CAMPO DE BATALHA

Miyako estava encarando as árvores negras do outro lado do vilarejo, estava tão compenetrada pensando no que poderia ter motivado Ken a se embrenhar em uma floresta densa, deixando seu parceiro para trás que só percebeu o que aconteceu quando Hikari se jogou sobre ela, fazendo com que as duas rolassem um pequeno barranco enlameado.

XV-mon caiu pesadamente onde estava segundos antes, fazendo o chão estremecer. O Digimon alado trazia vários ferimentos e um rasgo na barriga. Apesar da gravidade do ferimento, ele rapidamente se pôs de pé e voltou ao campo de batalha.

A menina ajeitou os óculos e pôde ver seu Aquilamon usar Blast Ring contra o urso negro, o monstro ficou atordoado e desabou sobre a pilha de escombros. Parecia que finalmente tinham vencido, mas o monstro se levantou depois de um urro ensurdecedor e reiniciou os ataques.

A garota ainda se lembrava da dificuldade que fora derrubar Golemon, devido a sua dura carapaça e o extremo em que chegaram para impedir que Devidramon machucasse mais alguém. Depois de tudo, Miyako achou que nada mais a surpreenderia, entretanto, WaruMozaemon, parecia uma mistura dos dois. Seu corpo não era tão resistente, mas ele parecia não se importar com os danos que tomava e seus ataques dizimavam tudo pelo caminho, fossem as construções do vilarejo ou seus parceiros.

Se Ken estivesse ali, provavelmente teria alguma ideia brilhante de como derrotar o monstro descontrolado, mas sem o gênio no grupo, sobrava a ela planejar algo, pois se dependesse de Daisuke, ele tentaria resolver isso na força bruta. Quando lutaram contra Devidramon, Takeru tomou as rédeas da situação e deu cabo do monstrengo enquanto ela socorria Iori. Mas, como aconteceu com Golemon a solução final foi destruí-lo. Miyako se sentia mal pelas mortes, mas agora havia um novo motivador para manter WaruMozaemon vivo. Se ele voltasse a sua forma original, talvez pudesse contar o que aconteceu a ele, e eles teriam mais pistas sobre quem estava fazendo tais coisas no Digital World.

XV-Mon, Aquilamon e Angemon sobrevoavam o monstro a uma distância segura das longas e perigosas garras. Miyako traçava mentalmente qual melhor estratégia, quando ouviu a voz de Motomiya se sobrepor ao barulho das ondas e ordenar um ataque combinado. O trio acatou o comando e desceu em direção ao monstro. Aquilamon desviou para a esquerda e deu um rasante quase colado ao solo. XV-Mon desceu em parafuso com o punho fechado, enquanto Angemon desviou para a direita, tomando distância suficiente para o Heaven’s Knukcle. Era o ataque perfeito, o urso de brinquedo receberia ataques por todos os lados, de forma que não teria como desviar da saraivada de golpes.

Quando XV-Mon estava há menos de um metro de WaruMozaemon, o urso gigante parou, assumiu uma posição meditativa, um olho amarelado surgiu na barriga e então um estranho coração se formou diante dele. A estrutura que parecia uma névoa deslizou vagamente, sem um rumo exato e atingiu XV-Mon em cheio.

Apesar do incomodo da névoa, o Digimon continuou avançando, mas não desferiu o poderoso soco no meio do focinho do urso, desviou o ataque por centímetros e enterrou o punho no chão, fazendo voar escombros. Aquilamon e Angemon pararam no meio de seus movimentos apenas para ver WaruMozaemon desferir um chute contra o peito do Digimon azul e mandá-lo longe, no caminho aberto em direção a praia.

“XV-Mon!” Daisuke gritou sem entender, pontapés não eram as habilidades mais visíveis do urso, de forma que seu Digimon conseguiria desviar daquela investida facilmente. “XV-Mon! Vamos, levante.” Gritava para o parceiro abatido.

“Eu não quero mais lutar.” Arfou o Digimon com voz de derrota.

“Mas do que está falando? Nós ainda não vencemos...” Resmungou sem entender. Nunca XV-Mon desistia do combate, por mais cansado ou ferido que estivesse.

“Angemon, Aquilamon, recuem!” Takeru gritou de repente, sinalizando desesperadamente para a dupla. Ele já tinha visto isso antes, essa vontade inexplicável de querer abandonar o campo de batalha. “É aquela névoa em forma de coração.” Explicou ao líder. “Isso desmotiva os Digimon a continuarem lutando.” Encarou o céu se certificando que a dupla de Digimon alados já estavam em distância suficiente para não serem atingidos caso WaruMozaemon repetisse o ataque.

