Legado de Semideuses! escrita por Lucas Lyu Santos


Capítulo 18
Império Labirintítico.




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Eles nos deram as mãos, e nós agarramos esta solidariedade com certo receio. Os capuzes negros baixaram, rostos amenos e bondosos nos saudaram com sorrisos eufóricos. Quiçá, não ser uma cilada daqueles mal feitores e desgraçados, vulgos, renegados. Contudo, as circunstâncias não eram vistas em nosso favor. Todos estavam vulneráveis depois daquela saída dramática do mundo inferior, principalmente, eu. O motivo? Era imperfeito para mim. Mas quem poderia me culpar pelo acontecimento que nem mesmo Mama poderia prever? Ninguém. Por incrível que pareça só uma pessoa me culpava por ter deixado minha irmã naquele escrupuloso lugar. E aquela pessoa que remoia isso em mim: era eu mesmo. Pois a minha própria consciência ainda corroia de forma sentenciosa. Não havia maior dor que trair uma irmã. Não havia curativo que preenchesse essa facada que eu mesmo tomei de minhas próprias atitudes zelosas. Mas... Eu já preferia guardar isso tudo nos confins dos meus sentimentos e extirpar-los pouco a pouco das minhas entranhas. Eu me odiava.

Meus passos estavam cada vez mais metódicos com o pisotear dos meus tênis nas pedras que nós deixávamos para trás a cada passada. Meus olhos vagavam sem qualquer objetivo, tal que, os cariocas guiavam-me sem eu perceber. Para onde eu ia já não me importava mais, tampouco, se quisessem me matar naquele momento eu não protestaria. Minha cabeça pulsava de forma constante, e junto à batida do meu coração expusera minhas veias de forma visível em meus braços com as unhas cheias de terra. Confesso ter sido um papel ridículo tentar escavar o agora – lacrado – portal para o submundo.

Depois de cinco minutos caminhando eu percebi que estávamos em uma mata densa que logo coloriu o cenário após a saída daquela caverna. Havia muitos capuzes negros ao meu redor, e por estar com a cabeça longe nem ao menos lembrei da existência dos meus amigos. Que tipo de monstro eu estava me tornando? O choque de ter errado uma vez não justificara um próximo erro, e por mais que eu sofra sem ter minha irmã ao meu lado, eu teria que me concentrar em trazer nosso objetivo para o acampamento novamente. Retrair-me seria um erro – outro – que eu já não podia pensar em cometê-lo.

– Chegamos.
– Aonde chegamos? – Thay esbravejou.
– Em nossa base. – A voz vinha de algum encapuzado. – Bem vindos meus caros irmãos paulistas! Bem vindos ao império semideus do Rio de Janeiro.

Não me surpreendera uma rocha camuflada começar a grunhir, enquanto todos se afastaram para que ela pudesse se abrir. Um enorme saguão cheio de máquinas e computadores percorreu toda a minha vista. Várias escadas ligavam andares superiores e inferiores que corriam pelos dois lados. Havia até mesmo algumas arenas alocadas em alguns pisos. Plantações enormes e até mesmo piscinas ocupavam alguns andares, era uma bela instalação para jovens que viviam em cavernas. Outros meio-sangues, muitos na verdade, trabalham nas máquinas e zanzavam de um lado para o outro. Alguns testavam armas, enquanto outros lutavam em estupor do momento de adrenalina. O número era incontentavelmente grande, e as vozes se multiplicavam quando gritavam alguma coisa sobre “biscoito”. Eles puxavam o som do “s” gradativamente, o sotaque era tão agradável quanto engraçado.

– Providenciem uma limpeza nas salas de conferência, agora. – A mesma garota bradou para os outros que ainda permaneciam com capuzes em nosso redor. – E tragam biscoito também, falou?
– Ok.

A sala era ampla e comportava todos nós em cadeiras confortáveis. Ao menos para meu alivio meus companheiros estavam ali, sem quaisquer vestígios de ferimentos graves. Assim que a garota tirou o capuz ela deixou que as madeixas negras decaíssem além dos seus ombros, e seus olhos castanhos nos fitaram com severidade. Sua roupa era uma cópia do acampamento meio-sangue, mas, ao invés do laranja, uma tonalidade fina de verde e amarela.


– Meu nome é Yasmin Dunley. Como pode ver, essa é a nossa instalação.
– Muito bonita, por sinal. – Vitória analisou o recinto.
– Instalação referente à que? – Fredini questionou.
– Controles de gigantes e titãs.
– Então são verdadeiros os boatos sobre o pão de açúcar?
– Vocês de São Paulo não são tão desinformados, afinal.
– Bem, creio que apenas Fredini sabe. – Mama intrometeu-se. – Seria bom colocar as cartas na mesa.
– Claro, por que não? – Ela apontou para os biscoitos recém colocados na mesa. – Fiquem a vontade, comam.

Yasmin encostou-se em sua cadeira e pegou um controle remeto ao lado da mesa de prata que estávamos. Só havia um botão vermelho; e ela o apertou. De súbito, variadas projeções começaram a ganhar vida em torno da sala - era como se fizéssemos parte da história. E nela, mostrava-se um vislumbre de tempos antigos.

...

Imponente, ele subiu ao Olimpio regozijando tais feitos retumbantes aos quatro cantos do universo. E finalmente, Zeus sentou-se pesadamente em seu trono com o suor percorrendo a barba que esbravejava raios e nuvens tracejadas nos fios enrolados e brancos. Dos longos e largos ombros divinos varreu-se com a grande mão redobrada em marcas fumegantes de raios cravados a seus dedos severos, a cólera da cabeça de um dragão que serpenteara seus feitos magníficos por todo o estupendo clamor que crepitava em um final colossal entre os anos de titanomaquia. Os titãs haviam caído após a impetuosidade lúgubre que os permitiram desafiar os deuses. E graças aos espalhafatosos louvores divinos destes, eles triunfaram de forma soberana por cima das cabeças titânicas que caíram por três dias inteiros no fundo do tártaro.


