleo de preparo de batatas do McDonalds!

Ok! Aquele comentário tinha sido desnecessariamente ofensivo! Os outros membros da equipe podiam estar ocupados se chocando com o comportamento do Kirkland em vez de censurá-lo, mas Alfred não deixaria aquele insulto ficar ao vento!

– Ei! Isso foi golpe baixo!

Assim, eles começaram uma discussão fervorosa, a qual de algum modo saiu completamente de seu âmbito anterior e foi para todas as direções possíveis. “Duh, é claro que a pesquisa é muito mais importante para a universidade do que o tempo que os professores passam na sala de aula, Arthur! O que diabos as pessoas do estudariam se não houvessem pesquisas?”. “Não! O passado do Snape não justifica o que ele fez, Jones!”. “Você está falando sério?! Cachorros são dez milhões de vezes melhores do que os gatos!”.

Por fim, eles decidiram resolver suas disparidades em uma corrida. “Como cavalheiros” - Arthur acrescentou, provavelmente tentando resgatar um pouco da sua imagem de intelectual europeu, depois da chuva torrencial de palavrões obscuros disparados por ele, nos últimos minutos. U-hum, “cavalheiros”. Claaaro.

Por sorte, os dois eram corredores de longa distância, o que tornava as suas condições relativamente justas. Alfred tinha a vantagem de estar praticando corrida ativamente, quando o Kirkland provavelmente não fazia isso há muito tempo, porém esse detalhe era um tanto compensado com o fato de que o treino do Alfred não era tão intenso quanto o do Kirkland havia sido em seus tempos dourados. Ele nunca ganhou uma medalha.

Eles acertaram as condições, fizeram os alongamentos necessários e se posicionaram em suas marcas. Alfred tomou fôlego e seu último pensamento aleatório, antes da sua mente precisar se focar inteiramente na pista, foi “Um duelo? Sério? Eu estou me sentindo como o John Travolta no final de ‘Nos tempos da brilhantina’”.

Após a largada, ele não teve condição de pensar em qualquer coisa, excetuando um ressoante “Que diabos?!”, porque, droga, aquele Kirkland conseguia correr.

Pelo que entendera, o Kirkland tinha parado de correr há séculos, e mesmo assim, parecia que as pernas dele continuaram a correr sem ele, pois aquela não era a velocidade de um despreparado.

Arthur estava sempre alguns passos à frente. Se Alfred aumentava um pouco o ritmo, ele conseguia aumentar o seu em iguais proporções. Tornou-se perceptível que Alfred F. Jones não conseguiria acompanhá-lo a menos que pegasse um impulso-extra, algo que ele não podia fazer tão cedo. Todo corredor de longa distância experiente sabe que é necessário acumular energia para o final. Um procedimento que o Kirkland não podia estar realizando, considerando a sua velocidade.

Quase ao final da corrida, houve somente um instante em que a velocidade dele foi reduzida e Alfred pensou “Ah! Ele se desgastou demais! É a minha chance!”. No entanto, esse momento foi efêmero, pois ele mal havia ultrapassado Arthur, quando um vento passou ao seu lado e quando ele se deu conta do que havia acontecido, Arthur já havia terminado o circuito.

Alfred F. Jones, apesar do seu título de “cara legal”, era acima de tudo um cara competitivo. Ele havia acabado de ser derrotado por alguém que havia passado ANOS sem treinar. As coisas não podiam acabar assim!

Especialmente porque o Kirkland estava tão, tão esnobe por ter vencido! Ele estava com os braços cruzados em desdém e um sorriso de deboche escancarado e insuportavelmente convencido.

– Oh, você foi enganado por um truque simples como esse? Você acha mesmo que eu não sei que devo guardar energia para os instantes finais da corrida? Eu não planejava enganá-lo! Não tenho culpa se a minha velocidade moderada é maior do que a sua. - sério, se o cinismo na voz dele pudesse ser engarrafado, ele poderia encher uma piscina olímpica. - Não chore agora, garoto. Você ainda tem muito o que aprender.

Aquilo não foi nada legal!

Justificadamente emburrado, Alfred desafiou Arthur a mais um duelo, quando eles tivessem a competição entre faculdades no final do mês.

O seu “Quando houver a corrida entre as faculdades, você vai ver, seu grande chato! Eu terei a melhor marcação e irei esfregá-la na sua cara! E eu não estou chorando!” contava totalmente como um desafio.

De fato, mais centrado e definitivamente mais motivado, Alfred conseguiu vencer a corrida seguinte. Nesse turno, foi o Kirkland que propôs uma revanche, alegando que “Não é como se eu me importasse com o que você pensa ou não de mim, mas eu acho importante me desafiar para evoluir mais como um atleta.”. Pois é. Essa justificativa foi descaradamente desmentida quando eles organizaram a sua noite da pizza e alguém teve a brilhante ideia de trazer uma garrafa de vinho, resultando em uma visão bizarra de um Kirkland chorando e berrando com a cabeça deitada na mesa de centro, segurando uma lata de coca-cola como se ela fosse uma daquelas taças usadas em banquetes medievais “O melhor tempo tinha que ser meu! Eu nunca vou aceitar perder para um imbecil como você! Só porque você é ridicularmente atraente, fica pensando que todos querem você! Seu idiota, idiota, idiota…!”.

Por um acordo mútuo e silencioso, eles não comentaram sobre aquela noite.

Curiosamente, algo mudou a partir da terceira competição. Eles adquiriram uma rivalidade saudável. As duas primeiras corridas foram resultado de um mal-entendido entre eles e tinham doses moderadas de rancor, mas as que se seguiram deveram-se muito mais a uma vontade de mostrarem sua capacidade um para o outro. Eles já se conheciam melhor.

A maior ironia de todos esses eventos é que eles acabaram se tornando os membros mais próximos do time. Eles conversavam com frequência, implicavam-se mutuamente de maneira bastante espontânea e não tinham escrúpulos em pedirem favores um ao outro. Eles brigavam demais para se preocuparem com cortesias e formalidades.

Como ambos tinham suas discussões e conflitos amistosos constantes e falavam sobre uma multiplicidade de assuntos, era fácil para Alfred distrair-se com as várias facetas do seu relacionamento e esquecer a causa original da sua primeira competição…

Todavia, existiam momentos em que a lembrança dela o atingia com a força de um tornado.

Naquela tarde - aquela em que Alfred ficou preocupado com a demora do Kirkland para responder uma mensagem que ele havia enviado para o seu celular, voltou ao vestiário e o encontrou completamente queimado - por exemplo, ela chegou no pior instante e de maneira a provocar maior dano.

Mas vamos ao começo.

Arthur Kirkland estava super-hiper-queimado. Esse fato era duplamente cômico. A aparência dele era o primeiro ponto, obviamente. O outro lado cômico e mais vergonhoso era aquela revelação indisfarçável de que o Arthur não era uma Atalanta moderna ou alguém conduzido pelos deuses olímpicos às suas vitórias. Ah, o doce prazer da justiça! O Arthur sempre foi, alegadamente, o senhor “talento-natural”. Aquele esnobe. Os tempos dele estavam solidamente consolidados nos três primeiros lugares, mas ele costumava reagir com grande descaso a essa conquista, como se ela fosse tão comum e esperada quanto a passagem das estações. Ele sempre costumava dizer que não treinava mais do que os outros membros da equipe - com exceção a alguns minutos extras que ele levava para terminar suas pendências, no final do treino - e nunca aparecia na academia, quando eles estavam fazendo musculação, mas de algum modo, ele acabava vencendo uma grande parte das corridas.

Bom, é válido constar que aquela estória nunca convenceu Alfred F. Jones. Ele não sabia se existiam mesmo esses lances de “talento natural”, porém havia uma coisa da qual ele estava completamente certo e que contrariava as alegações do Arthur: ninguém dentro daquele time conseguiria vencê-lo sem treinar exaustivamente. Ninguém.

Agora, a prova de que o Artie treinava por um longo tempo-extra, depois que os membros da equipe saíam, estava exposta em um tom bem chamativo.

– E-Eu não estive treinando por tanto tempo! - ele tentou argumentar - Você acha que eu me importo a esse ponto com o que você pensa de mim ou com as nossas competições? Eu fiquei apenas alguns minutos a mais. Eu não sei o que aconteceu dessa vez!

Cara, o Artie mentia mal.

– Arthur, a menos que um buraco na camada de ozônio tenha se formado no exato local em que você estava correndo, não tem como a sua pele ficar tão queimada com “alguns minutos a mais”! - Alfred comentou risonho. Ele estava bem-humorado, chegando a sentir uma temporária afeição amistosa pelo Kirkland.

Arthur deu um bufar orgulhoso e ele estava prestes a revidar com força, quando o movimento dos seus ombros subindo provocou um contrair de dor em suas feições.

A diversão que ocupava o rosto de Alfred foi substituída por preocupação em menos de cinco segundos.

– O que foi?

– Os meus ombros… - o Kirkland grunhiu, pondo a mão em um deles, como um soldado ferido em combate. - Eles estão queimados também. Pelo visto, o tecido não foi suficiente para protegê-los. Droga.

– Todo esse estrago em tão pouco tempo! - Alfred sorriu cinicamente.

– Cale a boca, Jones! Você é um…!

Qual seria a escolha vocabular pouco graciosa de Arthur é um mistério que Alfred nunca soube, pois aquela frase terminou em um gemido longo e sôfrego.

Er… Certo, o Arthur estava com dor e aquele tipo de som era justificável, mas era impressão de Alfred ou aquilo havia sido um pouco desconfortável? Caramba, o Artie não precisava fazer um som assim, por conta de uma queimadura.

– Você está com tanta dor assim? - ele conferiu, franzindo as sobrancelhas com uma mescla de apreensão e puro estranhamento porque, pobre Artie, mas havia mesmo a necessidade daquele som? Atrizes de pornô não gemiam assim!

Como a dor o distraiu, Arthur Kirkland não notou quão consciente e alerta dos seus barulhos incomodados Alfred estava, porém notou a preocupação dele, recompensando-a com uma réplica educada(dentro de certos limites) e sincera:

– Não é nada demais. - ele suspirou, abaixando os seus olhos para uma embalagem de creme ao seu lado, o qual estava encostado na sua mochila sobre o banco. - Eu passarei um hidratante e ficarei bem. Eu já teria terminado se não fosse uma certa interrupção barulhenta…

Pois bem. Em vez de deixá-lo emburrado com o comportamento mal-humorado de seu rival, aquela reclamação acendeu algo dentro de Alfred e uma ideia saiu da sua boca, antes que ele pudesse analisá-la melhor. Ele se esqueceu inteiramente da tensão de poucos segundos atrás.

– Ei! Eu posso passá-lo para você!

Naquela hora, Alfred podia jurar que essa proposta pareceu muito natural.

Quando alguém precisava de ajuda, Alfred era aquele a quem todos recorriam. Como o Kirkland estava com problemas, quem melhor do que ele para ajudá-lo com uma tarefa simples? Essa seria a sua próxima missão! Aquela ideia fazia todo sentido!

Sem o mesmo espírito esportivo, Arthur começou a encará-lo com os olhos apertados, como se não conseguisse enxergá-lo direito.

– Uh?

– Deve ser difícil passar hidratante nos próprios ombros, então eu farei isso por você! - ele explicou radiante, com as mãos nos quadris e o rosto erguido em determinação.

A despeito do quanto ele deveria estar parecendo um grande herói a serviço dos pobres, oprimidos e vítimas de queimaduras de primeiro grau, a reação do Arthur estava infinitamente mais confusa do que maravilhada.

– Por que você faria algo assim? - ele indagou com as feições desgastadas pelo excesso de cansaço emocional e uma desconfiança guardada em seu tom.

Diferentemente do senhor “hesitação-e-cautela”, a resposta de Alfred foi automática, tendo a sonoridade segura e clara de uma afirmativa muito óbvia.

– Porque eu sou um cara legal, é claro! - ele sorriu simplesmente.

