Pale (interativa) escrita por Harpia


Capítulo 6
Indesejado


Notas iniciais do capítulo

Estão presentes nesse capítulo: Maisha, Dorothy, Nicole, Anna, Kenshin, Ian e Rebeca



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Protegendo a mochila como quem protege a própria alma nos portões do inferno, Maisha deixou que Dorothy assumisse a dianteira. Seguindo-a com passos curtos, esboçava uma expressão acabrunhada ao lado dos guardas. Estava em um estado de alerta tão à flor da pele que se uma pequena rajada de vento soprasse uma mecha de seu cabelo rosa, se defenderia automaticamente com um golpe mortal. Ela parecia ser frágil, mas não era. Seus olhos taciturnos testemunharam a destruição e talvez a única coisa que a restava fosse o que ela tinha dentro da mochila.

Dorothy fez uma pequena reverência, mas Maisha não.

A líder sorriu sem se importar, afinal não era o Imperador para receber esses cumprimentos, mas mesmo assim não evitou comentar a respeito. – Já percebi que você é indomável.

Desviando o rosto para não fitá-la, Maisha fixou-se nos candelabros com velas acessas em cima dos balcões. – Nenhum ser humano é domável, somos todos autônomos. Não gosto do seu jeito de se referir às pessoas.

Dorothy pigarreou numa tentativa de censurá-la, embora fosse tão rebelde quanto Maisha, ela estava ciente de que deveriam evitar desagradar a realeza caso quisessem sobreviver em Pale. Havia até se arrumado um pouco mais para se apresentar! Entretanto, no dia-a-dia seu estilo era desleixado. Não abria mão de suas botas ou botinas, sempre vestia roupas como shorts e regatas que facilitavam sua locomoção.

Nick empinou o queixo, a expressão transtornada. – Sinto muito, não queria ofendê-la.

Maisha suspirou, preocupada com o que tinha dentro da mochila. Sentia-o grunhir e se esticar no pano, farto de ter sido escondido em um compartimento tão apertado. Doía seu coração ter que deixá-lo naquela situação. – Podemos acabar logo com isso? Estamos todos cansados, esperamos por horas ao lado de fora.

Achando justificável, a líder balançou a cabeça positivamente.

Dorothy começou. – Minha mãe era mutante e meu pai era um ex soldado de guerra. Eles sempre me deram carinho, vivia uma vida feliz e monótona até meus dez anos em que os vi serem assassinados. Minha mãe foi morta por ter sido considerada uma aberração e meu pai por ser um traidor. Foi com ódio nos olhos que a vi ser estuprada e torturada até que seu corpo desistisse por alguns homens da mafia. O pavor era grande, tomou conta de meu corpo e o medo me fez travar, eu sei que fui uma covarde e poderia tê-los defendido... – pausou para checar a reação de sua aliada, não queria causar nenhuma má impressão ou se mostrar vulnerável. – Me sinto culpada até hoje por ter não ajudado minha mãe, a culpa me corrói. Consegui fugir, mas não sei como. Vaguei pelas ruas durante dias, onde passei fome e fui humilhada até ser descoberta por outro mutante que me ajudou a aprimorar meus poderes e a luta corporal, depois disso fiz questão de matar e torturar cada mafioso da pior forma possível. O mutante que sempre me acolheu desapareceu alguns anos depois e desde então vivi só.

– Foi deixada para trás duas vezes, como você superou? – a líder indagou sadicamente. Ela a lançou um olhar furioso.

– Não superei. É por isso que estou aqui.

– Não acho que Pale seja tão ruim – tomou a ofensa para si.

– Ser um assassino não é nenhum motivo de orgulho, vocês não estão ajudando ninguém – Dorothy afirmou, em seguida se moveu em direção à saída e se retirou.

Um dos guardas encarou Nicole aguardando ordens para trazê-la de volta, mas a líder simplesmente fez um sinal significativo de que a permitia ir.

Erguendo-se do trono para alcançar Maisha, gesticulou graciosamente. – Parece que agora somos só nós duas.

– Bem, eu vim de uma família humilde, mais precisamente, meu pai era dono de um circo. Era um grande circo, algo... mágico, mas como tudo o que é bom costuma durar pouco então, o circo faliu. Fui treinada toda a vida para ser trapezista, uma perfeita ginasta e ilusionista. Fui tudo o que fiz até meu aniversário de quinze anos... – Maisha se interrompeu, hesitante. As lembranças lhe escapavam, pois ela não queria revivê-las em sua mente; pareciam uma mistura de explosões mudas em tons de aquarela que se fundiam à escuridão da imagem de um acontecimento marcante. Prometera que pelo bem de sua sanidade não as traria á tona e era isso o que faria.