[...]

E o baque estremeceu do ocidente até o oriente com o corpo monstruoso chocando-se com o chão. Tamanho fato; estupendo e espalhafatoso, colossalmente desencadeado pela soberania do mais forte. Os olhos maléficos do titã observavam incrédulos e, o cintilar do ódio pútrido o trajava em seu espanto mortificado pela a ira de um deus enfurecido. Chamas brilhantes eram jorradas das medonhas cem cabeças de dragão que ali corria por todo o seu corpo. Dos membros outrora infatigáveis, caíram-lhe em uma profunda poça de sangue esverdeado que saia de suas entranhas.

O vislumbre de um magnífico e brilhante corpo pisoteando os seus restos era horrivelmente irrefutável para si mesmo. Tão constrangedor quanto inaceitável. E, mesmo sem indícios de força, ele se debatia com sua ira aprisionada em sua derrota - totalmente inválido. As cem cabeças de dragões mostraram as línguas negras e se colocaram a sibilar sons indecifráveis. Tais mugidos, enlouquecidos pelo vocifero de um touro e decorrente de uma fúria leonina. Mesmo com o seu ódio gritando por si, a sombra do ser magnífico se estendeu sobre ele com os dentes trincados. As veias saltavam em seus músculos de mais de três metros, e com tal força, ele colocou a mão no raio mestre que fincara na testa do titã – agora inconsciente – e com o pé direito em cima dos mais de cinqüenta dragões que corriam pelo ombro direito do gigante, ele ruminou forças para enfim, levantar o raio mestre aos céus – tão brilhante e manchado pelo sangue pegajoso de Tifão.


– Desejaste a luta. – A carranca de Zeus ganhou traços marcantes. - A luta culminou em milhares de anos em ruínas para si e para tuas crias. Sejas como for, sejas como preferiste... Terás que aguentar uma eternidade ao ilustre desprazer de sua companhia! – E ao longe um trovão ribombou por todos os céus. – Que mofes no profundo e tenebroso tártaro!

Com as forças que reluzia nos dois grandes músculos, Zeus abriu a montanha e jogou os vestígios dos titãs para ela, prendendo-os a uma era de escuridão e sentenças do tártaro. Aquela montanha, conhecida como monte Etna – à entrada para o tártaro - fora lacrada. E o destino deles fora selado.

...

O último brilho de luz sumiu e o silêncio caiu pesarosamente na ampla sala de reunião. O lustre dourado era chacoalhado ao vento e tremeluzia em um estonteante contraste com a mesa de prata – ambas refletindo nas paredes de cimento. Yasmin nos fitava de forma curiosa. Ela estudava nossas reações como se fossemos os inimigos, e, tampouco poderíamos ser. Lutávamos lado a lado - ou melhor, de estado a estado.


– Não me admira que após os deuses escolherem o Brasil como novo lar, o Monte Etna viera e se estabelecer debaixo das pedras do Pão de Açúcar. – Fredini proferiu.
– Por isso a movimentação dos gigantes e criaturas do tártaro vem crescendo consideravelmente desde os últimos anos. – Yasmin tirou um mapa de seu bolso e o abriu na mesa. – Tanto aqui quanto em outros lugares; temo que eles estejam sendo ajudados por outras forças, pois só assim temos explicações plausíveis para os números alarmantes em todo o Brasil. – Ela lançou um dardo que fincou no centro de Teresópolis.
– Outras forças? Aposto meus itens mágicos que essa outra força começa com a letra “R” e termina com “enegados”.
– Coincidentemente nosso objetivo. – Mama se ajustou na cadeira. – É certeza que eles estejam por trás disso. Só temos que...

A garota de cabelos ruivos empalideceu-se. O corpo de Mama começou a ser coberto por uma fina camada de uma fumaça que saia de sua boca, enquanto ele começava a levitar sobre a mesa de prata. A fumaça englobou-a em volta, e de seus olhos uma tênue coloração esbranquiçada cobriu-lhe a pupila esverdeada. Eles brilhavam. E daquela luz que saia de seus olhos – que mais pareciam faróis - uma espectral cena de filme de terror começou. A filha de Afrodite abriu os braços como se estivesse jogada ao vento e possuída pelo capiroto. E de seus lábios avermelhados, sibilos começaram a irromper; lentos e explicativos.


Ruínas aos prantos, e ao espanto.
Apressem-se para Tânatos não a levar.
Pois o tempo já não se pode mais desperdiçar.
A conquista, se concreta, não terás tempo para celebrar.
Quando os caminhos se cruzar.
A corrida para a portarius do deus mensageiro,
A sandália alada, já revelara.

Os olhos de Mama se apagaram um segundo depois da última palavra ser concluída. Entretanto, antes que o corpo dela pudesse despencar sobre a mesa de prata, a entidade, incontrolável, conseguiu a proeza de chocar a cabeça da garota com o lustre. Após isso, ela arrotou e caiu sobre a mesa, acordada. Eu nunca tinha visto Mama incorporar o Oráculo de uma hora pra outra antes, não sabia se ria ou chorava. Já os outros, riam de forma simplória. Eles já estavam acostumados com esse evento surpresa.

– O Oráculo atrapalhado voltou. – Vitória espremeu um sorriso aos cantos da boca. – Por que ainda dou risada com as burrices que ele faz depois de cada profecia?
– Preferi da última vez que ele jogou a Mama de cara nas cadeiras que ainda estavam secando no refeitório. Ela parecia a smurfette ruiva de tanta tinta azul que ficou no rosto.
– Mas isso nem se compara daquela vez que ela estava na beira do lago e o oráculo apareceu. – Guilherme gargalhava. – Além de ela cair no lago, levou Helena junto.
– Vocês riem né? Eu só espero que algum dia eu recite a morte de cada um, lenta e dolorosamente. – E Mama voltou para sua cadeira com a mão na cabeça.
– Não devíamos perder mais tempo. – Thay falou. – Já perdemos Alinne... E o objetivo é resgatar Letkaske antes dos três dias estipulados por aqueles delinquentes.
– Já se passaram dois dias. – Guilherme completou. – Precisamos partir imediatamente.
– Tenho que notificar Helena sobre a profecia, me dê licença. – Mama se retirou.
– Talvez podemos ajudá-los, só me diga o que os trouxeram para cá. Aposto que não são as praias e o calor dessa cidade maravilhosa.
– Não chegou nem perto. – Eu a olhei nos olhos. – Nossos problemas se chamam; Renegados...