Arthur o encarou por um momento, provavelmente visualizando mentalmente uma tabela com os benefícios e possíveis perdas envolvidos naquele procedimento. Ah, essa deveria ser a aparência de um analista de seguros trabalhando.

Foi uma feliz surpresa quando Arthur, apesar de ter aparentado gradativamente mais sombrio em sua cadeia de pensamentos, mostrou parte de suas costas ao Jones, com um som resignado.

– Bem, vá em frente. - ele cedeu, revirando os olhos. - O que eu tenho a perder?

Não era a resposta mais animada do mundo, no entanto se ele podia se conformar em aceitar um favor do Alfred, este poderia se conformar com uma reação que não alcançava dez graus celsius. Em fatos, ele se conformou tanto que alguém poderia pensar que o verbo “conformar” não o descreveria bem, tendo em conta que a determinação dele era ardente, alegre e demasiadamente exposta.

– Ok! Pode contar comigo! - ele esfregou as mãos, preparando-as para o serviço. - Eu nunca fiz isso em alguém, mas já vi muitos filmes com essa cena!

Os filmes eram comédias românticas. Detalhes, detalhes.

– Que tipo de filme você anda assistindo? - Arthur indagou. Ele estava completamente virado de costas para Alfred, contudo o seu tom exasperado dava uma boa ideia do tipo de cara que ele estava fazendo. Não era uma cara muito simpática.

Sendo assim, por mais de uma razão, Alfred não quis citar o tipo de filme que ele estava mencionando. Seria embaraçoso e problemático de várias formas.

– Você sabe, filmes! - ele exclamou, olhando para o teto e desafinando em algumas sílabas. - Vários filmes.

– Esqueça. Eu não quero saber. - Arthur pensou melhor. - Comece logo o seu trabalho, por favor.

Ignorando a impaciência diluída naquelas palavras e especialmente carregada naquele “por favor”, Alfred concordou vividamente que era hora de começar o trabalho.

É fundamental constar que os minutos antecedentes ao contato entre os dedos de Alfred e a pele de Arthur foram como quaisquer outros minutos de seu convívio.

Nem a retirada da parte superior do uniforme do Arthur teve um efeito digno de nota. Ele já havia visto o Kirkland sem blusa diversas vezes, então não era uma visão nova ou impressionante. Como efeito adicional, havia somente uma comicidade e um apelo de dó nas manchas vermelhas recentes que cobriam o seu corpo.

No entanto, assim que ele encostou nos ombros de Arthur, sentindo a tensão dos músculos, o calor, a umidade e a textura da sua pele, ele realizou o que exatamente ele estava fazendo.

A lei de Murphy não tinha falhas. De todos os minutos que ele teve para chegar àquela fundamental realização, ela o atingiu no exato instante em que seu estrago era maior e irreversível.

Ele estava passando hidratante em outro cara. Um cara que - agora o Jones estava se recordando com força total - era gay.

…Ops.

"O que diabos eu estou fazendo?!"

Aquilo era estranho, não era? Digo, que cara hétero passa hidratante nos ombros de outro cara? Homens tinham dificuldade de se sentir à vontade para segurar a mão um do outro e cá estava ele. Passando hidratante na pele de um cara que se sentia fisicamente e emocionalmente atraído por outros caras. Sério, que diabos.

Ele quis retroceder, mas era tarde demais. Ele havia se oferecido a ajudar o Kirkland - no que ele estava pensando?! - e tinha que ir até o fim. Alfred Franklin Jones era alguém de palavra. Sem contar que, bem, aquele era o Arthur. Por que ele deveria sentir qualquer desconforto em relação ao Arthur? Se havia alguém que sabia que Alfred não estava fazendo aquele gesto com segundas intenções era ele. Certo?

Pensando assim, ele começou a passar os dedos pela junção do pescoço de Arthur e a deslizá-los pela extensão de sua pele com extremo cuidado.

Um silêncio amplo e profundo acomodou-se no vestiário, permitindo que os pequenos sons fossem noticiados. A respiração funda do Arthur, os pássaros cantando na janela ao alto que trazia os últimos raios dourados da tarde, o pulsar forte do coração de Alfred.

A pele do Arthur estava quente, molhada e macia e todas as informações capturadas pelo tato de Alfred estavam agitando os seus outros sentidos. Ele começou a perceber os resquícios da colônia do Arthur, camuflado pelo cheiro de suor acumulado naquele recinto, e a presença de sardas claras que nunca foram notadas pelos seus olhos.

Aquilo estava sendo… terrivelmente estranho.

Mas ele não deveria estar achando a situação estranha, quando aquele que era atraído por homens não estava esboçando reação nenhuma com aquela experiência. Tipo, não deveria ser o Arthur que deveria ficar mais desconfortável entre eles?

Se o Arthur não estava reagindo, por uma questão de honra, Alfred não reagiria também. Ele continuaria a passar aquele hidratante, como se nada de relevante estivesse acontecendo. Não era assim que funcionava?

Lá, lá, lá. “Eu estou passando hidratante em um colega de time, e daí? Colegas precisam se ajudar. Nós estamos no meio do século vinte e um! Eu não preciso me explicar! Eu não preciso pensar nisso! Eu não estou pensando nisso! Eu estou pensando em… documentários sobre a vida animal! Não, não! Em teorias conspiratórias sobre a chegada do homem à lua! Não! Em sarcófagos! Isso, isso! Em sarcófagos! Há, há, há! Eu estou totalmente distraído e relaxado!”. Lá, lá, lá.

Quando ele começou a distrair sua mente, pensando concentradamente no que ele havia lido sobre um sarcófago que havia sido descoberto há pouco tempo, outros inimigos apareceram.

Os movimentos involuntários.

Vez por outra, os dedos aplicavam uma pressão adicional nos músculos de Arthur, testando sua espessura e - Alfred negava e admitia, negava e admitia - a sensibilidade desses pontos. O seu colega de equipe possuía um tipo físico diferente do seu. Ele era mais franzino e os seus músculos dos braços não eram tão desenvolvidos como os da perna. Com Arthur despido na porção superior, era possível observar a saliência discreta desses músculos e a linha elegante da sua coluna. Tocá-los despertou uma corrente de curiosidade experimental em Alfred. Ele quis testar as suas ondulações e tensões, o que foi relativamente fácil, espalhando hidrante por eles.

Nesse estado de distração beirando ao transe, ele teve a sua atenção chamada por uma gotícula de suor, um ponto brilhante em contraste com o vermelho, deslizando na nuca do Kirkland e aproximou-se para vê-la melhor. Ele foi se aproximando e se aproximando… E tarde demais, realizou que a sensação quente percebida por parte dos seus lábios era a temperatura do pescoço de Arthur.

Essa não.

Ele havia inclinado excessivamente a cabeça e a sua boca estava praticamente encostada na pele intensamente rubra do Arthur.

Como aquilo havia acontecido? Como o Arthur permitiu uma coisa dessas?! Ele era o mais racional dos dois - bom, tirando a crença dele em duendes e fadas! Por que ele estava parado como se nada tivesse acontecido?!

Tirando certa tensão muscular, não houve outra reação da parte de Arthur Kirkland quanto ao fato de Alfred F. Jones havia acidentalmente colocado a boca na maldita parte de trás do seu pescoço. Chegava a ser ofensivo. “Bom, Arthur então você realmente não está nem aí para o que eu faça com você, não é? Eu não sei! Talvez hajam caras botando a boca no seu pescoço o tempo todo e você esteja acostumado com isso! Não é da minha conta, sabe, mas é estranho que você não ligue para mim, a ponto de ignorar completamente um momento estranho como esse, quando você sabe que eu não sou como os outros caras que devem colocar a boca no seu pescoço! Você vai mesmo ficar parado aí, como se nada houvesse acontecido?”. Irritado com a ideia de não saber o que estava se passando na mente do Arthur, Alfred pôs uma mão no seu rosto e o forçou a voltar-se para ele, uma medida que piorou drasticamente sua situação.

Ele poderia ter lidado com uma reação furiosa ou debochada do Arthur, mas a resposta dele foi muito, muito pior. Arthur Kirkland, o seu rival de corrida a longa de distância, estava constrangido.

No lugar de um rubor em pinceladas, havia agora um forte escarlate espalhado por toda a extensão da sua face. Ele tinha as suas sobrancelhas e a ponta dos seus lábios curvados em uma expressão que parecia desesperada, ao mesmo tempo em que era diferente de qualquer categorização em que Alfred pudesse colocá-la. Ninguém nunca havia mostrado olhos tão brilhantes, concentrados e incertos para ele. A sua face tinha uma espécie de tristeza carregada de esperança, um medo com vontade de ter coragem.

Uma corrente elétrica desceu pelas vértebras de Alfred.

Era horrível ver o que deveria ser um reflexo da sua expressão no rosto à sua frente. Se o nervosismo, vulnerabilidade, constrangimento e ansiedade que estavam sendo projetados em Arthur, estivessem aparecendo tão abertamente em seu semblante, ele iria escondê-lo no primeiro objeto que encontrasse. Era vergonhoso demais. Simplesmente ver aquela combinação de traços já deixava o seu coração comprimido a ponto de doer.

O estranho é que ele não se escondeu. Ele não se moveu.

– Arthur… - Alfred começou a murmurar sem uma motivação específica, com a boca aberta o suficiente para lançar ar quente, sendo interrompido por um abrupto sobressalto da outra parte.

– B-Bom, eu acho que você já foi altruísta demais por hoje, Jones! - Arthur levantou-se em um pulo, de repente insensível às suas queimaduras e, aparentemente, a outras coisas também. Ele estava com um sorriso bastante incomum. A mão de Alfred ficou perdida com a rápida retirada daquilo que estava segurando. - Eu tenho que ir para o meu quarto, estudar para uma prova, e você deve ter alguma coisa para fazer com alguma garota.

Alfred engoliu em seco e desviou os olhos para um armário qualquer.

– É… Verdade. - ele abaixou sua cabeça com um sorriso de pesar. - Eu acho que deveria chamar uma garota para sair. Eu não faço isso há algum tempo.

– Sim, sim. - Arthur adicionou afobado. Havia uma estranha agitação em seu sorriso e olhos muito abertos que Alfred não conseguia assimilar. Visivelmente, ela saía com certo esforço e ficava tão esquisita em Arthur quanto uma peça forçadamente encaixada no quebra-cabeças errado. - Nós estamos muito ocupados com os treinos e provas para sairmos com outras pessoas. É um problema. Se eu tivesse o seu tempo livre, eu iria aproveitá-lo!

– Sim, é bastante chato. - Alfred concordou gravemente, embora não estivesse se concentrando na mesma linha de pensamento que Arthur.

Eles se entreolharam por um momento, como se estivessem em espera. Houve um instante em que Arthur abriu ligeiramente a sua boca e Alfred pensou que ele diria algo, mas ele não disse. Também houve um instante em que Alfred pensou que diria algo, mas não encontrou o que dizer.

Todavia, quando ele viu o Kirkland vestindo a sua camisa e apanhando sua mochila em velocidade recorde, ele se forçou a falar.

– Arthur. - a palavra foi dita lentamente e com força, podendo existir por conta própria, sem a necessidade de uma interrogação. E se a sua visão não estivesse o enganando, os ombros de Arthur se contraíram ao escutá-la.

– Diga. - o senhor Kirkland pediu calmamente, depois de respirar fundo.

– Tome cuidado para não ficar desidratado, ok? - ele recomendou inocentemente, sorrindo e inclinando sua cabeça para o lado, como ele costumava fazer quando era apanhado em uma das suas peripécias juvenis ou ultrapassando uma linha que não devia.

Arthur acenou rapidamente e saiu logo em seguida. Alfred, no entanto, não agiu da mesma forma.

Ele passou um tempo dentro daquele vestiário, sentado com a sua respiração insuficiente e com um cansaço que normalmente surgiria com várias horas de corrida. Que estranha e desagradável era aquela sensação. O Kirkland teve energia para correr daquele vestiário e ele nem tinha energia para se levantar. Era humilhante.

