Alderann escrita por Anatnasoicram


Capítulo 4
Capítulo 4 - Celéstiah


Notas iniciais do capítulo

Desde cedo, Celéstiah tinha o dom de curar as pessoas. Muitas pessoas vinham de vários lugares até sua vila para receber os devidos cuidados com ela e sua mentora, uma velha druida conhecida apenas como Mah. Um dia, uma jovem de cabelos longos e ruivos foi trazida com ferimentos e queimaduras em várias partes do corpo. Aparentemente, algo explodiu bem na frente dela, e logo ela soube o que era ao ver suas armas destroçadas nos dois coldres. Ela sabia que usuários de pó-de-dragão eram em sua maioria criminosos, mas assim mesmo ela salvou a jovem ruiva – que a sequestrou em seguida. Levada como refém, Celéstiah acabou por ganhar a confiança dela com o tempo, mas em vez de tentar fugir e voltar para sua vila, continuou seguindo sua captora – não queria admitir, mas não sabia mais como voltar para casa.



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Era primavera. O ar perfumado soprava em seus curtos cabelos loiros e fazia esvoaçar seu vestido enquanto colhia as ervas necessárias para realizar seu ofício. Cantarolava alegre e rodopiava serelepe entre os arbustos, parando aqui e ali para cheirar uma ou outra flor. Via os pássaros voando em cantoria, e quis fazer o mesmo – Uma pena eu não ter asas, pensou.

Era hora de voltar. O sol brilhava forte, mas a temperatura ainda era agradável. O pequeno vilarejo onde morava ficava perto dali. Com a cesta cheia de todo tipo de erva, fruta e tubérculo medicinal, a jovem caminhava a passos leves, descontraídos, felizes. No entanto, ao ver uma caravana aproximando-se da vila, apressou o passo. Era raro ter comerciantes passando por lá, e ela não queria perder a oportunidade de ver o que tinham para vender. Desde criança, ela se encantava com as novidades trazidas das cidades e de lugares distantes. Joias, utensílios, brinquedos, perfumes... o que poderiam ter trazido? Ela adorava essas surpresas tanto quanto um aniversariante na expectativa de abrir seus presentes embalados. Certamente aquele era um dia bastante feliz para ela.

Quando finalmente chegou, estranhou. Havia muita gente indo em direção ao humilde e único templo do vilarejo, e logo correu para saber o que estava acontecendo. A jovem era aprendiz de curandeira, e sabia que poderiam precisar dela e das ervas medicinais que acabara de colher. Parecia que a vila inteira saiu de casa para ver o que estava acontecendo. Ao chegar, tocou no ombro do aldeão mais próximo, um homem calvo e de rosto enrugado, castigado pelo sol e pelo tempo:

– O que houve aqui, senhor? – ela pergunta, mesmo temendo a resposta.

– Parece que os mercadores trouxeram alguém ferido, irmã Celéstiah – responde o homem, tentando abrir caminho entre as outras pessoas – A Matrona mandou procurar por você, inclusive.

– Oh deuses, estou indo! – ela se esgueira pela pequena multidão, na direção da entrada do templo, ouvindo entre as conversas paralelas coisas como “acidente”, “assalto” e “pó-de-dragão”. Ao finalmente chegar ao salão principal, onde realizavam-se os sermões, notou que estava completamente tomado. Mercadores em suas roupas notoriamente finas tentavam explicar o que havia ocorrido aos aldeões, e estes escutavam e comentavam entre si. Mais de uma vez, ouviu a palavra “criminosa” sair dessas conversações. Evitando a multidão e atravessando o grande recinto próxima às paredes, ela chega a uma passagem guardada por duas sacerdotisas, trajadas em túnicas brancas cobrindo-as dos pés à cabeça. Ao reconhecerem Celéstiah, fazem sinal para que ela se aproxime, um tanto preocupadas.

– Celéstiah, onde você esteve? Mah precisa de sua ajuda! – diz uma delas, num tom de urgência

– Ela está na sala-da-cura com a mulher – completa a outra.

Celéstiah apenas acena com a cabeça e passa por elas. Corre apressadamente para o local dito pelas sacerdotisas, no fim do corredor onde estava. Como única aprendiz de curandeira do templo, era seu dever auxiliar a velha Matrona em todos os casos. Começou a se arrepender de ter se demorado mais do que devia colhendo as ervas, mas seguiu em frente e abriu a porta que dava para a sala-de-cura. Esse aposento, como o nome sugere, era especialmente preparado para o nobre ofício de curar pessoas: havia um grande armário aberto, com vários frascos de poções, unguentos, óleos e todo tipo de substância alquímica possivelmente útil para curar enfermidades – ou envenenar de morte, dependendo da dosagem –, alguma prateleiras e ganchos onde podia-se ver ferramentas e instrumentos quirúrgicos capazes de dar inveja a um torturador profissional e um leito de madeira com engenhosas engrenagens, que Celéstiah sabia serem capazes de faze-lo girar tanto horizontal quanto verticalmente, deixando o paciente em posição vertical ou inclinada. Este mesmo leito também contava com algemas para braços e pernas – afinal, debater-se durante processos quirúrgicos era altamente contraindicado para o paciente, mas a maioria não se importava com isso e continuava se debatendo. Desnecessário dizer, um torturador profissional também sentiria inveja ao ver isto.

