Branca de Niev escrita por Dark Cendrillon


Capítulo 3
Jogos do poder




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Bianca sempre foi uma jovem de temperamento forte, muito obstinada e inteligente. Às vezes um pouco dura, e quase nunca demonstrava suas verdadeiras emoções, mas sempre estava preocupada em proteger aqueles a quem amava. Maya era diferente, mas tinha uma personalidade que complementava a da prima. Foi uma criança comunicativa, uma adolescente que inspirava admiração e paixões, e se tornou uma governante que sabia jogar o jogo do poder. Se esperavam que uma mulher fosse doce, ela usava essa doçura para evitar conflitos e livrar seu reino das guerras. Se esperavam que uma mulher fosse submissa, ela influenciava seu pai para que ele estivesse à frente das decisões que ela tomava. Se esperavam que ela fosse uma esposa, uma mãe, ela se encaixava nesses papéis também. O reinado de Maya poderia ter sido um dos mais bem sucedidos de que se tem notícia, se ela e sua família não tivessem sofrido o golpe arquitetado por Francis.

Sem Maya, sem seus pais e sem o apoio dos seus súditos, Bianca endureceu ainda mais. Teve que se encaixar naquele esquema político, mas não sabia ser diplomática e sorridente enquanto fazia isso, como Maya. Apesar de temer ser envenenada, transformou o medo em astúcia, em um estado sempre alerta. Bianca não confiava em ninguém, não tinha amigos, comia e bebia muito pouco, apenas aquilo que ela sabia que era seguro. Apesar de se casar com Francis, nunca permitiu que ele a tocasse, e manteve um protesto silencioso: vestia constantemente um sobretudo preto de luto por Maya, e roupas com detalhes de roxo e branco – as cores da bandeira da antiga Wint. Se a sua história pessoal já era motivo para boatos, seu visual sempre sério, sombrio, seu corpo cada vez mais magro e seus modos arredios a faziam parecer de fato uma rainha má, egoísta e obcecada pela beleza. Dizia-se que ela passava horas em frente ao espelho admirando a própria imagem, que apesar de assustadora, era de uma beleza intrigante e inegável.

De tanto temer a rainha, a figura do rei acabou se tornando a de um homem manipulado, mais fraco e até aparentemente bom. Um homem que perdera a bela e doce esposa, que precisava cuidar sozinho da filha e que fora seduzido, talvez até enfeitiçado pela rainha má. Essa não era a história real, mas de fato quem comandava o reino era Bianca, já que ela era muito mais difícil de ser domada que Maya. Bianca exigia estar presente em todas as reuniões do Conselho e não aceitava as decisões equivocadas de Francis, dando sempre a última palavra em qualquer assunto importante. Os ataques e saques a reinos menores foram sumariamente proibidos, o que acabou com as guerras. Os grandes banquetes no palácio também cessaram, e os recursos foram investidos em melhorias para o povo. Mais de uma década depois, a vida de Bianca estava prestes a sofrer mais uma reviravolta.

– Senhores – Francis começa a se pronunciar, em uma reunião do Conselho – senhora – ele vira rapidamente, contrariado, dirigindo-se a Bianca – Estamos sob ameaça. Nos últimos anos nós estivemos longe de guerras, não conquistamos nenhum reino, não derrotamos nenhum inimigo e não usamos nosso poder bélico para nada. Sabem o que isso significa?

– Paz, é óbvio. - Bianca intervém - Aquilo que homens como você fingem que procuram enquanto investem todos os recursos na direção oposta.

– Não, caríssima esposa. Isso significa fraqueza. Aquilo que mulheres... como você, têm a oferecer. Nossos soldados não lutam há anos. Nossas armas estão velhas, defasadas. Outros reinos têm se expandido muito mais que o nosso, e se aproximam cada vez mais. É uma questão de tempo até que Ayer seja invadido. A não ser que façamos algo para reverter a situação.

Um burburinho tomou conta da sala. O perigo parecia real, mas voltar a gastar dinheiro com guerras e sacrificar soldados também não soava como o melhor caminho. Alguns conselheiros começaram a esboçar certo apoio a Francis, até que Bianca se levantou de sua cadeira e esperou, calada, até que todos também parassem de falar. Em poucos instantes, o caos se transformou em um silêncio profundo.

– Não tenho tantos anos de vida. Mas as histórias que ouvi dos meus pais, as histórias que ouvi de muitos dos senhores aqui presentes, durante a minha infância, é a de que Ayer sempre foi um reino pacífico e próspero. Um reino que só enfraqueceu quando meu pai, Ian, e meu tio, Kal, romperam as relações e o reino em si. Este rompimento nos deixou vulneráveis a impostores, a usurpadores. De fora e de dentro da família. Eu não vou tolerar outra ruptura. Eu não vou tolerar uma segunda corrente se formando neste reino. Nós temos apenas um posicionamento, um posicionamento que mesmo Ian e Kal seguiam entre si: o de usar a diplomacia, os acordos, as palavras e os contratos para manter a paz, e não as espadas.