Definitivamente, ele precisava de mais treino e precisava de uma namorada. Só isso.

–--

“fem!Austria x Prussia, e os dois estão juntos num trem que, por algum motivo, precisou parar no meio do nada (sugestão: tempestade de neve)."

– Prato principal: Um trem na neve.

Uma longa viagem de trem em um dia de neve poderia ser uma experiência bastante exaustiva para alguns, mas não para Rebeka Eldestein. Ela adorava trens, adorava a neve e adorava o destino para o qual ela se dirigiria. A sua terra-natal, a Áustria, onde se encontravam os membros da sua família, dispostos a comemorar um natal. Ela precisava dessa viagem para se recuperar do ano terrível que teve, foi o que ela constatou, observando a neve incessante caindo no lado de fora e tingindo o cenário de cinza e branco.

Que ano terrível foi aquele. Primeiro, uma das professoras da escola em que ela trabalhava se demitiu abruptamente e o colégio decidiu fazê-la pegar as aulas dela também, deixando implícito que eles poderiam encontrar outra professora de música com “maior energia”, caso ela não aceitasse o acréscimo. Era temporário, eles garantiram, porém era claro que eles viam o termo “temporário” como um “não será eterno” em vez de um “será uma medida breve” e, como conseqüência disso, ela estava dando aula para cinco turmas há três meses. Segundo, o seu gato, Rachmaninov, teve uma doença misteriosa com idas e vindas ao final do ano e acabou falecendo no mês anterior, deixando-o absolutamente desolada. Para concluir aquele ano horrível, ainda houve uma série de problemas técnicos que começaram a aparecer no seu apartamento de uma vez, como se um espírito maligno tivesse tomado conta da casa, trazendo-lhe despesas e preocupações adicionais das quais ela realmente não precisava. De acordo com Gilbert, era isso que acontecia em apartamentos velhos, quando você não executava pequenas reformas neles ao longo do ano.

Gilbert. Gilbert era o seu outro problema. Em fatos, Gilbert sempre foi o seu problema, porém de maneiras muito diversas. Quando eles se conheceram, Gilbert fora um problema porque ele era um indivíduo particularmente irritante que tinha um grande prazer em provocá-la constantemente e cujo interesse incessante por ela era inexplicável. Quando eles se acostumaram um com o outro, Gilbert fora um problema porque ele era mais gentil e mais encantador do que aquelas roupas pretas, cheias de correntes e metais pontiagudos sugeriam, e ela acabou começando a se sentir de uma forma estranha em relação a ele. Atualmente, Gilbert era um problema porque eles haviam se tornado um casal recentemente e ela não sabia como lidar com essa inclusão na sua vida, quando esta estava tão tumultuada.

Eles estavam namorando há quatro meses, porém tiveram pouco tempo para se dedicarem ao seu recém-formado relacionamento, pois no mês seguinte, ela se tornou bem mais atarefada e, nos outros meses, problemas foram sendo adicionados. Rebeka não queria incluí-lo desnecessariamente neles e estava certa de que ele não poderia contribuir para sua melhoria.

O problema é que os efeitos eram contraditórios. Ela buscava evitá-lo para não incomodá-lo com os seus problemas, porém esses problemas eram tão constantes que ela acabou por afastá-lo de modo geral. Ela precisava de um tempo sozinha para recuperar as suas energias, mas por se sentir culpada em excluir o Gilbert e em não saber como devolver o equilíbrio a relação dos dois, ela acabava se tornando mais cansada e precisando de mais tempo a sós. Era um ciclo vicioso.

Ela não sabia o que fazer.

Havia uma barreira invisível entre eles. Fina e fria como uma camada de gelo na janela em um dia frio. Os dois estavam sentados ao mesmo lado no trem, contudo separados em mundos particulares. Como no início da viagem, Rebeka o informou que ele não deveria falar com ela durante o percurso porque ela apreciava viajar em silêncio e precisava de um instante de paz, ele colocou fones de ouvido e começou a ouvir música no seu celular, deixando os seus olhos caírem pesadamente sobre a tela, enquanto Rebeka encostava o seu rosto no vidro ao seu lado e vislumbrava as árvores decoradas pela estação gélida.

Era o seu primeiro namoro sério em muito tempo e ela tinha sido praticamente uma adolescente quando se relacionou pela primeira vez com alguém, o que tornava as duas experiências bem diferentes. Os maiores problemas do seu namoro na adolescência foi se esquivar de experiências sexuais para as quais ela não estava preparada, lidar com problemas de insegurança – “Por que você não me ligou ontem? Honestamente. Não me envolva em suas teias de ardis, seu sedutor barato. Você deveria me informar as suas intenções de se envolver com outras garotas.” – e se sentir contrariada com presentes improvisados de dia dos namorados. Ela era uma mulher agora, por mais estranha que a perspectiva lhe parecesse, uma vez que ela sempre se considerou mais madura do que deveria.

Ela sabia que Gilbert a amava, ela se sentia fisicamente confortável com ele e não tinha a menor necessidade de escrever no seu diário sobre quão estúpido ele era (embora ele fosse um pouco estúpido ocasionalmente). Em alguns aspectos, ela estava bem mais preparada para aquele relacionamento do que a sua “eu” de dezenove anos. No entanto, havia novos problemas trazidos especificamente pela vida adulta.

Ela não era uma adolescente. Ela não podia e não queria deixar de trabalhar para ficar com o seu amado. Ela tinha que resolver por conta própria os problemas do seu apartamento. Ela não podia parar o mundo por conta do falecimento de um dos seres mais preciosos da sua vida. Enfim, a maturidade a fez perceber que o universo não girava em torno dos seus sentimentos e que não era simples se adaptar a um relacionamento influenciado por fatores externos que não poderiam ser evitados.

As suas medidas eram um improviso consideravelmente insuficiente. Um improviso tão “temporário” quanto o arranjo em seu trabalho estava sendo. O que ela poderia fazer, no entanto? O coração dela se sentia tranqüilo, mas um pouco vazio naquela noite. Por isso, ela precisava da neve, do som dos trilhos sendo percorridos. Uma parte dela queria tocar a mão de Gilbert e uma parte dela precisava desesperadamente de algum espaço pessoal. Ela decidiu não pensar nisso e concentrar-se no aumento da intensidade da tormenta do lado de fora.

No entanto, de repente, o trem parou.

No meio de uma paisagem deserta.

Como estava observando a janela, ela foi a primeira dos dois a noticiar que o trem havia cessado o seu movimento. No entanto, o primeiro a reclamar foi Gilbert.

– Que diabos…? – ele reclamou, mostrando uma expressão simultaneamente atordoada e agressiva.

Outros passageiros no trem exibiram reações com diferentes níveis de agressividade, porém unidos em sua irritação. Rebeka não foi uma exceção.

– Realmente. – a senhorita Eldestein franziu as suas sobrancelhas aborrecidamente - É uma situação muito inconveniente.

Era o fechamento ideal para um ano péssimo, concluiu a senhorita Eldestein. Sinceramente, ela deveria ter esperado por algo assim.

Enquanto Rebeka Eldestein encarou o inconveniente com braços cruzados em um sentido não-metafórico, Gilbert exigiu esclarecimentos.

– Ei, você! – ele berrou para um ruivo sentado no outro lado do vagão, o qual teve um pequeno sobressalto em sua cadeira - Por que esse trem parou?!

– Parece que ocorreu um problema por conta neve! – a pessoa exclamou em resposta, mostrando idêntica indignação com a situação - Nós vamos ter que esperar a tempestade baixar um pouco, antes de conseguirmos prosseguir. É uma bela droga, eu sei.

Esperar a tempestade passar. No meio de um local inóspito e solitário. Sem previsão de quando a viagem poderia prosseguir.

– Oh, céus. Eu não posso acreditar nisso. – Rebeka, exasperada, colocou suas duas mãos sobre o rosto - O que nós podemos fazer?

A resposta dada pelo seu namorado foi bastante diferente do que ela poderia esperar em suas atuais condições.

– Conversar. – ele retrucou simplesmente.

– Como? – ela franziu as sobrancelhas em confusão. Será que ela havia entendido corretamente?

– Tecnicamente, nós não estamos mais viajando, não é? – ele sorriu, estendendo as mãos para cima, com um sorriso quase triunfal - Isso quer dizer que você pode falar comigo, jovem dama.

Era verdade. Uma verdade um pouco intimidante. Uma verdade para a qual ela não estava preparada.

– Oh. – ela apertou os seus joelhos com as mãos - Hm.

Percebendo que a resposta dela não ultrapassaria um par de sons confusos e indecisos, Gilbert voltou a falar em um tom mais caloroso dessa vez.

– Eu sinto falta de conversar com você. – ele apanhou uma das mãos dela e havia um toque de nostalgia na maneira como ele fitou o seu rosto - Será que eu preciso voltar a invadir a sua sala, como eu fazia nos tempos de faculdade?

Foi docemente doloroso ter aquela recordação e a nostalgia voltou para ela por um momento. Ela a conteve no mesmo instante. Eles não estavam mais no campus.

– Não seja tolo. – ela o repreendeu, utilizando a sua mão livre para acomodar o seu casaco azul em seu ombro - Era um movimento muito juvenil da sua parte e não espero que você continue a fazê-lo com vinte e sete anos.

Sem nenhuma surpresa de qualquer uma das partes, Gilbert riu disso e assumiu um semblante presunçoso.

– “Juvenil” deve ser o seu código para “super-efetivo”, milady, pois até onde eu saiba, eu estou namorando com você por conta das minhas visitas-supresas.

Ele estava namorando com ela por razões bem maiores do que as visitas-surpresas que ele costumava fazer na sala, mas ela ainda não se sentia preparada para dizer isso. Eles estavam no seu quarto mês de namoro. Ela não estava plenamente confortável em sua porção emocional.

– Nós éramos estudantes, naquela época. – ela deu um suspiro que tencionava soar aborrecido, embora fosse um pouco mais pesado que isso - Se você for visitar a minha sala hoje, a diretora será justificadamente severa comigo.

– Você dizia o mesmo do orientador da sua tese. – ele lembrou, sorrindo ostensivamente - Com os mesmos termos aristocráticos, inclusive.

Aqueles eram tempos tranqüilos. Ela tinha uma falta inexprimível daqueles dias em que os aborrecimentos da sua vida eram as provas da faculdade e os seus sentimentos mal resolvidos pelo seu atual namorado.

– Bom, eu não sabia que ele torcia secretamente para que nós nos tornássemos um casal.

– Era um cara legal, aquele professor. – ele balançou a cabeça, vagando por recordações com um sorriso terno - Você ainda tem contato com ele?

Questões como aquela era uma das razões pela qual, apesar de irremediavelmente apaixonada por Gilbert, Rebeka Eldestein não podia escapar da conclusão de que ele era um grande tolo. Se Rebeka tivesse tempo para contatar alguém, por que ela estaria contatando um ex-professor no local do seu namorado? Qual era a percepção que Gilbert tinha dela?

– Não. – ela afirmou asperamente - Você sabe que a minha agenda está ocupada.

– Você deveria voltar a contatá-lo. – ele ignorou a dura forma como Rebeka o respondeu e continuou a conversa com aparente despreocupação. - Ele não queria que você fizesse um mestrado?

Era tarde para um mestrado. Rebeka tinha medo de não conseguir um emprego no futuro, caso perdesse o seu atual. A economia européia estava em cacos. Como ela poderia arriscar-se tanto quando acontecia uma crise? Gilbert Beilschmidt era um empresário e insistia demais naquele assunto. Ele não poderia compreender. A situação para músicos era mais difícil. A situação para mulheres era mais difícil. Por precaução, ela tinha que deixar alguns receios a conduzirem.

– Eu não quero conversar de novo sobre isso, Gilbert. – ela limitou-se a dizer, e sentiu um flash de dor atingi-la quando ouviu muito claramente um resmungo de “ultimamente, você não quer conversar sobre nada”, seguindo-se a essa declaração.