Deparou-se com uma jovem ruiva e de cabelos bastante longos deitada inconsciente e pálida neste leito, seu sobretudo queimado e rasgado pendurado numa prateleira e seu corpo desnudo com o torso queimado e ferido em vários lugares. A Matrona, uma mulher já idosa, cabelos brancos presos num coque, costas curvadas pelo tempo numa corcunda, vestida numa ensanguentada túnica não mais branca e num ensanguentado avental ainda menos branco, estava de pé sobre um banco, atrás do leito, tentando tratar os ferimentos da jovem ruiva como pode. Assim que percebe a chegada de Celéstiah, ela põe os instrumentos sobre uma prateleira próxima e desce do banco com certa dificuldade.

– Ela perdeu muito sangue – diz a Matrona, num tom grave – Fiz o que pude.

– Eu... vim o mais rápido que pude, Mah...

– Não poderia estancar o sangramento e preparar os instrumentos e poções ao mesmo tempo.

Celéstiah engole em seco, angustiada. Pensou em falar algo em sua defesa mas acabou desistindo.

– Uma curandeira tem responsabilidades, Celéstiah. Uma delas é disciplina. Ela poderia ter sido salva se eu tivesse auxílio adequado.

– Mas Mah...

– Não foram os ferimentos que causaram a morte dela, Celéstiah. Foi a sua falta de responsabilidade.

Inexplicavelmente, o local escurece aos poucos mesmo com as lâmpadas a óleo ainda acesas. A jovem aprendiz sente seu peito apertar de tristeza ante as duras palavras de sua mestra. Olha para a mesa onde está a ruiva e a vê mexer os braços e pernas levemente. Quis falar para a velha Matrona mas...

– Você é uma decepção, Celéstiah. Nunca poderia contar com você para cuidar das pessoas dessa vila. Você não tem forças para carregar o peso de uma morte em seus ombros. Você...

A mulher levanta-se do leito, pondo a mão nas feridas ainda abertas. Olha para ela e sorri, um sorriso assustador, caminhando em sua direção. Celéstiah olha para a velha, e aponta para a direção da mulher, horrorizada.

– ...matou aquela mulher. Um crime diante de mim e diante dos deuses.

– Isso mesmo, Celi – diz a ruiva, com uma voz gorgolejada pelo sangue em sua garganta – Você agora é uma criminosa!

– Não! Eu não sou criminosa! Ela está viva! Mah, olhe para ela!

– Criminosa! Você a matou!

– Criminosa! Você me matou!

– Não! Não! NÃO!!!

– Celi?...

– AHH!?!

– O que houve?!

Celéstiah abre os olhos e levanta-se, ofegante e suando frio. A luz do dia passando por entre as folhagens de uma árvore brilha em seus olhos por alguns instantes, fazendo-a piscar algumas vezes. Observa os arredores, desorientada e ainda assustada. Está num descampado, aparentemente abrigada à sombra de uma macieira. Ao seu lado, a mesma ruiva que estava em seu pesadelo, encostada no tronco da árvore e comendo uma maçã. Está sem o sobretudo, o ombro ainda com o curativo feito alguns dias atrás. Celéstiah fecha os olhos e suspira de alívio.



– Pode relaxar agora... – Ishtah se aproxima, procura em sua mochila por uma outra maçã e a oferece – coma um pouco, estaremos de partida daqui a pouco.

– ... tudo bem... eu só... – Celéstiah começa a soluçar. Ishtah expira, revirando os olhos

– Tá, tá bem, que seja. Vou limpar minhas armas pela centésima vez essa manhã, e quando eu terminar você vai engolir essa maçã e seu choro para irmos logo embora, entendeu?

– D-desculpa, Ishtah... – os grandes e lacrimejantes olhos da jovem de cabelos curtos fazem pouco mais do que levantar uma das sobrancelhas de Ishtah, ao menos na aparência. Ela pega a maçã e a morde, sem muita vontade e resignada, entre soluços.

– Assim é melhor – diz a ruiva, tirando as duas pimenteiras do coldre. Uma delas, parcialmente destruída, é colocada de lado, junto à mochila – droga, preciso de mais pó-de-dragão e aquele era o único lugar que eu poderia conseguir sem ter de...

Faz uma pausa. Retira as balas que ainda restam junto com a carga de pó que as acompanha. Desmonta a arma rapidamente, checa peça por peça antes de remonta-la e recarrega-la.

– Sem ter de...? – indaga Celéstiah, após terminar de comer a maçã e soluçar.

– De ir atrás de um mago ou alquimista.

– Mago? Alquimista?

– Sim, ué. Você conhece mais alguém que saiba fabricar pó-de-dragão?

– Ahn... não...

– Foi o que pensei. Vamos, temos um mago para visitar.

Ishtah levanta-se, pondo as pimenteiras de volta nos grandes coldres de cada lado do cinto de sua calça e vestindo o sobretudo. Fecha os bolsos da mochila e estende a mão para Celéstiah, que a segura e é puxada para levantar-se. Ambas começaram a caminhar lado a lado pelo descampado, sob o sol da manhã. Celéstiah não pôde deixar de notar quando sentiu o cheiro de algumas flores, trazido de algum lugar pelo vento, e logo a lembrança daquela manhã lhe veio à mente – Mas desta vez ela caminhou em silêncio.


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