– É tudo o que você tem para me contar sobre seu passado?

– Acredito que sim – ela mentiu.

– Tá. Você também está dispensada.

Nas encruzilhadas das ruas do vilarejo até a cabana dos assassinos, ela tentou se distrair com detalhes insignificantes para se manter protegida de si mesma. Ao longe, enxergava-se os blocos da fonte sendo carregados à caçamba de um veículo, para serem levados ao aterro. Em breve os substituíriam e reconstruiriam a fonte novamente. E esse era um paradigma que deveria ser levado para a vida: O que se destroí, pode ser reconstruído. Ignorando suas reflexões, ela admitiu que estava sendo poética demais. Mesmo que pudesse reconstruir o que quer que fosse, não havia remédio para trazer alguém de volta à vida, nem o mais puro dos sentimentos ressuscitava os mortos e isso era um fato difícil de conviver, mas as pessoas acabavam se acostumando.

Maisha contava com a ideia de que o tempo não curava as feridas, mas substituía memórias, parar de pensar sobre o incidente já seria o suficiente para amenizar sua angústia. Como sua vida poderia ter chegado a esse ponto? Chegava a ser engraçado com num instante a felicidade poderia ser diminuída às cinzas. Ela sacudiu a cabeça para se livrar do pensamento fixado na palavra "incêndio". Ao chegar em frente sua nova moradia, a porta da frente estava escancarada. Dorothy estava sentada no tapete, escutando música em seu Ipod. O ruído vindo de seus fones abrangiam a sala.

– Você está bem? – perguntou Maisha só por precaução.

Deu de ombros. – Faria alguma diferença se eu estivesse?

Ambas eram duas russas orgulhosas. Dorothy era uma garota calma e reservada, sendo simpática com que merecia sua simpatia, mas isso não significava que viraria amiga de quem merecia sua extroversão. Evitava ao máximo criar laços, sua natureza observativa a tornou uma pessoa muito seletiva em relação à quem a rodeava. Apesar de calada, sabia muito bem como usar as palavras ao seu favor quando quisesse, sua lábia era um dom. Se tornava arrogante quando quisesse e era teimosa, tão cabeça dura quanto Greta. Não aprendera a aceitar um "não" como resposta e o que mais a complicava é que ela não gostava de receber ordens ou ser dependente de alguém. Era a favor do anarquismo, mas não era anarquista porque seria um paradoxo e Dorothy não gostava de paradoxos. Para ser uma anaquista, precisava ser contra o Estado ou capitalismo, o capitalismo gerava o consumismo e ela adorava fazer compras. Apesar de não criar laços, era fiel ao máximo quando necessário e demonstrava seus sentimentos ou devoção com pequenos gestos, sem alardes. Não gostava de falar sobre si mesma ou de seu passado o que a fazia parecer Anna, acabando por tratar grosseiramente quem perguntasse, sua pretenciosidade era reservada a momentos em que seu ego fosse tocado. Repudiava pessoas escandalosas e intrometidas. Quando se tratava de matar, matava a sangue frio, pisava em cima de quem fosse, não tinha piedade, não pensava duas vezes.

– Você está sendo meio irracional, não fomos obrigados a vir para cá, eles estão nos fazendo um favor – disse enquanto ia para a cozinha. Checou o que tinha dentro da mochila e pulou de susto quando Dorothy surgiu ao seu lado.

– Um favor que tem um preço - acrescentou.

Rapidamente fechando o zíper, Maisha disfarçou sua atitude suspeita pegando um copo no armário e enchendo-o com água da torneira. – Você nem está tentando ser otimista.

Um grunhido ecoou pelo cômodo, ele vinha da mochila de Maisha que estava pendurada de volta às suas costas.

Desconfiada, Dorothy apontou para ela. – O que foi isso aí?

– Isso o quê? Deve ter vindo lá de fora – arrepiou-se, balanceando suas emoções para não demonstrar que estava mentindo.

– Não Maisha, esse barulho veio da sua bolsa. Me mostre agora o que você tem aí - ela tentou arrancar a mochila de suas costas.

Se debatendo contra Dorothy, empurrou-a contra o balcão e a deu um tapa no rosto. – Eu não tenho nada, nem ouse me tocar, sua estranha!