– Não fale como se eu tivesse algo pessoal contra você. – ela solicitou defensivamente - Como repeti diversas vezes, eu estou ocupada.

A mágoa facilmente transita para a impaciência. Havia certa irritabilidade na sua voz. O modo subitamente vulnerável como ele depositou seus olhos sobre ela, fez com que ela soubesse que ele percebera isso.

Acidentalmente, eles haviam atingido um nervo.

– Sabe, eu… – ele começou a passar os dedos em seus cabelos, colocando-os para trás, com um ar preocupado e exasperado. - Eu não quero forçá-la ou pressioná-la a nada, mas nós estamos namorando há meses. Será que você pode ao menos dar alguma abertura para que eu volte a sua vida?

– Gilbert, eu…

– Eu não estou dizendo que eu posso resolver todos os seus problemas. – ele a interpelou e ela não pôde se irritar com aquela intervenção, tendo em que conta que ela não sabia o que sairia de sua boca, caso ela não tivesse sido interrompida. - Eu não estou subestimando quão ferrada você ficou esse ano, e eu sou incrível, mas não sou tonto a ponto de achar que sou um super-herói para resgatá-la de todos os contratempos. Sem ofensas ao seu primo americano. Eu só quero que você… Sei lá, Rebeka! – ele exclamou com uma mescla de frustração, dor e impaciência que pareceu bastante familiar à senhorita Eldestein. - Eu quero que você conte um pouco mais comigo e me inclua um pouco mais no que você está vivenciando!

– Gilbert, eu não preciso incluir você nisso. – ela declarou imediatamente - Não são problemas que você possa resolver.

– Eu sei disso. Droga. – ele bateu um punho fechado no seu joelho e mordeu seu lábio inferior, no que parecia uma tentativa de colocar os seus sentimentos sob certo controle. Ela estava consciente de que as emoções dele eram direcionadas à situação e não a ela. Gilbert, no entanto, não queria arriscar machucá-la e esforçou-se para conter a sua agitação, o que a deixou mais nervosa com o que estava acontecendo. - Eu apenas sinto que nós éramos mais próximos quando nós éramos amigos do que agora. Pelo menos, antes você se sentia confortável o bastante para agir como uma imperatriz acomodada comigo e eu me sentia à vontade para implicar um pouco com você! O que aconteceu, Beky? – havia um desespero contido naquela pergunta cuja intensidade inicial fez os pulmões dela esvaziarem em uma única expiração. Estranhamente, ele conteve-se de novo e quando prosseguiu, havia uma resignação estarrecedora em sua voz e expressão - Olha, você pode ser sincera. Você se arrependeu de ter começado a namorar comigo? Eu… entendo que você está em má fase na sua vida e o nosso relacionamento pode não ser o melhor para você, no momento. Se você quiser, nós podemos terminar e voltarmos a ser amigos. – ele deu um sorriso tão dócil e compreensivo que foi impossível desconsiderar quão forçado ele era - Eu não vou guardar rancor de você, apesar de começar a duvidar do seu bom gosto, considerando-se que eu sou, no mínimo, o melhor partido em toda a galáxia.

A brincadeira de Gilbert não produziu qualquer efeito humorístico em Rebeka.

– Não seja ridículo. – ela o encarou com uma resolução determinada e absoluta - Eu definitivamente não quero isso.

Foi bastante deleitável para Rebeka, noticiar a surpresa e o alívio inundando o rosto do seu namorado, comunicando plenamente as suas inseguranças sobre a proposta que ele mesmo havia feito. Gilbert era terrivelmente expressivo e não tinha facilidade em disfarçar os seus sentimentos.

Oh. Como os dois eram antagônicos.

– Ah. Então… – ele começou a esfregar a parte de trás do seu cabelo, exibindo um perfil nitidamente confuso, porém bem mais esperançoso - o que nós podemos fazer?

Ela abaixou seu olhar, tossiu e abraçou seu corpo para se aquecer.

– Eu não sei, Gilbert.

– Diga o que você tem em mente.

– Não.

– Diga, vamos. Não pode ser tão terrível assim. Desde que você não esteja pensando em algo do tipo “Eu seria tão mais feliz se eu caçasse animais em extinção!” ou “Eu seria mais feliz se fizesse um menage a trois com os melhores amigos do meu namorado!”, não há problemas!

Ela revirou os olhos e contraiu ligeiramente os cantos dos lábios, como se desaprovasse o seu pensamento ridículo. Em fatos, ela o desaprovara e podia demonstrar isso, mas precisou conter a vontade de rir que, concomitantemente, veio a ela.

– Quando você era meu amigo, eu não me incomodava em deixar você me mimar, pois amigos são amigos e eles agüentam um ao outro. – ela admitiu, sentindo-se mais confortável em expor um pouco mais de si, considerando-se que era revigorante ser completamente honesta e ainda assim escutar respostas tão positivas. - Todavia, como meu namorado, eu não sei quanto você suportar da minha carga emocional… Eu sei Você se apaixonou por uma Rebeka Eldestein segura e estóica e eu sinto que o melodrama que está me acompanhando seria um fardo para você. É um fardo para mim, pelo menos.

– Wow. Wow. Que conclusões foram essas? – Gilbert arregalou os olhos e abriu a boca em completo choque - “Segura” e “estóica”? Eu não me apaixonei por uma estátua de gelo! Eu me apaixonei por você, Rebeka. Sim, eu acho adorável como você é sutil ao expressar os seus sentimentos e eu acho a sua postura orgulhosa de um modo elegante super-legal, mas você realmente acha que eu iria desistir de você, depois de anos de amor-platônico, por que você teve um final de ano horrível e está triste? Tenha dó!

Ele parecia legitimamente mortificado. Tão mortificado que chegava a ser lisonjeiro. Um fluxo de calor gentil diluiu-se pelo corpo de Rebeka.

– Eu fico contente com a sua consideração, contudo eu não posso aceitar a perspectiva de lotá-lo com os meus problemas, quando eu sei que sou a única que pode resolvê-los. – ela confessou - Eu me sentiria mal em admiti-los.

– Rebeka, você pode ter o seu espaço e, se você quiser, tente resolver os seus problemas por conta própria. – ele declarou, encarando-a com uma seriedade bastante intensa - Que diabos. Eu estou ciente do seu senso de independência. Eu não me esqueço da vez em que você bateu na minha cabeça com uma partitura quando eu fiquei insistindo que você se mudasse para o meu apartamento, no mês passado!

– Você mereceu. – ela deu de ombros, dando um sorriso discreto e suave com a lembrança do incidente.

– Caramba. – ele pareceu impressionado por nenhum motivo claro – Que sádica. Você seria uma ótima dominatrix.

– Oh, Gilbert. – ela bufou reprovativamente - Você é inacreditável.

– Eu sei. – ele deu um sorriso vagamente cretino, apoiando o cotovelo no braço da cadeira dela e inclinando-se um pouco mais para o seu lado - Você deveria dizer isso mais vezes depois do sexo, sabia?

– Céus, Gilbert! – ela sussurrou como se estivesse berrando, sentindo o seu rosto esquentar em uma mistura de constrangimento e irritação. E-Eles estavam em um trem lotado!

– Como eu dizia, você pode ter o seu espaço e esganar sozinha a diretora do seu colégio. Eu não quero ser preso como cúmplice de qualquer modo. – ele brincou. Parcialmente. - No entanto, uma coisa é resolver os seus problemas por conta própria e outra coisa é deixar a sua vida se tornar totalmente paralela à minha, Beky. Não é legal. Eu sou o seu namorado e, droga, esse título foi tremendamente difícil de conquistar.

Novamente, ela queria rir desse comentário, mas um sentimento prioritário lhe ocorreu. Sendo assim, ela respirou fundo e indagou brandamente:

– O que você sugere que eu faça para incluí-lo mais, Gil?

– Bem, eu posso não resolver seus problemas, mas eu posso ajudá-los a lidar com ele. – ele começou em um tom hesitante, abaixando o seu rosto e deixando que cada palavra saísse dele como se uma fibra do seu coração fosse retirada. Para bem ou para mal, Gilbert Beilschmidt era um indivíduo pouco discreto. - Se você tiver um dia difícil, tente me ligar para nós conversarmos sobre aquela vaca que dirige o colégio em que você trabalha. Se você estiver estressada e precisar de uma companhia para assistir um “Um local chamado Nothing Hill”, você pode me convidar. Não me culpe se nós tivermos que dar uma pausa para dar uns amassos de cinqüenta minutos no sofá. Eu sou um namorado fantástico, porém preciso recarregar as minhas baterias de vez em quando. Se você quiser apenas chorar no meu peito sem ter que me explicar nada depois, está tudo bem. Apenas… – ele cobriu o seu rosto, como se uma luz intensa estivesse prestes a queimá-lo. - Urgh.

– Eu entendi. – ela declarou com um sorriso ínfimo e infinitamente significativo. E ela realmente havia entendido.

Eles não sentiram uma necessidade de falar de imediato. Em vez disso, eles seguraram a mão um do outro e a apertaram com força até que os seus corações se sentissem mais leves.

– Nossa. Nós acabamos de ter a nossa primeira D.R em uma noite de natal, indo para a casa dos seus pais em um trem parado no meio do nada. – Gilbert riu de repente, genuinamente surpreso, revelando a sua face novamente - Como isso não acabou em lágrimas e sangue?

Sentindo-se muito mais disposta, ela pôde dar o que ela considerava uma resposta bem-humorada.

– Eu não tenho disposição física para discussões e você é dócil como um cordeiro. – ela declarou com uma sinceridade esmagadora e discretamente provocativa.

– “Um cordeiro”? – ele reagiu com ofensa, como o esperado - Vamos lá, Rebeka. Você pode pensar em uma comparação mais maneira para o incrível eu?

– “Maneira”? Oras, Gilbert. Não tente trazer os anos noventa de volta.

Era essa a dinâmica com a qual eles estavam acostumados. A troca de implicâncias leves, a liberdade na transição de seus espaços, a confiança que eles compartilhavam, a afeição que eles demonstravam explicita e implicitamente, o modo como eles despertavam e liberavam lados um do outro que ninguém jamais conseguiria arrancar deles… Esse era esse o relacionamento que Rebeka ansiou tão intensamente em transformar em romântico. Ela finalmente reconheceu aquilo do qual ela sentira tanta falta na relação dos dois e noticiou que aquilo que ela estava evitando, a intimidade que os dois compartilhavam, era justamente o traço do qual eles mais poderiam e deveriam desfrutar na nova fase do seu relacionamento. Gilbert podia ser o seu namorado, mas ele continuava a ser o seu melhor amigo. Era essa proximidade dos dois, por exemplo, que a permitia ler nas orbes azuis dele que o mesmo sentimento de familiaridade e contentamento que ela sentia, havia retornado a ele.

Sentindo como a atmosfera ao seu redor havia se tornado mais leve e descontraída, Gilbert passou casualmente para um novo assunto, uma ação da qual Rebeka não reclamou por dentro ou por fora.

– Por falar em anos noventa, eu me tornei o agente de uma banda com um estilo grunge e os caras são super-legais. – ele comentou, encostando a cabeça no ombro da sua namorada - Eu tenho que me controlar para não sair direto com eles, considerando-se que sou o vassalo de uma jovem dama. Um deles é um inglês, chamado Arthur. Ele é bissexual. Talvez nós devêssemos apresentá-lo àquele seu primo gay?

Ela fez um meneio negativo com a cabeça.

– Eu já disse que se o Alfred é homossexual, ele nunca assumiu. Ele nunca nos apresentou uma namorada, mas…

– Ele praticamente assumiu quando ele ficou me devorando com os olhos naquela festa de aniversário dele, no nosso segundo ano de curso. – Gilbert replicou com um largo sorriso que tinha um toque de malignidade.

– Essa é uma presunção sua. – ela declarou em tom neutro, mas lançou um olhar cortante em sua direção.