[...]

Recontar toda a história me deixou com sérios problemas depressivos em relação aos acontecimentos de um pouco mais cedo. Thay e Vinicius contaram passo a passo tudo o que aconteceu – tentando em vão, enfatizar a ideia de que Alinne estaria segura junto a Débora no submundo. Eu não acreditava que isso era verdade. Ao menos Vinicius disse que a comida que Débora saboreava diariamente não era provinda do submundo – o que era perfeitamente um alivio –, mas sim, de alguns templos que existiam no mundo inferior – a comida aparecia como forma de sacrilégio aos deuses –, e, ele mesmo provara uma vez. Ou seja, toda vez que alguém queimava uma parte da sua comida como forma de agradecimento aos deuses, Débora ganhava um novo estoque de alimentos. E agora eu sabia que teria que queimar minha comida não apenas para os deuses, mas sim, para minha irmã também. O único problema que a localização dos templos tinha uma proximidade próxima ao tártaro.


– Vocês estão de caô, não se pode dormir no submundo. Você tem o risco de ficar preso eternamente se o senhor Hades não permitir. – Dunley sorriu.
– Sim, mas aquilo que minha irmã chama de lar é mais que uma simples tenda de circo. – Vinicius mordeu um biscoito. – Depois que eles caíram na cama eu fui conversar um pouco com ela. – Ele alisou o cabelo. – “Isso se ele me deixasse viver em paz entre seus domínios, sem interferência nenhuma sobre meus assuntos, é claro”, foi o que ela nos contou, lembram? Por isso aquela tenda não só seria o lar dela, mas ali dentro, ela tinha total autonomia sobre tudo.
– Inclusive, nossos sonhos? – Fredini até que era esperto, mas seus pés em cima da mesa diziam o contrário sobre suas boas maneiras.
– Exatamente. Meu pai não teria como se intrometer em nossos sonhos, pois aquele pedaço de terra que a tenda ocupa é como se fosse, – e não fosse –, seus domínios. Além de que, como ela mesma falou; um filho de Hades consegue camuflar os sonhos, dois então... Meio bugado né? Isso tudo por não ler a letra miúda e depois jurar pelo Estige. – Ele sorriu para mim. – Alinne está em boas mãos, sossega ai Lyu. Dunley, essa bolacha é do que?
– É um biscoito de baunilha.
– Biscoito? Isso é uma bolacha.
– Não, não é. É um biscoito. Arg! Qual o problema de vocês?
– É uma bolacha.
– Biscoito.
– Bolacha.
– É biscoito. E fim.
– Enfim né crianças... Precisamos ir embora, correr, matar, esqueceram? – Vitória calou a discussão.

Por um mero segundo o silêncio pesou sobre o recinto. Semideuses nunca eram suficientemente concentrados para manter o foco da conversa – disso eu sabia, muito bem, aliás. Tal que, as palavras só reapareceram nos ouvidos de todos depois que Mama retornou a mesa. Ela nos disse que Helena já tinha informações de que a pedra de Hermes estava à solta, tanto que, instruiu Martinato, Lorenna, Bieringuer, Benvengo, Rodrigo, Frascolli e Malu para trazê-la de volta. Falou também que os renegados voltaram a importunar sobre a prisão de Letkaske – eles estavam crentes que receberiam a pedra de Arix em troca da pobre garota. Disso nós sabíamos, contudo, a única informação relevante que recebemos era a última. Batistão havia conseguido rastrear os renegados.

– Vocês não conhecem a área em volta; darei ao menos um dos meus membros para escoltá-los até os seus destinos. De resto, ficaremos fora dos assuntos que não envolvam titãs ou gigantes. Boa sorte.

– Antes de irmos. – Uma dúvida me percorreu. – Você é filho de qual deus?
– De qual mais seria? – Ela levantou o manto e mostrou uma tatuagem em seu ombro. – Zeus!

...

Demoramos cerca de uma hora para entrarmos definitivamente em torno da área de Teresópolis. Havia muitas casas, comércios, e alguns vendedores que passavam vendendo icegurt nos seus carrinhos, e outros, churros. Aquela cidadela era de certa forma agradável, e possuía uma paisagem estupenda. Muitas colinas e montanhas sublinharam o fundo da região, além das incontáveis e árvores que residiam nos bosques adentro. Por um segundo consegui ver ninfas se desenrolando de suas árvores e indo até o lago para beber água. Em outros momentos; espíritos do vento brincando de pega-pega sobre o farfalhar das árvores.

A brisa estava tão suave quanto o clima tropical – Rio de Janeiro era extremamente quente, mas hoje, estava suportável. Tal brisa, responsável por embolar folhas umas nas outras enquanto caíam, soprava unicamente para um caminho – leste. Notei que muitos corvos estavam voando para tal lugar, e com eles um rastro negro borrava os céus com o grande número do mesmo espécime. O barulho de seus bicos grunhindo sons desagradáveis significava que um mau agouro se aproximava da região, e isso levava minha preocupação ao extremo. Penas negras dançavam nos ares e iam de um lado para o outro com a voracidade dos ventos indecisos. Por um segundo me pareceu que Eurus brigava com Zéfiro para ver qual território ficaria com tais penas causadoras de má sorte. As nuvens iam avançando lentamente e se espalhavam por todos os quatro cantos dos céus. Em breve, o sol seria coberto e a escuridão apareceria. Talvez por esse motivo devêssemos nos preocupar em agir.