– Bianca, querida – Francis se levanta, tentando apoiar as mãos no ombro da esposa para fazê-la sentar novamente, e é prontamente afastado – nós ouvimos seus conselhos nos últimos anos, nós acatamos algumas das suas... dicas, mas este é um assunto para homens agora, entende? Talvez você não esteja acostumada a ser contrariada, mas acho que é o momento de pararmos de ser tão gentis com você.

– Oras, francamente – Bianca ri – não finja que vocês acatam as minhas decisões porque são cavalheiros. Não finjam que todos esses anos vocês foram apenas condescendentes. Vocês aceitam as minhas decisões porque elas são boas. Porque elas funcionam. Porque nenhum de vocês lembra de uma época em que Ayer, Wint ou Niev estiveram tão bem quanto o reino que temos hoje. Vocês não deixam de me dizer não porque eu sou uma mulher. Vocês não me dizem não porque eu sou a única filha de Ian, porque eu sou a rainha e única herdeira legítima do trono de Ayer. E você, Francis – ela se vira, olhando fixamente para ele – é SÓ o meu marido.

Bianca sai da sala, deixando Francis envergonhado e os conselheiros convencidos de que o mais prudente era obedecer às ordens da rainha. Naquela noite, enquanto se preparava para deitar, ela recebeu um convite de seu marido para um encontro na outra ala do palácio. Quando se casaram, Bianca exigira uma separação completa: viviam em alas separadas e praticamente só se encontravam nas reuniões do Conselho, que aconteciam em um casarão entre os jardins da ala de Francis e o pomar da ala de Bianca.

Francis tentou alguma aproximação depois do casamento, mas desistiu de Bianca no dia em que ela ameaçou arrancar seu coração com as próprias unhas se ele invadisse seu espaço novamente. Apesar de anatomicamente improvável, ele não conseguiu ignorar a ameaça e preferiu satisfazer seus desejos carnais com amantes – nem sempre voluntárias.

Bianca aceitou o convite porque ficou curiosa, e porque achou que talvez pudesse ver a pequena Branca - que já nem era mais tão pequena assim - nos corredores da ala de Francis. Andou lentamente, observando as paredes, os quadros, o piso, e imaginou como teria sido a vida de Maya naquele palácio. Uma infância feliz, certamente, mas ela nem conseguiu chegar à maioridade por causa dos horrores que viveu depois do casamento. Teria sofrido? Teria sentido dor? Como o veneno agiu no seu corpo? Em que condições ela havia escrito aquela carta, tantos anos atrás? A rainha secou uma lágrima no momento em que chegou ao local combinado com seu marido. Encontrou uma mesa farta, muitas velas. O cheiro era bem diferente do dos seus jantares, em que ela só comia aquilo que ela mesma plantava e preparava.

– Boa noite! – Francis apareceu do outro lado da sala de jantar, empunhando uma taça de vinho e uma coxa de cordeiro. Na época em que se casou com Maya, apesar de ter uma personalidade intragável, Francis era um homem de boa aparência. Agora, depois de uma década como rei, os excessos, o estresse e a preguiça tinham deixado seu exterior mais “compatível” com o que ele era por dentro – que belo presente os deuses me deram hoje! A honra da presença da minha digníssima esposa.

– Os deuses não visitam Ayer há muitos anos, Francis. Nem eles aguentariam a sua companhia. O que você quer? – Bianca puxa a cadeira da cabeceira da mesa e se senta.

– Quero conversar com você. Acho que nosso último encontro não terminou bem – ele puxa uma cadeira da cabeceira oposta, mas recua e senta-se do lado direito de Bianca.

– Bem, eu acho que terminou exatamente como deveria. Espero que você finalmente tenha entendido qual é a sua posição, Francis. Você não é um herdeiro, você não é um rei. Você é... o marido da rainha.

– Ah, Bianca... – Francis ri – eu não sei de que mundo você veio ou que educação os seus pais te deram, mas no mundo real mulheres não governam, não importa de quem elas sejam filhas.

– Meus pais me educaram para ser uma rainha – Bianca retira uma uva do cacho e começa a rolar a bolinha pela mesa, entediada e já se arrependendo de não ter ido dormir cedo naquela noite – e para não me curvar a pessoas como você. Nem sempre as coisas acontecem como eu quero, ou não estaríamos casados, pra começo de conversa. Mas eu faço o que eu posso.