Provavelmente, noticiando as linhas implícitas naquele rosto e naquela fala perfeitamente plácidas, Gilbert explodiu em uma gargalhada. Céus. Como ele podia ser irritante.

– Presunção? Pfff! E a parte em que ele ficou me dizendo insistentemente que era solteiro, que o colega de quarto dele nunca parava em casa e que ele não fazia sexo há séculos? Ele não é nada sutil, aquele Alfred! E a parte em que você teve uma crise de ciúmes… Nem tente negar. Eu sei agora. Você teve uma crise de ciúmes e disse que queria sair imediatamente daquele “antro de estupidez e promiscuidade”. Bom, quem sabe o garoto não seja homossexual. Ele pode apenas não ter resistido aos meus incríveis charmes. Quem poderia? Por outro lado, eu devo admitir que ele mesmo não é nada mal. – ele deu um meio-sorriso, mexendo as suas sobrancelhas sugestivamente somente para implicar com a jovem dama. - Se eu não estivesse apaixonado por você, naquela época, quem sabe?

– Você está certo. Nós deveríamos apresentar o Alfred a esse conhecido seu. – Rebeka declarou de repente com um semblante decidido e vagamente aborrecido - Em benefício dele. – ela decidiu acrescentar como medida de segurança, para não estimular o ego já excessivamente grandioso do seu namorado.

Lamentavelmente, o deboche que ele estava emanando denotava a ineficiência dessa medida. Sigh. Por que ele precisava lê-la tão bem? Aquele estúpido que ela tanto amava.

– Claaro. Para o bem dele, não é? – ele cantarolou ceticamente, revirando os olhos e rindo para o teto - Você é tão altruísta, jovem dama.

– Você é um tolo, Gilbert. – ela declarou sem uma gota de ceticismo ou de real hostilidade, encostando o seu rosto no dele e inspirando fundo para sentir a colônia forte dele e o contato tênue entre as suas peles.

Nesse ritmo agradável, eles conversaram extensivamente sobre assuntos que acabaram por não se encaminhar em instante algum para os problemas de Rebeka Eldestein. Ela pôde então descobrir que, embora eles existissem e embora eles fossem péssimos e impossíveis de ignorar, havia mais do que eles na sua vida. Em sua vida adulta, ela não podia fugir dos seus problemas. Em compensação, ela não poderia se esquecer de que também havia coisas das quais nunca valeria a pena fugir. Conversar sobre as celebridades irritantes com as quais Gilbert trabalhava, combinar de ir para um café que ele havia descoberto – “Nós moramos na França e você é uma artista! Como você pode ir tão pouco a cafés? Inaceitável, milady.” – e brincar em relação a diferença de temperatura das mãos dos dois, revelaram-se experiências simples e surpreendentemente relaxantes. Rebeka Eldestein verificou que, apesar dos pesares, esses pequenos prazeres ainda eram acessíveis a ela. Eles poderiam não solucionar completamente os seus dilemas, contudo conseguiam animá-la e prepará-la para o amanhã. O mundo era problemático, porém ele fornecia oportunidades de felicidade junto aos seus vários desafios praticamente obrigatórios e Rebeka, felizmente, havia apanhado ao menos uma dessas oportunidades.

Ela não poderia se esquecer de aquele ano, repleto de eventos terríveis, não foi tão mal assim. Afinal, esse foi o ano em que ela finalmente começou a namorar com o seu amor supostamente platônico de longos anos, Gilbert Beilschmidt, e uma parte profunda e sólida em seu coração sabia que aquele evento a ajudaria a encarar com ânimo muitos outros anos, fossem alegres ou tristes, no futuro.

Quando os dois se cansaram de tanto conversar e adormeceram pendendo um pouco para a cadeira um do outro, a neve havia sido reduzida e o trem voltou a andar.

–--

"Omegaverse PruAus mostrando a primeira vez em que eles se encontram."

– Sobremesa: (In)dependência.

Se perguntassem a Gilbert Beilschmidt, ele preferia dez mil vezes mais conviver com alfas do que com ômegas.

Uma declaração como essa poderia gerar exclamações chocadas e até horrorizadas, uma vez que alfas eram mais comuns e menos romantizados do que ômegas, porém ela era legítima e bastante razoável, caso parassem para analisar os seus motivos.

Não era que Gilbert tivesse um preconceito em relação a ômegas. Era o oposto. Um preconceito surge da ignorância e ele conhecia mais do que suficiente a rotina de um ômegas e a balança de vantagens e desvantagens da convivência com eles. Ele era o filho adotivo de um casal de ômegas, com um irmão mais novo que também era um ômega e ele era um beta.

Sim, ele já podia ter o seu próprio reality-show.

Ser o único beta em uma família de ômegas era um saco total. Eles davam tanto trabalho! Um ômega tinha dois ciclos por ano. Gilbert tinha que aguentar seis. Ninguém mediu bem as consequências de adotar um filho ômega e por mais que Gilbert amasse os seus pais e o seu irmão com todo o seu coração, caramba, como eles o exauriam.

Um ômega durante um ciclo se tornava extremamente dependente de outras pessoas. Alfas eram biologicamente bem preparados para lidarem com a carência deles. Eles podiam identificar as necessidades do ômega usando o olfato e não se importavam em ficarem grudados em seus ômegas todo dia e o dia inteiro porque eles ficavam muito excitados e/ou protetores para se importarem com isso. Era algo puramente instintivo.

Um casal de ômegas não possuía essas vantagens. Por outro lado, eles sabiam muito bem do que o outro precisava, visto que eles tinham experiência pessoal com o que o seu parceiro estava passando. A outra vantagem de um casal de ômegas seria a gentileza, calma e ponderação que eles apresentavam ao cuidarem um do outro. Os instintos protetores e a libido dos alfas podia ser muito prazerosa e conveniente para os ômegas em alguns momentos. Todavia, ela os deixava em um estado contínuo de agitação que não os permitia ser razoáveis nos instantes em que essa necessidade surgia.

Logicamente, os casais de ômegas também tinham seus próprios problemas. A começar pelo fato de que cada um deles experienciaria dois ciclos por ano, o que matematicamente representava um maior número de vezes em que aquele período chatíssimo se estendia. No tempo em que Gilbert não estava sendo um enfermeiro oficial para os seus pais e o seu irmão mais novo, ele se preocupava em verificar como estavam os estoques de cobertores e travesseiros limpos para o ninho, alimentos leves e várias garrafas de água e brinquedos sexuais – sim, aparentemente, um ômega ficava tão excitado e carente que era incapaz de soltar o seu parceiro por um segundo nem que seja para comprar algo do qual ele precisa e que ele definitivamente não deveria estar pedindo ao seu filho, urgh, ninguém merecia aquilo. Nunca era cedo demais para ter essas preocupações porque, com certeza, era uma questão de semanas para outro membro da família entrasse em seu ciclo e seria bem mais complicado sair para arranjar esses itens no meio da tempestade que a casa se tornava. E quando o ciclo deles chegavam mais cedo e acabavam se intercalando?! Com certeza, deveria haver um círculo especial para betas no inferno, onde um monte de ômegas tinham os seus ciclos ao mesmo tempo. Era terrível assim.

Ele era um beta, o mais sensato e controlado dos tipos. Desde tempos remotos, os betas sempre assumiram um papel de guardião oficial de um ômega em seu ciclo. Digo, os alfas ficavam atando nos ômegas e berrando com quem ousasse atrapalhá-los, mas se não fosse pelos betas, os alfas e ômegas podiam ficar desidratados e desnutridos ao ponto de adoecerem… Sério. Em resumo, poderia se dizer que sempre sobrou para eles. Os alfas e ômegas só pegavam as partes divertidas e o trabalho ficava para os betas.

A rotina agitada de Gilbert Beilschmidt durou dos seus doze a dezoito anos. Do ano em que seus pais acharam que ele já estava com idade para ajudá-los ao ano em que ele saiu de casa para ir a um dormitório da sua faculdade no outro estado.

Em respeito aos seus parentes, ele dedicou alguns minutos no vagão do trem de partida para se sentir mal pelos seus pais e pelo seu irmão novo e preocupar-se em relação a como eles se virariam a partir de então, mas esse momento de consideração familiar não teve forças para se sustentar por tanto tempo. Que os seus pais e irmão o perdoassem, mas, bah!, ele estava certo de que eles arranjariam algum jeito de se cuidarem! O mais importante é que Gilbert finalmente estava livre. Livre como um pássaro cantando! HÁ, HÁ, HÁ…! Quero dizer, hm, aquele era um importante sinal de maturidade do seu filho mais velho e deveria ser o suficiente para alegrar o casal Beilschmidt! Sim, sim. Nada de sentimentos de culpa por aquele jubilo que ele estava sentindo! Ele deveria aproveitar a festa como podia! Pelos seus pais!

Como ele pretendia desde sua matrícula em seu curso, ao entrar em sua universidade, Gilbert pôde se rodear de alfas e betas. O seu parceiro no dormitório era outro beta chamado Arthur Kirkland, cujo círculo de amizade era composto basicamente por alfas que foram apresentados para o Beilschmidt e se deram incrivelmente bem com ele. A vida ao lado do Arthur e dos seus novos amigos era simples e fantástica. Nada de assumir a tarefa de enfermeiro da família por uma semana a cada dois meses. Nada de preocupações constantes sobre ciclos chegando mais cedo ou mais tarde do que deveriam. Nada de necessidade de ficar conferindo o estoque para emergências. Ele só precisava se importar com ele mesmo e, dentro de certos limites, com o Arthur.


Cara, aquilo sim é que era a vida.

Gilbert podia seguir vivendo daquele jeito para sempre!

Podia, mas….

Eu vou me mudar para a casa do Alfred antes do próximo ciclo dele. Eu devo cuidar dele como um alfa normalmente faria, mesmo que nós não possamos atar. Eu sou um cavalheiro, afinal.”.

BOOOOOOOOOOOM!

Em poucos segundos, todos os planos de curto e médio prazo de Gilbert sofreram uma modificação drástica.

Oh, não.

Aquilo não era bom. Aquilo não era nada bom.

Deixe-me explicar melhor: assim que entrou na faculdade, Gilbert não tinha uma reputação. O critério de seleção para o seu colega de quarto, portanto, foi baseado puramente em compatibilidade de tipos porque ninguém sabia se o tipo de personalidade dele seria apropriado para a convivência constante com alfas ou ômegas. Como todos os outros calouros, ele recebeu um tratamento generalizado para simplificar as combinações em cada quarto.

Esse foi o passado. Em seu sexto semestre, ele não era mais um rosto anônimo no campus.

Gilbert Beilschmidt era um estudante beta com as melhores notas da sua turma, cogitado para ser o orador de classe e refutado apenas porque o reitor concluiu que seria menos arriscado fazer um show pirotécnico no meio da cerimônia do que deixá-lo assumir uma posição dessas. Gilbert era organizado, independente e alguém que nunca manifestou o mais remoto interesse pelos ômegas da sua faculdade, o que significava uma coisa quase certa…

Ah, não. As pessoas tentariam jogar um ômega em cima dele.

Exagero?

Era o que eles iriam ver.


Dito e feito.

O Arthur não havia sequer terminado a sua mudança quando as propostas para que ele ficasse com diversos ômegas começaram a encher a sua caixa de mensagens. Ninguém perdeu tempo e Gilbert se viu em mais de uma madrugada com o rosto afundado nas mãos, grunhindo lamuriosamente na frente do seu computador enquanto o ícone da sua caixa de entrada pulava para cima e para baixo, com a sua numeração crescendo a cada vinte minutos.

Era irônico que o Beilschmidt, que pensara finalmente estava livre de uma vida como babá de ômegas, estivesse sendo praticamente caçado por eles agora.