Assim que seguimos para o leste e subimos a íngreme colina com muitos botões de flores em suas extensões, a única semideusa carioca brecou seus passos ao ver a paisagem se desenhar lá no final do horizonte.

– É logo ai na frente. – A garota falou. – Eu fico por aqui, me desculpem.

Ela tinha os cabelos tão ruivos quanto de mama, mas os dela eram ainda maiores que o do nosso Oráculo. A semideusa possuía traços bonitos em seu rosto, mas seus lábios rosados davam destaque ao seu sorriso amável e suas sutis covinhas nas bochechas. Mônica – se não me engano esse era o nome dela – se afastou calmamente com seu capuz sendo chacoalhado pelo vento, até não conseguirmos mais vê-la. Com ou sem ela, nós não tardaríamos em continuar.

– Chegamos. – Thay nos chamou a atenção. – Temos mais um problema... Um castelo.
– O Castelo de Montebello, como aqueles otários conseguem arrumar tanto dinheiro pra se manterem instáveis e terem um castelo? – Fredini esbravejou.
– E quem disse que aquele castelo tem que ser deles para que invadam e formem uma base?
– É, faz sentido. De qualquer forma, precisaremos reativar os trajes e usar os vans escaladores.

Eu vou te dizer que vai ser muito pouco descrever o castelo Montebello com as mais bonitas palavras que existem – pois ele é inimaginável. Sua estrutura antiga cobria a coloração acinzentada de forma magnífica. Quatro torres enormes – duas vezes o tamanho das do submundo - contornavam a sua bélica proteção natural para defensores – formando um quadrado com as longas passarelas ligando umas nas outras. Uma quinta – e última - alta torre estava no centro do castelo com um grande farol ligado que vasculhava o terreno infatigavelmente. Talvez a luz, tenha atraído a atenção dos corvos, pois eles rodeavam os arcos mais altos da quinta torre em movimentos circulares. Suas grandes e impressionantes janelas vitrais de bronze brilhavam com pó de pedras idênticas à época medieval – cada uma com o mesmo tamanho e em quatro partes das longas laterais do castelo. Cada pilar individual ligava inteiramente a uma ala de entrada nos andares superiores, e por fora, escadas corriam por todos os lugares – dando acesso a quinta torre. A beleza daquele monumento me enchia de admiração, contudo, as proles do tártaro que cobriam os lados das muralhas me enchiam de ódio. Sim, minotauros, novamente estavam lá esperando minha lâmina passar por entre suas vísceras e manda-los para onde não deveriam ter saído. E não demoraria, pois se da última vez não tive qualquer sentimento de piedade, imagine agora.

– Qual o plano? – Vinicius perguntou.
– O castelo tem quatro lados, temos que imobilizar todas as defesas pra não ter problema com a quinta torre. Então proponho que dividimos em quatro grupos. – Vitória falou rispidamente.
– Faz sentido, mas somos sete pessoas, um vai ter que ficar sozinho.
– Não vejo problema em ficar sozinho, pra mim tanto faz. – Bocejei.
– Tudo bem, então o Lyu fica sozinho.

(...)

Usamos da velocidade um fiel amigo para conseguirmos grudar na parede de mármore – e depois, cada um percorreu os lados para chegar das bordas da muralha. Os trajes novamente se faziam eficazes para nossa causa, e tampouco, eles não conseguiram nos achar entre as muitas e variadas confusões de camuflagem que as roupas produziam. Fredini nos ensinou novos módulos para usarmos eles, tal que, agora poderíamos nos comunicar entre nós – bastava falar que o sensor de microfone do traje repassaria a informação.

Escalei cada centímetro daquelas embocarias pedras que tinham irregulares formas. A cada passo – escalando feito um lagarto – me lembrei tristemente de como Alinne, eu e os outros invadimos o castelo do submundo. Tais sentimentos – e memórias – me pegaram tão desprevenido que mal notei chegar tão perto da borda que quase cai dentro da passarela. Se por um leve descuido eu tivesse escorregado e caído naquele corredor, o próximo lugar a cair seria no tártaro.
O bafo de esterco cultuava de forma alarmante os longos beiços suínos da criatura que bufava de tédio. Tal sombra, imponente, erguia-se sobre mim totalmente desinformado da minha presença pendurada por fora da pedra de mármore que dava acesso a passarela que possuía sequências regulares de blocos altos e baixos por toda a sequência da proteção da muralha. Notei a sua inquietação e fácil rotina, ele ia de um ponto a outro ponto de cinco á cinco segundos, contudo, sempre voltara na posição original – onde agora se encontrava. Assim que a sombra dele saiu sobre o mármore cinza, aproveitei parar grudar ambas as luvas – que grudavam – nas pontas das pedras e ajustar meus pés nas poucas e emborcadas falhas da muralha para me manter em equilíbrio constante. O capuz negro – camuflador – se adequou ao cenário lá embaixo com facilidade, sendo assim, minha presença seria imperceptível. Entretanto, meus olhos seriam os únicos itens que ficaram de fora do comprimento do capuz.

O traseiro felpudo do suíno se remexia conforme ele marchava lentamente para a outra extremidade – que agora ficava na minha frente – e, sua lança dançava em seus punhos que lhe serviam de mãos. Cascos arrastavam-se de forma odiosa, e uma minúscula tanga o trajava de forma animalesca. Assim que ele se voltou para minha direção eu pude vê-lo nitidamente. Um enorme círculo metálico saia do focinho da criatura como se fosse um piercing, tal que, era tão bizarro quanto os olhos amarelados do touro humanoide. Porém, isso ainda não era tudo. Em sua desfigurada cara tinha um enorme bigode desenhado em seu rosto, mas, o que quase me fez pular da muralha de tanto rir era um espécime de ovos e uma salsicha desenhada bem no meio da testa dele, the zoera never end. A única pista do autor daquela obra prima estava escrita no peito do minotauro: incógnita. Se eu soubesse quem tinha produzido aquilo, o cumprimentaria pessoalmente por tal feito que me fazia rir abobado, mas, ainda sim, abafado. Se ele não fosse tão lento e tão burro teria me descoberto, mas ao invés disso, abaixei-me um pouco para que pudesse me preparar para jogá-lo no tártaro. Literalmente, joga-lo.