– Você parece distante. Beba uma taça de vinho – ele abre uma garrafa e coloca a taça diante de Bianca. Recebe de volta um olhar irônico, desconfiado, o olhar de alguém que jamais aceitaria alguma coisa vinda dele – Por que você é sempre tão arredia? Toma, fique com a minha taça, eu bebo essa – Francis bebe um gole do vinho que tinha acabado de servir – viu? Puríssimo, e delicioso.

– Por que você não vai direto ao ponto, Francis? O que você quer?

– Quero paz. Quero uma esposa. Nós tínhamos um acordo, Bianca, você aceitou casar comigo!

– Eu aceitei te ajudar a reunir Wint e Niev através de um casamento. Talvez os últimos treze anos tenham deixado a sua memória comprometida, mas você não me deu opções. Você ameaçou matar a sua filha.

– É, isso já tem muito tempo. Não faz mais diferença. Mas eu preciso do seu apoio. Preciso que você pare de fazer esses discursos pacifistas que podem até impressionar os velhos do Conselho, mas não afastam nossos inimigos de nós. Você precisa agir como uma boa esposa e me apoiar! A Maya era muito boa nisso, mesmo quando ela não gostava, ela ficava quietinha. Bem quietinha – ele sorri, maliciosamente.

– Canalha! – Bianca cospe no rosto de Francis, que se levanta, nervoso, se vira e limpa o rosto com um lenço.

– Eu vou relevar isso, Bianca. Sei que você tem um fraco pela sua priminha morta. Mas não abuse – ele volta a se virar para a esposa e senta novamente ao seu lado – vamos começar de novo, tudo bem? Eu aceito que prossigamos com a política de paz, com os acordos e tudo mais que você gosta. Mas devemos voltar a treinar nossos soldados, devemos investir em novas armas, em especialistas em guerra. Só por segurança. Só por proteção. O que me diz? Posso contar com seu apoio nisso?

– Sem invadir? Sem saquear e escravizar outros povos? Sem incendiar reinos menores, sem contrabandear crianças e camponesas raptadas?

– Você tem a minha palavra.

– Neste caso, eu aceito.

– Ah, eu sabia! – Francis ri – você é realmente uma mulher sábia, Bianca. No fundo, no fundo, eu sempre te admirei. Podemos selar o acordo com um brinde? – ele ergue a taça.

Bianca reluta por um segundo, mas pega a taça, a ergue e bebe o vinho de uma só vez.

– Vocês são tão previsíveis, querida – Francis termina de beber seu vinho – uma dúzia de palavras bonitas e promessas vazias foram tudo o que eu precisei para te dobrar. Você se acha muito durona, muito esperta, mas é tão cretina quanto qualquer outra. Aliás, é ainda mais burra que as outras. Você sabe que eu matei a Maya. Você sabe que eu matei seus pais, seu tio, e você sabe como eu fiz isso. Ainda assim, você aceitou um convite para jantar comigo e bebeu do meu vinho. Eu estou feliz, é verdade, mas também estou um pouco frustrado. Você me fez acreditar que era uma pessoa mais inteligente por todos esses anos! Bem, Bianca, você perdeu. Gostaria de dizer algumas últimas palavras? Um último discurso de paz, talvez?

– Você me convidou para jantar e quando eu cheguei, você entrou nessa sala com seu próprio vinho e a sua própria comida. Você entrou comendo uma coxa de cordeiro, mas não há nenhum cordeiro nesta mesa. Você vê essa uva? Eu estava rolando ela pela mesa e percebi que ela é diferente das uvas do meu pomar. Ela é... brilhante, encerada. Assim como tudo que está servido aqui, Francis. Sabe o que mais eu percebi? Que a taça que você trouxe contigo, você não bebeu dela. Nenhum gole antes de supostamente me dar uma taça segura e encher seu copo com um vinho que você tinha acabado de abrir. Deste sim, você bebeu.

– Então você ligou os pontos, não é? Parabéns, muito esperta. Mas tanto faz! Agora é tarde, porque você já bebeu. Você já bebeu da taça...

– Francis, você ainda não entendeu? – Bianca ri – Quando você tenta envenenar alguém, o mínimo que você deve fazer é manter seus malditos olhos no copo de veneno. Mas nunca, nunca... tente ME envenenar – Bianca levanta a mesa e começa a ver os olhos de Francis ficarem vermelhos e os lábios arroxeados – eu poderia ficar aqui e te ver morrer, Francis. Mas por incrível que pareça, eu não vou ter nenhum prazer. Eu não matei você, foi você que fez isso. Adeus, meu marido.

Bianca se virou e deixou a sala. Por muito tempo ela acreditou que quando Francis estivesse morto, a dor pela perda da sua família iria embora, mas isso não estava acontecendo. Ela apenas não sentia nada.


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