Como se os seus desgostos não fossem suficientes, a sua recusa em morar com um ômega, apenas despertou mais interesse da parte dos ômegas em tê-lo como colega de quarto. Esse tipo era tão importunado por alfas grosseiros que um beta legitimamente indiferente parecia ser a melhor companhia que eles poderiam esperar e a popularidade dele aumentava a cada recusa. E falando de tipos ou não, vamos ser honestos, Gilbert Beilschmidt(em sua relevante e totalmente sensata opinião) era fantástico. Ele não podia culpar aqueles ômegas por quererem a sua inestimável companhia. Heh! Ele também sairia no tapa se estivesse no lugar deles!

Esse inferno durou por aproximadamente duas semanas e meia sem pausas ou progressos, mas em uma quarta-feira, uma proposta ligeiramente diferente das outras surgiu.

Ela veio de uma garota alfa que era capitã do time de vôlei, uma veterana que era um ano mais velha do que o Gilbert e alguém com quem ele tinha suas dívidas e uma boa amizade.

– Eu soube que você está procurando por um novo colega de quarto. - a Lizzy comentou, sentando na frente dele no refeitório, trazendo uma porção de arroz e purê de batata que quase alcançava a altura da cabeça dela.


Gilbert deu de ombros e agitou o rosto para os lados, fechando os olhos e destilando arrogância no sorriso que escorria pelas bordas dos seus lábios.

– Bom, para ser sincero, são os novos colegas de quarto que estão procurando por mim, mas prossiga. - ele falou, dando uma breve e satisfeita risada com a própria piada.

Pena que a Lizzy tenha sido tão chata e não prestado atenção nela.

– Eu acho que sei de alguém com quem você se daria muito bem. - ela declarou, não perdendo seu foco ou o estranho brilho determinado em seus olhos verdes.

– Alfa ou beta? - ele perguntou desconfiado, erguendo uma sobrancelha. Havia algo de estranho ali. Se a Lizzy realmente houvesse encontrado alguém que daria certo com ele, não haveria necessidade dessa cena de suspense. Ele conhecia a figura. Se não houvesse algum “PORÉM” em letras garrafais e piscando um alerta vermelho, ela teria simplesmente dito “Ei! Eu encontrei esse cara aqui para ser seu colega de quarto! Pode ser?”. A Lizzy não mostraria toda essa pompa e circunstância a menos que…

– Ômega.

Ele nem piscou antes de responder:

– Nada feito.

– Oras, vamos! Você nem me ouviu ainda! – ela exclamou batendo na mesa com os dois punhos fechados, fazendo os seus pratos saltarem um pouco. Grãos de arroz do prato da Lizzy voaram para todo lado e parte da sopa de Gilbert caiu na superfície da mesa, escorrendo e quase caindo em sua perna. Ah, droga! A Lizzy e a sua força brutal! Tsk!

– Não faz diferença. - ele declarou, tentando ignorar o pequeno grau de alarme que aparecera na sua voz e nos seus olhos que ainda estavam encarando o líquido quente e laranja na mesa com certa estupefação, mas mudando de lugar e tirando o seu prato da mesa por questões de segurança. - Ômegas são trabalhosos demais. - ele adicionou, sentindo que era melhor dar algumas explicações a mais sobre os seus motivos.

A Lizzy fez um som irritado de frustração, enchendo as suas bochechas de ar em sua raiva, como se fosse um garoto mimado de seis anos que quer ganhar um brinquedo a todo custo.

– Ele pode ser um pouco trabalhoso, verdade! - ela admitiu a contragosto. De alguma forma, ela conseguindo manter as suas bochechas cheias enquanto falava e estava parecendo mais engraçada do que deveria. - No entanto, ele possui certas qualidades que combinam com você. - ela tornou a assumir um ar entusiástico e otimista na sua melhor imitação de uma garota de propaganda - Ele prepara sobremesas ótimas, também está estudando música e ele é um cara bastante… Huh… Direto! Assim como você!

O que havia com aquela pausa suspeita?

– O que foi essa pausa antes de “direto”? - ele franziu as sobrancelhas, desaprovando cada parte nova daquela estória.

Ela cruzou os braços sobre o peito e passou a mover os seus olhos para pontos aleatórios no teto.

– Ele pode ser “sincero demais”. - ela falou em um tom que deixava claro que aquilo era um eufemismo para “Esse cara é mais rude do que o Zangado em uma segunda-feira difícil”. O sorriso cândido que ela adicionou não alterava a sua mensagem principal. - Esse é um defeito para a maioria das pessoas, mas eu acho que vocês se dariam bem porque você é do mesmo jeito.

– Pfff! Lizzy, ainda bem que você está fazendo bioquímica, não direito! - ele riu extensivamente, fazendo um gesto de dispersão. - Você precisa melhorar drasticamente a sua capacidade de persuasão! Você percebe que o seu argumento para me convencer a morar com esse cara foi basicamente “ele é um chato para a maioria das pessoas”!

– Gilbert, você me deve uma por tudo que eu fiz quando você era um calouro! Esse ômega é um amigo de infância meu e eu quero o bem dele! Estranhamente, isso significa morar com você! Agora me prometa que você ao menos irá ligar para ele. Eu quero que você converse com ele antes de dispensá-lo.

– Falar com ele ou não. Que diferença faz?

Fez uma diferença enorme.

Ele tinha as suas dívidas com a Lizzy e não queria que ela ficasse o chateando com aquela estória, logo ele selou um acordo com ela e se comprometeu a ligar para o tal cara antes de o dispensar. Ele, no entanto, nunca declarou que planejava fazer uma ligação com uma longa conversa para o estabelecimento de uma linda amizade.

O plano original de Gilbert se dividia em três etapas. Etapa 01: “Olá”. Etapa 02: “Desculpa aí”. Etapa 03: “Tchau”. Ele nem considerou a possibilidade de que o ômega tivesse algo a dizer além das linhas comuns e repetitivas.

Ele não contava que antes mesmo que ele iniciasse a etapa 01, o ômega o cortasse, apressando-se em dizer:

– Senhor Beilschmidt, eu não sou tão paciente a ponto de ter que me submeter a qualquer dicusso comovente que você preparou para todos os ômegas ou ficar desperdiçando o meu tempo para ser rejeitado por você. Por favor, não se importe em dizer asneiras repetitivas ou com outras palavras igualmente desnecessárias. Eu sou o único filho ômega de uma família praticamente constituída por alfas e eu estou acostumado a ser mimado e tratado com a devida reverência.

….

Er… Quê?

Hã?

Quê?

O que diabos havia acabado de acontecer?

Aquilo foi tão repentino e inusitado que Gilbert ficou sem reação em seus primeiros segundos.

– Espere um pouco aí. Eu nem falei nada ainda!

– Hmpf. Eu não preciso escutá-lo. - retorquiu a voz do outro lado da linha. Ela era límpida e suave, como a de um atendente eletrônico, porém dotada de um elemento tão, tão esnobe que era difícil lembrar que aquele cara era quem supostamente estava pedindo um favor ali. – Eu conheço a sua reputação e posso presumir que você seria insolente se eu conferisse uma abertura para tanto. - e antes que Gilbert decidisse se ele não deveria dizer um “Vá se danar!” e desligar o telefone na cara daquele imbecil, ele fez um “Tsk” que capturou o seu interesse. Especialmente considerando-se o que se seguiu a esse som. – Betas. Sempre tão arrogantes, pensando que por serem imunes aos nossos feromônios, vocês são os mais razoáveis e racionais seres da Terra.

Wow. Aquele estereótipo era tão ofensivo!

– Ei! Não é bem assim! – ele protestou em indignação.

– Eu estou enganado? – perguntou a voz esnobe em um tom parcialmente irônico que tornava aquela questão praticamente retórica – Esse não é o seu modo de pensar?

Não, não era como se….! Bem, okay, ele pode ter pensado algo nessas linhas, mas não era bem assim! Ele não estava se achando o tal! Os betas apenas tinham a característica de serem mais razoáveis e racionais do que os alfas e ômegas porque eles não estavam envolvidos naquela bagunça biológica! Era apenas um fato e…!

Oh. Aquilo era exatamente o que a voz esnobe disse que ele pensava.

Ele cobriu seu rosto com a mão, pensando que era uma sorte que aquele cara não pudesse enxergá-lo agora.

“Droga”.

– De qualquer modo, se você odeia tanto os betas, por que você está querendo morar comigo? - ele perguntou em forçada casualidade.

– Eu já disse. - o ômega deu um suspiro impaciente – Eu vim de uma família de alfas e quero ser bajulado.

– Então arranje um alfa! – Gilbert gritou sem titubear.

– Alfas são deploráveis!

– Hã?

– Eles não cuidam de um ômega por puro altruísmo. - o ômega reclamou, parecendo muito enojado com a ideia. De algum modo, era como se ele estivesse relatando uma descoberta. - Eu fiquei chocado em ver que a noção deles de cuidar de um ômega no seu ciclo envolve sexo e atar. Além disso, é impressionante eles mudam inteiramente de atitude depois que descobrem que você não possui intenções de atar com eles. - ele bufou exasperado, criando um breve chiar na linha – É um grande inconveniente. Eu nem quero entrar em um relacionamento romântico com um deles. Alfas não me atraem dessa forma.

Alfas não me atraem dessa forma”.

Novamente, uma linha particular daquele jovem mestre foi como uma isca que prendeu-se nele e o fez ser puxado por uma força estranha.

Aquele cara era um ômega que não se sentia atraído por alfas. Huh… Interessante.

A maioria dos ômegas que queria morar com ele se sentia atraído por alfas e o queria apenas como o guardião. Era curioso ver que aquele jovem mestre tinha uma orientação sexual diferente e ele tinha que reconhecer que algo naquela declaração atiçou uma faísca de interesse nele. Um ômega que se sentia atraído por outros ômegas. Era como o caso dos seus pais.

– Deixe-me ver se eu captei. - ele respirou fundo, apertando o ponto de encontro entre o seu nariz e a sua testa e fechando os olhos. Aquilo estava seguindo uma direção cada vez mais imprevisível e conturbada e ele precisava de um tempo para fazer algumas notas mentais. - Você é um ômega que não gosta de alfas e betas… - ele falou lentamente – E a sua reclamação sobre os betas é de que nós somos muito arrogantes sobre o nosso tipo.

Ao dizer isso, o que Gilbert quis implicar foi que ele estava basicamente dizendo que os ômegas eram o único tipo que prestava ao mesmo tempo em que condenava os betas exatamente por fazerem isso e aquilo não fazia sentido algum.

– Precisamente.

Ignorando por completo quaisquer críticas implícitas, essa foi a resposta tranquila e instantânea do jovem mestre.

Que diabos.

– Você vai mesmo ignorar a enorme contradição no que você acabou de dizer?!

– Que contradição? – ele indagou em um tom confuso. Confuso.

URGHHHHHHHHHHHHH!

– Esquece, esquece! – ele agitou o rosto velozmente para os lados em um tom de dispersão - Escute, aristocrata, eu ainda não entendi o ponto mais importante. Você esteve me xingando desde que eu atendi esse telefone. Por que exatamente você quer comigo?

– Oh, essa é uma boa questão. Por meio da senhorita Elizaveta, eu soube que você veio de uma família de ômegas.

Ah, então era isso. O jovem mestre era um ômega que queria ser bajulado e pensava que ele, Gilbert Beilschmidt, como o único beta em uma família de ômegas, era uma espécie de sábio milenar com uma bondade e paciência inesgotável que era como um padroeiro para os ômegas indefesos.

No fim das contas, havia um ponto em que ele se igualava a outros ômegas que o senhor Beilschmidt havia conhecido. Ele não sabia dizer se aquilo era um alívio, uma decepção ou ambos.

– Sim, eu sou. - ele grunhiu de qualquer modo, indisposto a levar aquilo adiante. – E daí?

– Deve ter sido um verdadeiro inferno.

U-hum, o típico discurso de que deve ter sido maravilhoso viver cercado de seres tão angelicais e… Espera. Quê?

Essa foi a primeira vez em seus vinte e três anos de vida em que Gilbert Beilschmidt ouviu alguém falar da sua família daquela forma.

Ele definitivamente estava interessado em escutar mais.

– Quê?