O plano era grudar a lâmina na barriga dele e puxa-lo para o abismo, mas... Sabe aquele dia de sorte que você pisa fora da cama e um buraco te engole pra dentro da terra? Pois é, acho que esse era meu dia. Assim que a sombra da criatura ficou perante os blocos baixos, poucos centímetros acima de mim, uma baba verde e pegajosa escorreu da boca do homem touro e fora diretamente para baixo. Quiçá o animal, almejar o vislumbre de sua baba despencar a muitos metros de altitude até sua visão não conseguir mais visualiza-la do alto. Quiçá eu, a mesma coisa que ele.

– Filho de um touro manco patinador da rua augusta... – Se eu pudesse fazer barulho nesse momento, eu garanto que minha espada gritaria no meio do coração desse infeliz. Mas já que não posso, resolvi cochichar essas palavras no momento que ele despejou a baba.

O líquido escorregou até o topo do meu capuz como se fosse uma enorme gota de água que se chocara com o solo. Era revoltante saber que no topo do meu capuz havia um grotesco líquido produzido pela boca deste. Mas beleza, o que era dele estava guardado, e logo, eu abriria quando ele se voltasse para o outro lado – no momento que ele daria as costas para mim. E eu o faria, empalaria, mandá-lo-ia para o fundo do tártaro.

Cerca de noventa centímetros abaixo das patas do minotauro meus dedos se contorceram para não enfiar a lâmina da luva na perna felpuda do suíno. Ele não imaginara a tamanha raiva em que me encontrava agora por ter babado sobre meu capuz - ao menos não seria eu que lavaria a roupa. O minotauro olhava hipnotizado para o líquido que parou no meio do ar, suas expressões estavam claramente desconfiadas. Minha roupa camufladora estava funcionando perfeitamente, por isso, ele apenas via sua baba debruçada no breu do nada – que era eu. O minotauro era um monstro muito inteligente, mas deve ter ficado com receio de tirar conclusões precipitadas de que a própria baba flutuava. Por isso ele achou melhor averiguar com a sua lança. Quando ele colocou a ponta afiada em minha direção, eu saberia que não deveria ter outra opção se não dar um fim nele agora. Mas, assim que aproximei minhas mãos perto das patas do touro, um corvo vesgo se chocou com seus chifres oriundos com grande força. Eu não fazia ideia de onde aquele corvo surgiu, mas nossa como eu o amava. Além de retardar o ataque do animal ele fez com que sua atenção fosse retraída para si.

A escuridão abraçou o dia como se fosse seu, e logo as nuvens negras tomaram conta dos céus e refletiram tamanha coloração escura em todo o ambiente. Mal sabia ele que sua morte estava próxima de ser arremessada nas trevas. E confesso que teria sido rápido, se não fosse pela minha digníssima sorte, é claro.

– Mãe de quem patina na augusta? – O tom irreconhecível ecoou no ar.

A voz surgiu do micro aparelho de som embutido no fundo do capuz. Tal função, que Fredini havia ativado e falado sobre nos comunicar de longa distância – reproduziu o esbravejar de alguém em resposta ao meu cochicho ofensivo ao homem touro. Graças a isso, ao som que saiu em grande volume do meu traje, o minotauro se virou com a lança pronto para espetar o ar.

O primeiro movimento veio zunindo em torno do meu ouvido. O minotauro era esperto, e este, se orientou pela cor verde de sua baba que antes despejou em meu traje, fazendo da habilidade de camaleão da minha roupa não tão eficaz. A lança passou por mim com fervor.

Para o azar dele minha mão direita foi tão rápida quanto minha esquiva para com a lança dele, e após o ataque, eu consegui ficar totalmente fora da mira daquela arma ansiosa para tirar meu sangue. Aproveitei o tempo que ele levaria para se preparar novamente para outra investida e rapidamente ergui o braço direito e liberei a lâmina que portava nas mangas das minhas luvas. E com tal veracidade, enfiei com muita força o metal de bronze celestial no joelho do touro que imediatamente urrou de dor e cobriu a mão no local após eu rasgar a pele dele com um solavanco brutal.

Se por um momento eu achei que estava com total vantagem, acabei friamente enganado. O minotauro era mais forte e valente do que os outros que eu já havia tido o prazer de despachar para o submundo. Talvez por isso, ele se reergueu e tentou uma sequência contínua de golpes com a lança. A pontiaguda lâmina passou diretamente no meu peito e atingiu o globo vermelho que me mantinha com a roupa. Faíscas saíram e o traje instantaneamente voltou para o círculo mágico – agora ele tinha total visão de seu inimigo, ou seja, eu. A saraivada de golpes me fez ter que soltar as mãos da parede e ficar em pé sobre a muralha, horizontalmente, isso obviamente graças aos vans que tinham o poder de grudar a superfície da muralha. O barulho do metal da minha espada em minha cintura se juntava pouco a pouco ao desespero de matar ou morrer que minha cabeça matutava. E, eu teria que contra-atacar rapidamente. Com o braço direito coloquei as mãos nas costas e atingi o arco-dourado que precisava.

– Flecha normal. – Dos meus dedos uma flecha materializou-se duas vezes do tamanho da palma da minha mão.

Retirei a mão destra da minha aljava mágica e deixei que a canhota ficasse com o arco em punhos. Resfoleguei por um pequeno segundo, a lança tinha alcançado minha perna direita e arrancou um pedaço do pano da minha calça jeans. O minotauro estava medindo cada vez mais seus golpes para me acertar. Assim que o homem touro se preparou para arremessar a lança na minha direção, meus dedos suavemente soltaram as linhas douradas que trouxeram um tênue gosto de sangue que voou em meu rosto. A flecha, por sua vez, não foi tão misericordiosa como ele teria sido comigo, contudo, ela perfurou o pescoço do touro com a força necessária para que ela ficasse pendurada com as duas pontas atravessadas na garganta do suíno. Ele só teve tempo de cambalear e cair precipício abaixo – enquanto eu apenas abri caminho para que seu corpo morto não me levasse junto.