“Mas, o que vai acontecer com o XV-Mon?” Observava seu parceiro ainda no chão, sem vontade nem ao menos de se por de pé.

“Ele vai ficar melhor quando o efeito do golpe passar, mas por hora, ele não vai ser muito útil.” Explicou, apenas para ver a expressão no rosto do amigo endurecer. Daisuke tinha ficado fora de toda ação e finalmente quando teve oportunidade, acabou por ser abatido.

Miyako e Hikari finalmente venceram uma grande pilha de escombros e se uniram aos garotos. XV-Mon tinha voltado a sua forma original e resmungava coisas que pela distância era impossível entender.

“Um ataque combinado dos nossos parceiros podem surtir efeito.” Sugeriu Hikari, enquanto observava Daisuke ir até V-Mon. Aquilamon e Angemon circundavam o Digimon descontrolado, apenas para contê-lo caso partisse para o ataque enquanto Motomiya cruzava o campo de batalha para recuperar seu parceiro.

“Eu tenho outra ideia.” Miyako ajeitou os óculos que deslizaram pela ponte do nariz. “Takeru-kun, você pode usar os poderes de Angemon para fazer WaruMozaemon voltar ao normal, certo?”

“Bem, Angemon não, mas se ele evoluir para HolyAngemon pode usar o Holy Disinfection. Não é garantido, mas pode funcionar. Entretanto, HolyAngemon precisa de alguns minutos para preparar o golpe, ainda mais em um Digimon com essa magnitude.” Voltou o olhar para WaruMozaemon que apenas encarava os voadores que o cercavam.

“Certo, Hikari e eu vamos segurá-lo até que HolyAngemon esteja pronto.” E lançou um olhar a garota. Hikari não parecia muito disposta a enviar sua Tailmon para o campo de batalha, mas acabou concordando.

Quando Daisuke já estava em um local seguro, com V-Mon nos braços, Miyako e Takeru chamaram seus parceiros de volta. Aquilamon combinou sua evolução com a de Tailmon e em meio a uma luz fortíssima, Silphymon apareceu. Rapidamente, o Digimon cruzou o espaço e derrubou WaruMozaemon da pilha de escombros com um chute, o monstro estava tão impressionado com a evolução de DNA que não teve uma resposta imediata ao golpe que recebera.

Takaishi aproveitou a oportunidade e evoluiu Angemon para HolyAngemon, pedindo que ele usasse seus poderes para tentar fazer com que o Digimon voltasse ao normal. Silphymon estava sentado sobre o peito do urso, desferindo socos contra a expressão macabra que o bicho trazia. Não demorou muito para que o Digimon de brinquedo desvencilhasse um dos braços e atingisse-o, fazendo com que algumas penas voassem e cobrissem os escombros.

“Silphymon!” Hikari gritou desesperada. Miyako cerrou o punho e rangeu os dentes, ela podia ver como seu parceiro estava ferido, mas HolyAngemon ainda não estava pronto.

“Silphymon, Dual Sonic!” Ordenou. O monstro vermelho e branco usou suas pernas fortes para saltar para o lado e se posicionar. Em poucos segundos, uma poderosa luz emanou das mãos do Digimon e atingiu WaruMozaemon que tentava se pôr de pé. O monstro cambaleou e rugiu, cobrindo o som do vento e do mar com um urro terrível. Os olhos pareceram ficar ainda mais sombrios e mesmo com parte do braço destruído, rumou para a direção de Silphymon.

O monstro atingiu grande velocidade e Silphymon mal teve tempo de desviar das garras que avançaram em sua direção. O Digimon foi atingido em cheio e se chocou contra uma das poucas construções que permaneciam parcialmente em pé. Uma nuvem de pó se levantou, cobrindo a visão de todos, mas WaruMozaemon pareceu não se importar com isso, pois avançou em meio a nuvem cinzenta.

Miyako percebeu como Hikari estava tensa. Considerando a falta de visibilidade, elas não sabiam em que estado seus parceiros estavam, de forma que nem sabiam se ele ainda poderia continuar na batalha. Uma luz laranja se iluminou em meio ao pó que ainda deslizava no ar e WaruMozaemon apareceu, envolto em uma grande bola de fogo. O monstro se chacoalhava, tentando apagar o fogo que chamuscava sua pelagem. Silphymon saltou do meio da nuvem, estava bastante ferido, mas ainda aguentava ficar de pé.