– Eu estou enganado? – indagou o aristocrata de novo, usando aquela voz de quem sabe a resposta para a própria questão.

– Não, mas… - ele inspirou e umedeceu seus lábios. Embora o seu sentimento predominante fosse de espanto, ele também estava meio deslumbrado com o que estava ouvindo.– Eu não imaginei que você diria isso. Tipo, as pessoas sempre falam que deve ter sido fantástico ser criado por uma família composta apenas por ômegas…

– Essas pessoas são estúpidas. - foram as palavras impiedosas e diretas do jovem mestre que, por mais malignas que fossem, geravam uma satisfação particular em Gilbert. Ele nunca tinha chance de escutar algo que coincidisse tanto com os seus próprios sentimentos sobre essa questão e foi como se o jovem mestre estivesse falando tudo aquilo que ele diria se não fosse apegado demais à sua família para ofendê-la a torto e a direito. – Ômegas exigem constante cuidado e atenção. Eu não suportaria viver com um deles, quanto mais com uma família inteira.

– Eu pensei que você ômegas fossem o melhor tipo do mundo para você?

– Quando eu disse isso?

– Bom, jovem mestre, essa foi a minha conclusão depois de você ter vindo com todo aquele papo sobre como alfas e betas são horríveis e ser um ômega é o ômega!

– Você está enganado. Eu não penso que os ômegas sejam superiores aos betas e alfas e eu não fiz essa colocação em nenhum momento. A meu ver, todos os tipos possuem os seus traços detestáveis e são insuportáveis de formas diferentes. Eu aprecio ser um ômega para ser bajulado por alfas e betas. Todavia, eu odiaria ter a companhia de um ômega, sugando a atenção e energia que deveria ser dedicada a mim e sei como nós somos trabalhosos quando estamos em nossos ciclos.

– Er… Você ainda está tentando me convencer a ser seu colega de quarto? – Gilbert precisou perguntar – Porque eu estou seriamente confuso em relação a isso.

– Eu estou. - vindo dele, a segurança daquela resposta nem era mais surpreendente.

– E qual é o seu argumento?

– Se você conseguiu sobreviver dentro de uma família de alfas, você deve ser um dos poucos indivíduos nesse mundo com capacidade de aguentar a convivência comigo, não passando a nossa relação para uma esfera sexual.

– Certo, legal, e o que EU ganho nisso?

– A minha companhia. Eu sou um indivíduo muito agradável.

Essa legitimamente apanhou Gilbert de surpresa e ele quase se engasgou com o acesso de risos que subiu pela sua garganta, distribuindo-se com tanta força pelo seu tórax que ele precisou se apoiar na mesa do telefone para não cair no chão de tanto rir.

– Pfff! Céus! Eu não estava preparado para essa! Que droga, jovem mestre! – ele exclamou com o fôlego que conseguiu reunir, rindo como se nunca mais fosse parar.

– Eu não entendo o que há de risível nas minhas palavras.

Esse comentário logicamente apenas aumentou a duração da explosão de risos de Gilbert Beilschmidt, fazendo com que ela se estendesse a todo vapor.

—Você?! – ele falou entre risos em um tom cujo espanto exagerado tinha uma óbvia intenção de deboche. – Agradável?!

– Hmpf. Pois bem. - o aristocrata mostrou-se resignado. – Eu creio que as minhas qualidades não foram devidamente apresentadas, o que está levando você a esse equívoco grosseiro de que eu não sou uma pessoa agradável. Sendo assim, eu creio que posso exibi-las mais claramente, contando a minha história.

– Eu não quero ouvir a sua história! – ele protestou, mas foi interrompido de maneira muito conclusiva e firme.

– Em que parte da minha sentença você ouviu uma interrogação? – foi a (inacreditável) pergunta do aristocrata que aproveitou-se do silêncio que foi resultado pelo queixo caído de Gilbert para iniciar a sua narrativa sem delongas – Prosseguindo, eu nasci em uma manhã chuvosa do mês de novembro em um hospital particular…

A história do aristocrata levou duas horas e meia para ser concluída e, por alguma razão, Gilbert não desligou o telefone até o fim dela.

Sinceramente, ele só considerou essa alternativa bem no ínicio dela, mas à medida em que o jovem mestre, cujo nome era Roderich Eldestein, foi falando, ele foi realizando que até que a biografia daquele jovem mestre tinha seus pontos interessantes e inesperados. E nisso, ele foi prestando mais e mais atenção nela, afundando gradualmente na narração, imergindo de tal modo que a sua conclusão o deixou ligeiramente atordoado, como se ele estivesse despertando de um sonho.

A despeito da constante e calma indiferença da voz do outro lado da linha, Gilbert realmente foi envolvido pela história peculiar e repleta de comentários espirituosos e singulares do seu personagem principal e narrador, experienciando de leve uma série de sentimentos diferentes naquelas horas, como se estivesse no lugar dele em todas as situações que ele apresentou com aparente descanso. Ele riu, praguejou, falou alguns “Que dose, cara.” verdadeiramente sentidos, suspirou, revirou os olhos, bufou… Até que finalmente o Roderich parou de falar por uma série particularmente longa de segundos e como se tencionasse quebrar o silêncio de espera que se estabeleceu, ele concluiu com um “Esses são os meus pontos e eu creio que nós precisamos nos despedir por aqui.”, levando Gilbert a perceber que não era como se eles estivessem em um telefone entre amigos, um encontro ou algo assim. Aquela ligação tinha um propósito e, tecnicamente, a intenção dela não era criar um enlace entre os dois. Era só uma ligação de outro ômega que ele tinha que dispensar e que logo procuraria por outros colegas de quarto.

Ele estava ciente disso. Era normal. Ainda assim, foi um pouco lamentável ter que desligar aquele telefone, sabendo que a partir daquele instante, estava oficialmente encerrado o seu momento de interação com o jovem mestre. Gilbert Beilschmidt voltaria aos seus dias comuns e não encontraria um ômega, ou melhor, qualquer pessoa independentemente de tipos, com aquela personalidade do jovem mestre e ele permaneceria dispensando os ômegas pelo mundo à fora e procurando por um alfa ou beta relativamente legal parar morar com ele. A conversa com o Rod havia sido intensa, porém não existiam motivos para que eles voltassem a ter contato, sendo melhor para ambas as partes que eles não prolongassem suas comunicações, visto que mal-entendidos poderiam surgir de um aprofundamento da sua ligação. O Rod estava procurando por um lugar para morar e Gilbert não queria que ele confundisse o surgimento de uma maior intimidade entre os dois como uma autorização para que ele viesse morar na sua casa. Ademais, o Rod ficaria tão revoltado se o Gilbert causasse uma impressão errada dessas e o constrangesse desse modo que eles nunca mais se falariam nem se pudessem.

Bom, sinceramente, era uma droga, mas o que se poderia fazer? Certo que o Rod era engraçado, extremamente direto e franco, único, interessante e fascinante de um modo especial, mas ele era um ômega e Gilbert Beilschmidt não voltaria a morar com ômegas. Não havia jeito.

Por mais que o ômega tivesse o deixado um pouco, apenas um pouco tentado quanto a hipótese antes fora de consideração.

Em sua defesa, na primeira noite após essa conversa, Gilbert não levou a sério o peso que se alojou em seu peso e a ansiedade que se instalou dentro dele após desligar o telefone. Okay, então ele havia conhecido um ômega que era extraordinário em todos os sentidos da palavra e ele estava meio impressionado com isso, constatando com algum espanto e alarme que aquele jovem mestre tinha uma personalidade que… Bem, fazia o seu tipo.

Mas grande coisa! Impressões são impressões. Elas são passageiras e fugazes. Embora no momento, ele estivesse contendo fortemente o seu impulso de ligar para a Lizzy e dizer para ela que o aristocrata deveria visitá-lo imediatamente, ele certamente esqueceria aquela estória em pouco tempo e riria dos absurdos que se passaram em sua cabeça. Ah, cara. Ele um dia riria tanto daquela estória. Definitivamente! Há, há, há!

Certo, talvez não em um dia, mas quem sabe em dois. Talvez em três. Cinco era o número da sorte!

Uma semana transcorreu antes que Gilbert se rendesse ao fato de que ele estava com uma ligeira queda por aquele aristocrata pomposo e que se ele não confrontasse aquilo cedo, ele estaria seriamente ferrado.

Essas coisas acontecem! Às vezes, falar com uma pessoa pela primeira vez, gera esse tipo de efeito sobre nós. É o charme do novo ou algo assim. O jovem mestre tinha uma personalidade marcante e surpreendente. Era normal que ele deixasse Gilbert atraído em uma primeira impressão por telefone. Sem razões para se preocupar. Estava tudo bem. A situação era contornável. Ele falaria para a Lizzy marcar um encontro pessoal entre ele e o aristocrata na frente da biblioteca da faculdade pela manhã e as suas expectativas iriam se desmanchar como um analgésico dentro de um refrigerante.

Ao ver o Roderich pessoalmente, o fascínio dele iria escorrer por água abaixo. Dessa vez, ele estava consciente e preparado para olhar para o jovem mestre e perceber que ele não era tudo aquilo que ele estava pensando. Um encontro pessoal era tudo que ele necessitava para superar aquela queda normal…

Ou foi o que ele pensou e murmurou para si mesmo, encarando o chão até que uma voz familiar convidasse os seus olhos a subirem.

– Olá. – disse um cara de óculos, usando trajes elegantes e cinzentos e um cachecol vermelho, o qual era a figura mais sexy e parecida com um super-model que Gilbert já havia visto no mundo real e de perto. Enquanto os olhos de seu expectador se arregalavam e sua boca sofria severas dificuldades em encontrar uma posição permanente, o cara atraente fez uma pequena reverência para cumprimentá-lo. - Você deve ser o senhor Beilschmidt.

DROGA.

QUE COISA INJUSTA. O Rod não deveria ser tão fisicamente atraente! Ele não estava contando com essa e agora toda a sua determinação em negar a sua atração por ele estava tão dispersa quanto os seus olhos que seguiram várias rotas diferentes e aleatórias com o propósito de fugirem a todo custo do aristocrata à sua frente.

O Rod não deveria ficar tão bem com aquele cabelo castanho escuro e pomposo que só funcionava nele e na nobreza do século dezenove! Ele não devia ter aquele rosto com traços harmoniosamente dispostos, aquele olhar de um azul muito profundo, aquele sinal que chamava atenção para a sua boca, aquelas pernas longas que o deixavam alguns centímetros mais alto do que o Gilbert e aquele porte tão gracioso e imponente em simultâneo. Aquilo era a prova de que o universo está fadado ao caos e composto de elementos estranhos que nunca serão plenamente compreendidos pelos homens. De todas as aparências que ele podia ter, ele devia ser logo um super-model com um jeito ligeiramente nerd que totalmente fazia o tipo do Gilbert. Era uma palhaçada.

Droga, droga, droga.

– Sim, claro! O primeiro e único! – ele respondeu, recuperando-se de seu choque inicial e erguendo os punhos em entusiasmo flamejante. Ele não ia mostrar o furacão interno que estava acontecendo naquela hora. Ele tinha uma grande apresentação a performar! – O prazer é sessenta por cento seu e quarenta por cento meu!– ah, cara, aquilo era ótimo! Ele havia dominado a conversa com uma apresentação triunfal que deveria causar, no mínimo, um “OH!” embasbacado no aristocrata.

Todavia, inesperadamente, o jovem mestre não teve um único lapso na impassividade da sua expressão. A completa falta de reação dele chegava a ser um pouco ofensiva para Gilbert e seu senso de humor formidável e injustiçado.

– Não desperdice o meu tempo desse modo. – ele exigiu, confrontando o seu potencial colega de quarto diretamente. – Eu sei que você me chamou até aqui para me rejeitar pessoalmente e deixe-me dizer que eu me recuso a fazer parte de um papel tão ridículo. O meu orgulho não permitiria uma rejeição vinda de você. Eu me dispensarei por conta própria. Adeus.