– Vocês algum dia ainda vão me matar. – Esbravejei. – Já estou na passarela de entrada.

Assim que alcancei o bloco inferior e fiquei em pé – dessa vez na posição certa – a luz do farol da quinta torre passou sobre meu pé. Assim que notei o vigia ativamente esperto, novamente apelei à ajuda da minha aljava para me presentear com uma flecha comum. O vigia ia de um lado para o outro com o tamanho holofote que servia como um farol. E por isso, seu corpo ficava sempre exposto quando ele tentava vasculhar os outros lados. Eu podia ser péssimo em cantar, mas meu pai havia me presenteado com um tom incrivelmente preciso quando se tratava de flechas, e assim que ela pairou no ar indo de encontro ao vigia infatigável, a flecha encontrou o meio da testa dele. Mesmo a muitos metros à distância eu percebi que sua envergadura gigantesca havia simplesmente sumido – acredito que ele tenha virado cinza.

– Boa Lyu, mas ta atrasado. – Da outra ponta eu via a sombra de Fredini apontando para a torre que ficava no final da passarela onde eu estava.
– Só falta uma, vamos.

Apressei meus passos silenciosos e calmos até o final da passarela em que Fredini tinha apontado. Lá, tinham duas janelas ovais que davam acesso, além da enorme porta que estava trancada. Os outros tinham me alcançado e apenas Thay e Vitória estavam no outro lado da passarela. Os dois; Guilherme e eu iríamos invadir pela janela da passarela em que estávamos. Thay e Vitória, na outra extremidade, enquanto Vinicius e Mama invadiriam a porta no mesmo segundo em que nós nos lançássemos. O plano certamente daria certo. Mas o que aconteceu foi certo demais.

– Eu não sou famosinho eu sou uma incógnita... – A voz fina do asiático ecoava no recinto com tamanha força. Aquele seu cabelo topetudo não me era estranho, e quando ele abocanhou uma bolacha trakinas e se virou, eu percebi de quem se tratava.

Não me surpreendera que ele tenha sobrevivido depois do desafio de Arix. Acredito que Cody também deva estar. Yokota ainda tinha seu famoso topete pontudo, e como um descendente de japonês ele mal conseguia abrir os olhos direito. Ele tinha um grande fone de ouvido que pulsava em uma sinfônica música de uma tal de incógnita, – agora sim eu entendi quem fez os desenhos no rosto do minotauro – e não me parecia estar interessado sobre o que acontecia em seu redor. O vídeo game tem esse poder. Ele cantarolava fazendo caras e bocas, mas o pior de tudo eram as imitações de sons guturais. Asiáticos são tão... Surpreendentes?

Só havia Yokota naquele imenso recinto. Mesmo todos entrando pelas janelas e portas, ele não moveu um músculo se quer e tampouco escutou. Foi então que quando ele conseguiu fazer um gol no FIFA 2014 – muito feio por sinal – seu sorriso se perdeu com a adaga encostada em seu pescoço.

– Ora, ora, ora... Quem diria que vocês teriam coragem para vir até aqui. – Ele tirou o aparelho de som de seus ouvidos e cinicamente sorriu.
– Não só tivemos, como vamos chutar as suas bolas se não falar o que precisamos. – Mama levantou a gola da camisa dele com força. – Onde está Letkaske?
– Creio que não vai ser tão fácil assim, minha queridinha. Minha boca é um túmulo.
– Prefere uma informação ou nunca mais ter filhos? Você quem escolhe.
– Escolho? Que tal um encontro? Só eu, você, dois filhos e um cachorro. Aliás, você é filha de quem?
– Afrodite. – Mama mostrou o espelho e as muitas borboletas de corações tatuadas em seu ombro.
– Sabia que o charme de um filho de Afrodite funciona até mesmo com seus irmãos?
– Veremos qual charme vai encantar quem.

Mama estava pronta para socar a cara dele a qualquer momento. Ela se recusava a acreditar que um de seus irmãos seria um dos renegados. Eu particularmente adoraria ver eles se debulharem de socos e pancadas. A ruiva tinha ódio nos olhos que cintilava a metros de distância. O motivo? Bem, Letkaske era uma de suas mais queridas amigas dentro do acampamento, e ela a queria de volta. Antes que eu pudesse a ver arrancando a pele de Yokota com as unhas, Guilherme se intrometeu no meio dos dois – ele poderia ter deixado, só acho.

– Ameaça-lo dessa maneira não vai dar em nada, Mama. – Ele olhou para Fredini. – Lembra daquela caçada de dias atrás? – Fredini concordou, o que eles poderiam estar escondendo? – Acho que podemos brincar um pouco com ele.
– Só se for pra já... – Fredini retirou seu capuz que deu lugar à cartola mágica. Ele também levantou a barra da sua calça e retirou a varinha negra. – Eu só preciso achá-los, nada que um kadabra não resolva.

O garoto mexeu sua cartola como se tivesse cozinhando feijão – era muito hilário ver o quase bigode de Fredini se revirar conforme ele mudava suas expressões. Enfim, ele agarrou um pescoço fino e uma galinha fez um gemido de um pato – quack – em um volume eloquentemente assustador.

– Vão me bater com uma galinha que fala patanês? Que criativo.
– Quem falou que vamos te bater com ela? – Fredini sorriu. – Gui, já sabe o que fazer.
– Tenho até medo de perguntar o que mais tem ai dentro. – Bradei.

Acredito que não era apenas Yokota que estava curioso em relação ao que poderia acontecer. É verdade, eu também estava tentando matutar o que eles fariam com uma galinha. Tive a sensação de que seria algo horrivelmente ridículo.
Guilherme se abaixou e retirou de sua bolsa um fósforo. Juntou isso a mais a panela que Fredini tinha acabado de encontrar em seu instrumento.