Mal houve tempo de perceber de que sua aliada conseguira tomar sua mochila e abri-la. Dentro, havia um filhote de leão. Maisha havia o nomeado de Scar e ele a conectava com o passado.

– Meu deus, você trouxe um animal selvagem para a nossa cabana! Você acha que eu vou conviver com isso? - sua aliada exclamou.

– Ele é um leão indefeso! Não vai machucar ninguém - contestou.

***

Anna e Kenshin decidiram ir dar um passeio entre o centro da comuna já que não conseguiram pregar os olhos. Mesmo que maioria dos estabelecimentos ainda estivessem fechados, as luzes estonteantes em placas de neón permaneciam ligadas. Eles não passaram pela praça onde jazia a fonte, rumaram direto para o parque onde havia um pequeno lago artificial entre as árvores. Ao invés de pouparem suas energias para a primeira missão estavam irresponsavelmente sentados no gramado observando o reflexo do que restava de uma meia-lua nas ondulações da água. Kenshin avistou uma pequena torre abandonada no meio de um campo há quilômetros e teve a ideia de apostar uma corrida até aquele ponto remoto.

– Aposto que você não me alcança – subestimou.

– Pare com essas brincadeiras – apática, Anna não se deu o trabalho de segui-lo, mas vê-lo se afastando como um borrão no campo despertou seu espírito competitivo e a fez acreditar de que ela poderia ganhar facilmente. – Espere! Você não me deu nem tempo de tentar!

Ela não se esforçou, correu sem usar a capacidade máxima de suas pernas e mesmo que se esforçasse não alcançaria Kenshin, ele era muito veloz. Óbvio que ele foi o primeiro a chegar. Antes de abrir a porta decomposta da torre, ele encostou-se na pequena escada da entrada para amarrar seu tênis. Anna entrou na frente e o aguardou para subirem a escada de pedras até o topo. Não era escuro dentro da torre, a luminosidade atravessava pequenas fendas na parede da velha construção e a atmosfera era carregada de poeira. Ao giraram a maçaneta da área exterior do topo da torre, ficaram boquiabertos. A vista panorâmica era esplêndida lá de cima. Podiam ver as veias das cidades da província de Yamanashi e o sol se erguendo no horizonte aclareando o límpido azul. Os pássaros sobrevoavam a região e a luz reinava novamente, a manhã finalmente havia chegado.

– Essa é a minha propriedade agora – a voz de Ian Hart soou atrás dele.

Anna virou-se ligeiramente. Ele estava apontando um rifle para eles. – Nós já estamos indo embora, não precisava ser tão ignorante.

– Tome cuidado com o que você fala para mim. Não quer ser minha vítima numa noite de lua cheia, não é?!

– Nós estávamos conversando civilizadamente e você me vem com essa conversa abusiva?! Vai para o inferno! – ela rebateu. Um calor interno se alastrou por seu corpo e por um milissegundo quase foi dominada pelo impulso de empurrá-lo de cima da torre.

Depois de subir a escada, Rebeca se juntou à discussão. – Nós não queremos nenhum problema, só queremos que vocês nos deixem em paz.

– Sabe... Estive pensando em ficar mais um pouco – provocativo e sarcástico, Kenshin cruzou os braços.

– Vocês não querem se meter comigo, eu garanto – ele abaixou a arma, ainda se comportando de forma egoísta e rude.

Usando de esperteza, Anna manipulou. – Vão machucar as únicas pessoas que podem ajudar vocês e trazer notícias sobre o que está acontecendo no vilarejo? Seria muita burrice.

– Eu não sei do que vocês estão falando – Rebeca tentou enganá-los. Ela mal sabia que eles haviam testemunhado da janela da cabana a hora em que Ian e Greta foram mandados para a prisão no subsolo.

– Onde está a Greta? – ele questionou, estranhando.

Ian bufou, mirando o horizonte. – Ela se separou de nós. Provavelmente está vagando pelas ruas de Pale sem ninguém desconfiar.

Kenshin pensou numa possibilidade de ela ter sido abrigada por uma dupla de aliadas.

– Então quem é você? – Anna perguntou diretamente à ruiva.

Destemida, explicou. – Uma intrusa, me atrasei na hora da seleção.

– Saiba que agora eu posso apertar o nó da corda que está em volta do seu pescoço – sorrindo, Anna ameaçou com uma metáfora.


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Notas finais do capítulo

Além das novas personagens nesse capítulo não há nada de novo, é só um capítulo de transição. As missões começarão em breve.