Concluído esse pequeno monólogo, ele deu as costas para Gilbert Beilschmidt e começou a andar na direção oposta, como se os seus negócios estivessem resolvidos.

Hã? Quê? Como? Havia acontecido mesmo o que ele pensava que acontecera? O Roderich o cumprimentou, dispensou-se por conta própria e estava indo embora? Wow! Aquilo era praticamente a versão aristocrática do plano “Olá”, “Desculpa aí” e “Tchau” que Gilbert costumava usar!

– Ei, calma aí! - Gilbert berrou, tendo uma onda de alívio quando notou que aquilo fora suficiente para que o jovem mestre se detivesse no ponto onde estava e se voltasse para ele, exibindo alguma curiosidade quanto àquela interrupção enfática, o que dava a entender que ele não estava completamente preparado para ela. – Por que diabos você está tomando essa decisão como se ela fosse culpa minha?! Eu, literalmente, não disse nada!

– Desnecessário. Eu sei o que você iria dizer. - ele foi ríspido e seco na sua gélida resposta. Além disso, ele parecia um pouco seguro demais em sua convicção no que Gilbert tinha a dizer.

– Bom, surpresa, Rod! – ele retorquiu exaltado, abrindo os braços extensivamente. – Você nem sempre acerta o que as pessoas estão pensando! Você não é um telepata. Bem-vindo ao mundo real!

– Oh, o que você está alegando é que o senhor me convidou aqui para dizer que nós poderemos viver juntos e que você está ansioso pela minha companhia? – ele fez essa indagação sarcástica, usando o seu clássico timbre de pergunta retórica, traduzido em “eu-sei-o-que-você-vai-dizer-e-não-tenho-dúvidas-disso-eu-não-estou-fazendo-uma-pergunta”.

Aquilo era tão irritante. Digo, tudo bem. O plano inicial de Gilbert era rejeitar a proposta de que eles morassem juntos. No entanto, era chato que ele nem houvesse dado uma brecha para que Gilbert pensasse no assunto! Quem ele achava que era para dizer a Gilbert o que Gilbert iria dizer?! Se ele fosse rejeitá-lo, ele teria o feito por conta própria! Ele não queria dar a satisfação de simplesmente confirmar o que o Rod havia deduzido que ele faria! Agora nem era só uma questão de “Eu queria passar mais tempo com ele ~” e “Caramba, eu preciso trazer esse cara atraente para o meu quarto”. Era uma questão de honra pessoal!

Ah, é?! O Rod achava que sabia todas as respostas, huh?! HÁ! Ele ia ver que estava muito enganado! Ele teria que passar por um longo e árduo treino nas montanhas se quisesse adquirir um terço da capacidade de percepção necessária para adivinhar os movimentos de Gilbert Beilschmidt.

Essa foi a última gota em um cálice de sentimentos em ebulição e Gilbert finalmente reagiu a elas. Com os punhos cerrados, os traços do rosto retorcidos e os olhos ardendo em determinação, ele berrou “SIM, EU VOU!!!” com tanta força que fez Roderich recuar alguns passos.

– Hã? – foi o som baixo e confuso do aristocrata. Seguindo-se a isso, Roderich ficou com a boca entreaberta e um andar ligeiramente cambaleante, como se estivesse buscando o seu senso de equilíbrio de novo após uma mudança radical na gravidade da Terra. Pelo visto, ele não estava pronto para essa! Há!

– Você me ouviu… - ele inspirou e expirou algumas vezes para diminuir a temperatura da sua indignação e ele se acalmou um pouco. Por outro lado, a sua resolução manteve-se firme e forte, assim como a forma com a qual os seus olhos encravaram-se nos do Rod. – Vamos morar juntos, seu nerd. – ele praticamente murmurou, reunindo aquela convicção dentro de si.

O Rod piscou repetidamente. Repetidamente. Havia nos seus olhos confusos, um brilho inocente e quase indefeso similar ao de uma criança que não entende o que fez de errado para receber o grito dos seus pais.

– … Eu não compreendo. - ele finalmente conseguiu dizer em um sopro de voz que expressava um atordoamento de propoções inimagináveis.

O que havia de tão incompreensível naquilo?

– O quê?

– Por que motivo você quer morar comigo? - ele perguntou e assumindo um ar mais desconfiado e natural ao seu temperamento, ele iniciou um interrogatório agressivo – O que você tem a ganhar com isso? Dinheiro? Poder?

Sério?

SÉRIO?!

– Por que você precisa transformar tudo em uma teoria conspiratória?! – Gilbert berrou frustrado, pondo as mãos nos dois lados da sua cabeça como se ela pudesse voar do seu corpo se ele não a segurasse.

– É claro que eu devo suspeitar de uma decisão como essa! Se você está tão ofendido pelas minhas suspeitas, justifique-se!

Porque você é um cara com uma personalidade cativante ao seu modo estranho, qualidadesinteressantes e você é, tipo, super-hiper-mega-atraente, então eu não consigo ter racionalidade o suficiente para ver como a minha ideia será péssima a longo quando eu estou sendo distraído pela sua aparência e quando a minha maior vontade é de agarrar a sua cintura e pressioná-lo contra a parede mais próxima para beijar você até que você perca o fôlego, pois a minha cabeça não está funcionando e eu realmente estou fascinado com você, por mais que você possa ser bastante chato em alguns momentos. Eu estou chegando ao ponto de ver até os seus lados chatos como algo participa na construção do seu lado original e isso é idiota, eu sei, mas ao mesmo tempo, é muito difícil conter esse tipo de coisa e eu estou confuso e estressado, mas eu estou tão interessado na sua figura nobiliárquica que viver com você é uma ideia tentadora demais para que eu consiga pesar as consequências disso. E também porque…

– Porque, jovem mestre, quando nós começamos a morar com alguém, nós podemos nos desapontar ao conhecermos melhor a pessoa, mas você? Eu espero o seu pior e se eu me surpreender, provavelmente será com qualquer coisa boa que apareça na nossa convivência!

Ele foi (parcialmente) sincero. Afortunadamente, a sua honestidade (parcial) bastou para convencer o Rod.

– Surpreendentemente, você tem um bom ponto. - ele falou impressionado, pondo uma mão sobre o queixo.

– Como eu respeito as dificuldades de compreensão dos ignorantes, eu vou ignorar o seu “surpreendentemente” porque eu imagino que você ainda não tem conhecimentos o suficiente para saber quão geniais e certos são os meus pontos em uma base diária, jovem mestre. - ao se deparar com o Rod abrindo a boca com um ar ofendido, ele teve certeza da eficiência da sua gloriosa réplica implicante. Entretido e rindo brevemente, ele interrompeu o Rod antes que ele expressasse o seu mal-humor, erguendo uma sobrancelha e pondo as mãos nos bolsos da calça para perguntar de forma clara e direta. – Então? Nós estamos de acordo?

– Sim, eu trarei os meus pertences para o seu quarto amanhã. - ele anunciou em um contentamento discreto e encantador, com apenas a sombra de um sorriso, fazendo Gilbert precisar atiçar seu mecanismo de repressão imediatamente.

“Não pense besteiras, não pense besteiras. Ele vai estar no seu quarto porque você mora em um quarto. A sua casa inteira é um quarto. É uma questão de semântica.”

– Combinado, Rod! Nós nos vemos amanhã!

Ele já estava acenando e se maldizendo internamente enquanto perguntava para si mesmo o que diabos ele havia feito e como ele havia se permitido cair – na verdade, praticamente se jogado por livre e espontânea vontade – em uma armadilha tão óbvia quando foi detido por uma questão milagrosamente afável do jovem mestre.

– Você não gostaria de tomar um café comigo agora?

Hã?

–… Huh? O que é isso? – ele interrogou, franzindo as sobrancelhas, sentindo-se perdido diante de uma requisição inesperada como aquela. Ele estava tão perplexo que nem sabia como deveria se sentir em relação a ela. – Uma parte da etiqueta da corte ou algo do gênero?

– Não, seu tolo. Eu apenas desejo um pouco mais da sua companhia essa tarde. - provavelmente notando a interrogação gigante que havia se espalhado por toda a face de Gilbert, ele indagou em legítimo assombro e atordoamento. – Por que você está tão espantado?

– Ei, não me culpe por estar espantado! – ele se defendeu com toda razão – Eu pensei que você estava vindo morar comigo porque não tinha opções. Você não disse que não gostava de betas?!

Será que ele faria uma negativa disso? Ele havia mudado de ideia? A sua percepção de mundo foi alterada em uma semana???

– Não, eu disse que não gosto dos traços de todos os tipos em geral.

Oh, Rod. Aquele cara era o carisma em pessoa.

– Okay, miss Simpatia, isso não explica nada. – Gilbert fez questão de constar, exigindo com um olhar fixo e severo que ele não fizesse rodeios e rodeios para acabar não respondendo uma coisa sequer.

– Um dos seus defeitos, senhor Beilschmidt, é que você faz muitas presunções antes de saber dos fatos. A verdade é que eu poderia morar sozinho se eu realmente precisasse, eu devo esclarecer. Os meus pais me recomendaram fortemente a morar com alguém, mas se eu não encontrasse um colega de quarto do meu agrado, eu poderia me instalar em um apartamento de solteiro. Compreenda que eu estou relatando isso porque não quero que você cometa um equívoco e pense que eu estou indo para o seu quarto por desespero. - ele realçou a palavra “desespero” com um desprezo pungente que contorceu momentaneamente os cantos da sua boca e causou um revirar em seus olhos que demonstrava que ele achava essa imagem mental absurdamente patética. – O motivo pelo qual eu estou indo morar com você, Beilschmidt, é porque eu tenho expectativas positivas em relação a isso. Há algo em você que eu acho intrigante e eu creio que observar a sua rotina será interessante como assistir a um documentário sobre a vida selvagem.

Ah, não.

Agora o coração de Gilbert estava batendo um pouco mais forte.

Ignorando-se a parte sobre um documentário sobre a vida selvagem, o que restava é que o Roderich também tinha algum interesse nele. Era um interesse similar ao que ele deveria ter pelo Animal Channel, mas ainda assim… Wow. Ele não conseguia reduzir a frequência dos batimentos do seu coração quando relembrava daquelas palavras, quando processava o seu significado e as suas remotas possibilidades, e quando era forçado a enxergar o jovem mestre apresentando uma amistosidade e alegria comedida que enchiam o seu peito de algo morno, terno e arriscado.

O Rod estava interessado nele. Ele estava interessado no Rod. O potencial seria maravilhoso se os seus interesses não fossem de naturezas bastante distintas e se a perspectiva de sair com ele não fosse absurda para os lados.

Era doloroso ver quão perto e quão longe eles estavam de terem uma chance juntos.

– Oh, não se preocupe, Rod. Eu sei que é impossível não me amar. - ele tentou brincar, torcendo para que o Rod não detectasse o nervosismo que escapou em sua risada.

Obviamente, ele não noticiou e mais uma vez mostrou a sua boa disposição de forma moderada e sem alterações.

– Eu espero que nós possamos nos dar bem, senhor Beilschmidt. - foi o seu comentário final sobre essa questão.

Dito isso, o Rod virou-se e fez um aceno para que ele o seguisse, o que foi de certo modo bom, pois Gilbert Beilschmidt permitiu-se mostrar a sua vulnerabilidade para as suas costas.

– Eu também espero, Rod. – ele falou, grave, sério e com uma camuflada apreensão, sabendo que o insensível do aristocrata jamais detectaria os sinais sutis das suas verdadeiras emoções, quando sequer estava olhando para o rosto dele. Ah, droga. Gilbert estava tão, tão ferrado. – Boa sorte para nós.

“Principalmente para mim.” - ele pensou.

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Notas finais do capítulo

Eu estou um pouco desanimada como escritora pois eu estive recebendo pouquíssimo feedback ultimamente, mesmo que eu trabalhe arduamente. Se vocês puderem deixar alguns reviews, seria ótimo porque apesar de eu brincar sobre esse tipo de assunto, eu estou começando a ficar realmente desmotivada.