“Muito bem, HolyAngemon.” A voz de Takeru ecoou em meio ao caos, chamando a atenção para seu parceiro, que sobrevoava o urso incendiado. As quatro asas se fecharam em torno do corpo angelical, então se abriram majestosas e uma onda multicolorida deslizou pelo ar, atingindo WaruMozaemon em cheio. O monstro urrou e tentou fugir, mas ficou preso dentro da onda do ataque. Em poucos segundos, as chamas que o consumiam se apagaram e com uma luz forte, o Digimon voltou a forma de Mozaemon, antes de cair com um baque surdo no chão atulhado.

“Ele está morto?” A voz de Daisuke ecoou pelo local, agora mergulhado em silêncio.

“Acho que ele está só desmaiado.” Palmon respondeu, encarando o urso amarelo desacordado.

Hikari correu em direção a Silphymon, encarou e analisou os ferimentos do parceiro e sorriu aliviada quando constatou que apesar da gravidade, o monstrinho estava bem. Miyako encarou Takeru, que já trazia um esgotado Patamon nos braços e sorriu quando ele se aproximou fazendo um sinal positivo com o dedão. A garota rumou até o Mozaemon adormecido e encarou seu estado, não era muito melhor do que Silphymon ou XV-Mon, mas pelo menos ele ainda estava vivo.

“Bem, agora precisamos esperá-lo acordar.” Takeru emparelhou com a veterana.

Hikari se reuniu a eles, trazendo Salamon e Hakwon consigo. Apesar dos machucados visíveis, a dupla estava bem e só precisava de um merecido descanso. Daisuke também se unira ao grupo, V-Mon ainda resmungava coisas como ser fraco e impotente, não ser merecedor da parceria com líder e outras frases autodepreciativas, o que indicava que ainda estava sob efeito do ataque de WaruMozaemon. Palmon vinha logo atrás, acompanhada de alguns Betamon curiosos, que não entendiam como um fofo urso de pelúcia destruíra todo vilarejo.

“Mas nós temos esse tempo?” A moça perguntou mais para si mesma, ao desviar o olhar para a orla da floresta.

=8=

A expressão de Aya não poderia ser mais inusitada. Ela não esperava que enquanto conversava com o pretendente a namorado através de videoconferência, um estranho portal fosse se abrir em seu computador e um grupo de adolescentes e seus Digimon fossem cair sobre ela, soterrando-a no chão do quarto.

Encarou Miyako que trazia uma expressão abatida e cansada, então desviou o olhar para o resto do grupo, a delicada Hikari que a cumprimentou com um sorriso e aqueles garotos do primeiro ano, que ela não entendia porque Miyako ainda mantinha amizade.

Inoue se levantou rapidamente, reuniu os amigos e Digimon e com um sorriso forçado, disse que explicaria tudo na segunda-feira, quando se encontrassem na escola. Deu uma espiada por cima do ombro, só para ver a expressão assombrada que o garoto do terceiro ano trazia no vídeo, enquanto observava os acontecimentos do quarto, sem entender.

Aya viu a amiga abrir a porta do quarto e ser seguida pelo exército de crianças e seus companheiros. Cumprimentar sua mãe e sair pela porta da frente. Quando espiou pela janela, viu o grupo descendo a rua, e o garoto do cabelo loiro estava ao celular, avisando alguém que eles estavam bem.

Iori pareceu aliviado do outro lado da linha quando Takeru informou que apesar da oscilação do portal, eles tinham desembarcado na casa da amiga de Miyako, que não era muito longe do prédio onde a maioria dos Digiescolhidos morava. Entretanto, ficou em silêncio quando o loiro informou que Wormmon estava gravemente ferido e Ichijouji desaparecido. Takaishi disse que passaria mais informações quando voltassem para casa e desligou o celular.

O grupo estaria em completo silêncio se não fosse por V-Mon ainda se lamentando da sua inutilidade e Daisuke tentando animá-lo de todas as formas. Inoue era a que permanecia mais quieta, carregando Wormmon nos braços.