– Vocês não vão cozinhar o frango, sério mesmo? – Não sabia se ria ou se chorava.
– Calma Lyu, só assista ao show.

Eles finalmente acenderam o fogo com alguns improvisos e colocaram a panela sobre ele – será que se eu pedisse um pokémon da cartola de Fredini ele conseguiria me arranjar um? O que foi? É uma questão que deve ser analisada, okay?

Eles haviam colocado alguma coisa na panela por que assim que ela pegou pressão, um cheiro amistosamente gostoso subiu aos ares. Um minuto foi o suficiente para o que quer que seja que eles estavam tramando.

– Comida instantânea. Como essa panela é mágica, só um minuto de espera pra qualquer refeição ficar pronta. Inclusive, esse frango – O Filho de Hécate bradou.
– Espera, que merda você ta fazendo? –Yokota tentou abrir os olhos.
– Ora... Você não disse que sua boca é um túmulo?
– Não falo nada, só se for à música da Incógnita.
– Gui, pode soltar.

A galinha foi até a panela e bicou uma asa de frango.

– Espera! Você não pode fazer isso, é canibalismo. Não pode obrigar um frango comer um frango, não pode cara.
– Não? – A galinha arrancou um pedaço da pele do frango.
– Tudo bem! Parem isso agora! Tire ela daí, eu falo, eu falo. – Yokota estava altamente desesperado. – Que tipo de pessoa é você? Flango comendo flango.
– Só fale o que queremos e nunca mais toco num frango, onde está Letkaske?
– Ela ta na quinta plataforma do subsolo. É só entrar no elevador e aperta o quinto negativo, é o último andar... – Pelos deuses, ele estava quase chorando. – O sindicato dos flangos vai saber disso! Eles vão saber disso!
– Como saberemos que não está mentindo?
– Eu tenho cara que estou mentindo? – Uma pequena lágrima brilhou nos cantos dos olhos do garoto asiático. – Eu juro que se não estivesse cercado e desarmado... Solte logo essa Galinha! Solte!
– Galinha? Isso não é uma galinha.
– Não? Se não é uma galinha é um pato então.
– Olhe mais de perto. – Fredini pegou com as duas mãos o animal. – Isso não é uma galinha, é um pato.
– Cara, desde quando patos têm aparência de galinha, pés de galinha e cheiro de galinha?
– Apenas olhe.

Fredini passou a varinha e um véu brilhoso cobriu o animal que simplesmente se transformou. Aquele gemido em outrora era o reflexo de uma simples magia; uma transformação. E assim que o animal deu uma bicada na bochecha de Yokota, sua aparência levemente embaçada se transformara de uma galinha para um pato. Eu acho que to meio bugado, mas ao menos, descobríamos a localização de Letkaske.

– Ho... Isso vai ter volta, eu prometo. – Yokota estava sendo amarrado. – Vou tacar fogo na casa de vocês com meus flangos assassinos, seus bandos de bakayarou...
– O senhor Rudini-Fredini mostra mais uma vez suas incríveis façanhas. Boa noite, Rio de Janeiro! – O garoto chacoalhou sua cartola e sorriu.
– Ninguém sabe quem é o Lucas Yokota... – E o asiático se calou.

Thay amordaçou Yokota e o deixou totalmente enrolado com uma fina corda que o mágico tirou de sua cartola. Observei por um momento que apenas eu estava vulnerável, pois os outros ainda portavam os trajes que os tornavam invisíveis – já que o meu foi danificado por aquele minotauro babão.
Assim que saímos da quarta torre fomos direto para a parede interna da muralha.

Um á um, ficamos suspensos nos esgueirando horizontalmente pela parede como se fossemos lagartixas, – que nojo. Para conseguirmos tal proeza de resgatar a nossa aliada, teríamos que ser muito cautelosos se quiséssemos chegar até a quinta plataforma no subsolo. Mesmo que não fizéssemos idéia de como conseguir alcançar os andares inferiores, morreríamos tentando – espero que não chegue a esse ponto – mas a vida dela estava em jogo.

Confesso que fiquei impressionado com a vista que tive, pois imaginava algo totalmente descuidado e rústico dentro das muralhas. Algo que fosse desordenadamente assustador e imaculado ao mal. Contudo, além daquele castelo ser enfeitado com tantos detalhes perfeitos, a parte interna tinha longos e belos jardins com muitas árvores e chafarizes em todo o gramado. Sem contar muitas escadarias nos corredores laterais que ficava logo a baixo das grandes muralhas, e no centro, o espalhafatoso hall de entrada com seu longo tapete vermelho que ia ao começo dos curtos degraus até a imensa porta adentro. Nós nos entreolhamos e por unanimidade, decidimos que iríamos enfrentar um dos corredores nas laterais da muralha. E começamos a explorar a fortaleza dos renegados.

...

A vela gasta iluminava o que podia no corredor escuro que mais parecia uma masmorra. Passadas cautelosas e um pouco medrosos, afinal estávamos entrando em terreno inimigo. Ruídos de ratos correndo pelos cantos e se acasalando faziam o clima uma completa tensão, mas ainda sim, isso tudo não deveria fazer de nós meros invasores acuados. Tampouco seriamos, pois se nossa vida estivesse em jogo ninguém hesitaria em matar. Depois de algumas portas emperradas e proles do tártaro em nosso caminho, finalmente dobramos um longo e imenso círculo oval ligado á quatro corredores – quatro pontos cardiais, norte, sul, leste e oeste.

– Me deixa adivinhar, vamos ter que nos dividir aqui em baixo também? – Falei com uma centelha de mau humor embutido nas minhas expressões. Até por que eu fiquei suspenso com uma baba de minotauro nas minhas roupas e depois ainda falaram que eu demorei, apanhar ninguém quer né?
– Se fazermos isso vamos multiplicar nossas chances de achar Letkaske. – Vitória falou. Ela estava certa, afinal.
– São quatro corredores, mas um nós já sabemos que da diretamente na saída. – Vinicius afiou os dedos e jogou o cabelo negro para o lado. – Vamos fazer o seguinte, Fredini e o Gui vão pelo leste. Mama, Thay e eu pro oeste. – Ele olhou pra mim e deu uma piscadela. – A Vitória acompanha o Lyu, vamos.