Mozaemon demorou a despertar e finalmente, quando o fez não trouxe nenhuma informação relevante. Disse que estava passeando na floresta quando viu uma luz forte e uma voz ordenando que ele evoluísse e mostrasse seu valor. Ele não viu quem o invocou e não saberia dizer se a voz era feminina ou masculina. Depois disso, tudo pareceu como um sonho e ele não tinha certeza de como ou por que saiu da floresta e atacou o vilarejo em Coela Beach. Se lembrava muito pouco da luta que travara contra Stingmon e não fazia ideia sequer que havia outro humano lá, antes deles. Ou seja, ele não fazia ideia de onde Ken poderia estar.

Miyako queria fazer uma busca pela floresta, mas era visível que ninguém ali aguentaria dar mais um passo. Palmon se ofereceu para procurar o adolescente e entrar em contato assim que tivesse alguma novidade. Não era o que a garota do cabelo lavanda desejava, mas seu voto acabou sendo vencido e só restou-lhe voltar para Odaiba.

O grupo chegou diante do prédio onde Takaishi e Inoue moravam, Hikari disse que voltaria para casa, para descansar e cuidar de Salamon, e prontamente, Motomiya se ofereceu para acompanhá-la.

“O que nós vamos dizer aos pais do Ichijouji-kun?” Yagami falou de repente, encarando Wormmon adormecido nos braços da veterana.

Miyako não tinha pensando nisso. Não era apenas o sumiço de Ken puro e simples, seus pais ficariam preocupados, ainda mais com o histórico que o garoto dos cabelos escuros carregava. Provavelmente, o senhor e senhora Ichijouji entrariam em pânico, achando que Ken tinha fugido novamente, e isso afetaria e muito a delicada relação que o gênio tentava reconstruir com os pais.

A garota temia pelo pior, afinal, ele tinha sumido e deixado seu parceiro para trás. Mesmo quando Ken era o Kaiser e desprezava Digimon fracos, Wormmon o acompanhava para todo lado. Não fazia sentido agora que ele e o inseto se davam tão bem, ele ter abandonado o parceiro. Se Ken tinha deixado Stingmon para trás, algo muito grave deveria ter acontecido. Inoue estremeceu e sentiu os olhos ficarem úmidos, ela não queria mostrar o quão apavorada estava diante dos amigos, mas não sabia por quanto tempo mais conseguiria manter aquela máscara.

“Eu vou conversar com os pais dele, dizer que ele vai dormir lá.” Daisuke sugeriu.

“Mas, não faria mais sentido se o próprio Ken pedisse? Acho que os pais vão suspeitar de qualquer forma.” Takeru arqueou uma das sobrancelhas.

“Talvez devêssemos dizer a verdade.” Hikari suspirou.

“De jeito nenhum.” Miyako respondeu aflita. “Os pais dele, eles vão ficar muito preocupados. O Ken já fugiu de casa uma vez, eles podem pensar que algo assim aconteceu de novo.” Instintivamente, apertou Wormmon nos braços.

“Miyako tem razão.” Daisuke concordou com um aceno de cabeça. “Takeru e eu vamos dar um jeito nisso.” E lançou um olhar ao loiro que pareceu não gostar nada de ter sido incluído no esquema. “Você precisa descansar e cuidar do Wormmon.” E encarou a amiga como se fosse uma ordem.

“Eu vou conversar com o Iori-kun, e ver se ele consegue localizar o sinal do Digivice do Ichijouji-kun. Ele ainda deve estar com o dispositivo.” Hikari se ofereceu, sorrindo para a amiga. “Não se preocupe, nós vamos encontrá-lo.”

Só sobrou a Miyako sorrir do apoio que recebia dos amigos. Depois de se despedir, rumou para o apartamento e fez o melhor que pôde para estabilizar Wormmon. O resto do dia avançou rápido e sem muitas novidades, a garota repassava todas as informações que tinha, mas nada explicava o sumiço de Ken. O correr dos minutos a deixava mais preocupada, e ela se sentia cada vez mais inútil e irresponsável por estar protegida no conforto de seu quarto, enquanto o garoto estava perdido no meio da floresta.

Quando os primeiros sinais da noite bruxulearam através de sua janela, Miyako se levantou da cama e encarou o computador sobre a escrivaninha. Ela sabia que seria muito perigoso ir para o Digital World àquela hora, sem avisar seus amigos e sem que Hawkmon estivesse totalmente recuperado, mas ela nunca iria se perdoar se algo acontecesse com Ichijouji.

“Eu não posso esperar mais...” Falou enquanto usava seu Digivice para abrir um portal. Hawkmon deslizou da cama que dividia com Wormmon e foi de encontro à parceira, com uma expressão que raramente se via no rosto do monstrinho.