[...]

Naquela altura do segundo tempo eu não estava preocupado em quem viria comigo. Mas devo dizer que a companhia de Vitoria seria melhor que de Fredini, por que convenhamos, ele é chato pra caramba. Optamos por andar sobre o teto com os vans, e por isso ativamos o modo de escalada e fomos vagando silenciosamente pelo teto rochoso. Mais e mais velas gastas pigarreavam sobre o chão pueril e seco - acho que a empregada desse lugar deve sofrer muito pra limpar isso aqui viu. Assim que dobramos uma primeira curva daquele lugar labiríntico, gritos romperam os corredores macabros e assustadores.

– Que merda ta acontecendo aqui em baixo? – Eu olhei pra Vitoria.

– Não sei, mas é melhor irmos logo antes que... – A filha de Nikê ia continuar falando quando os gritos se elevaram de forma incomoda.

Paramos pra observar o corredor e suspeitei que os gritos viessem das paredes. Segundos depois ouvindo tais sons vociferados em agonia, Vitoria confirmou essa hipótese quando apontou para uma porta que ficava na parede.


– Matem ela! Matem ela! Socorro! Merda, merda, merda! – Os sons de dentro da porta aumentavam. – Matem essa safada! Cadê meu raio? Cadê aquela porcaria!

E então o silêncio ficou explicito. Entretanto, um ribombar cruzou a porta com tanta força que fez com que a arremessasse até o outro lado da parede. A fumaça tomou conta de onde estivera à porta – agora totalmente destruída – e segundos depois uma garota saiu aos tropeços com um raio na mão. Ela não me era estranha, e quando a fumaça se dissipou pude ver claramente seus cabelos loiros e olhos de menina boazinha. Julia, esse era o nome dela... Então era ai que ela tinha se enfiado? Literalmente, em um buraco. Ela parecia um pouco perturbada, e eu não falo por ela jogar o raio no chão e criar uma mini explosão para se coçar alternadamente em todo o seu corpo. Vitoria olhou para mim com cara de desdém, nós dois nos encolhemos nos cantos do corredor para que Julia não pudesse nos ver, mas creio que nem deveríamos nos preocupar com isso.

– Hahaha! Sofra com essa tua bunda peluda lá no tártaro que te pariu. – E surpreendentemente ela pegou a arma dourada do chão e começou a dançar.

Esse momento deveria ser gravado e mandado para o youtube. Uma pequena aranha desceu até o nariz dela sem que ela se desse conta. A luz da vela iluminou a sombra e pude ver claramente a teia percorrer todo aquele perímetro, mas quando Julia descobriu que a aranha estava viva – seu raio começou a despencar uma saraivada de trovões menores que colidiam com todos os lados dos corredores. Ela nem ao menos olhava pra aranha, e quando conseguiu levantar de seu tombo todo desengonçado, ela correu tanto que sumiu na escuridão. Vitoria rompeu em gargalhas, mas acabou encostando-se a um morcego que zarpou de seu sono com fúria na garganta, e ai, foi a minha vez de rir da cara de assustada dela...

Estávamos tão entretidos em rir que quase não notamos que alguém se aproximava. Graças à última vela a quilômetros de distância, pudemos observar duas sombras caminhando até a nossa direção.

– Ela fez isso mais uma vez. – O garoto de óculos e jaleco de médico apareceu dentre a escura passagem e apontou para os estragos causados pelos raios de Julia.

Suas expressões demonstravam profundo tédio, mas ainda sim, era uma incógnita ler a sua maneira de se portar. Ele bebia seu café pacientemente, tranquilo e com os óculos a se remexer um pouco quando seus cabelos pontiagudos desciam até a testa. Já a sua companheira, ela tinha um cabelo muito curioso. Não sabia se era castanho, ruivo, loiro ou uma mistura dos três. Podia até mesmo ser multicolor, entretanto, ela possuía uma beleza indiferente à cor dos cabelos. Seus lábios roxeados não pararam de mergulhar na xicara de chá. Ela também possuía um jaleco branco, e ele lhe dava uma postura mais profissional – tipo uma farmacêutica.

– Ela só tem medo de aranhas, eu a entendo. – A garota disse.
– Ela é uma filha de Zeus, deveria agir e se comportar como tal. – Vitor Mesquita bradou.
– Dê uma chance a ela, e além do mais, ela que conseguiu a Dionix, está se esquecendo?
– Não, não estou. – O garoto observou em volta. – Só quero ver quem vai limpar essa bagunça.
– Seria bom se aquela menina do acampamento pudesse fazer isso para nós. Já passamos tempo demais batendo na mesma tecla, está na hora de vermos se isso realmente deu resultado.
– Calma Ortiz, tudo em seu momento. – Ele a encarou, depois sorriu. – Você sabe muito bem que precisamos de tempo para saber como está o cérebro dela, além de que, não sabemos se há alguma espécie de efeito colateral.
– Nas primeiras cobaias não tiveram. – Bianca engoliu o chá. – Os medicamentos foram controlados e devidamente aplicados. Você viu por si só, está na hora de começarmos a usá-la de forma benéfica a nossa causa...
– Entendo, talvez tenha razão. Mas ela ainda é nosso precioso amuleto de troca.
– Estamos apostando alto nisso, espero que vocês tenham certeza de que isso vá funcionar. – Ortiz deu as costas para Mesquita e começou a andar por onde veio.
– Não esquenta com isso. – A xícara caiu dos dedos de Vitor. – Se não der, eu mesmo faço com que isso venha a dar certo. – Os olhos brilharam como se guardassem um poderoso segredo. – Nem que eu tenha arrancar as tripas de todos eles, isso vai funcionar.


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