[flashback]

A porta de metal se abre rangendo, ergo a cabeça para ver quem é e percebo que eu estava chorando e ponto de criar uma pequena poça de lágrimas no chão. O temor aumenta sobre o meu corpo ao ver quem entra. A voz da pessoa que me agredia não era de um homem, era de uma mulher. – Pelo visto você sobreviveu ao meu feitiço, pequena Jhynn. – Uma mulher com quem eu convivi na infância, alguém que eu conheci e podia dizer que amava. Hedite Maicoom, minha falecida tia. Mãe do Roger.

– Hedite? Não é possível. – Mas penso que é possível sim. – Por quê?

– Não sou Hedite, sou Naga. - ela fez uma breve pausa, até que enfim respode– Por que você pode ser a Herdeira.

[...]

– Eu vou acabar com você, sua vadia velha. Você se fez de morta! – Digo para ela, sentindo meu corpo arder de raiva.

– Poupe suas forças querida, e se levante. – Ela andava em minha direção. O salto batia no chão e o som era irritante, andava colocando uma perna na frente da outra e movimentando o quadril. Sua roupa era como um fardamento militar, mas com estampa de cobra.

Ao se aproximar mais ela ergue a perna com um impulso para frente e eu sinto meu corpo cair para o lado. Meu nariz começa a sangrar e doer. Solto um gemido de dor ao sentir meu couro cabeludo quase ser arrancado com um puxão de cabelo. Hedite, ou Naga, como ela prefere ser chamada agora, me segura pelos cabelos e em seguida me empurra em direção da porta. – Andando vadiazinha. – Ela diz friamente, atrás de mim.

Saio pela porta, caminhando em um corredor mal iluminado. Poucas lâmpadas estão nos cantos do teto e mais poucas ainda funcionam. As paredes também são de metal enferrujado e corroído. – O que você quer dizer com eu poder ser a Herdeira? – falo baixo, mas o alto possível para ser ouvido. Ela estava bem atrás de mim, caminha mais lentamente do que eu.

Os seus passos eram barulhentos, nada sorrateiros como cobras. – Herdeira de Netuno. – Diz ela.

– Quem? – Eu parei em frente a uma pequena escada de metal que dava em uma porta. Sim, aquela porta oval era realmente de navio.

– Suba. – Foi apenas o que ela disse e eu subi. Abri a porta pesada e entrei, agora estava melhor iluminado, mas ainda era assustador. Uma enorme sala cheia de gaiolas grandes o suficiente para elefantes. Continuei caminhando lentamente até que ouvi ela falar. – Netuno, o deus do mar.

– Mas não são as sereias as filhas de Netuno?

– Não estou falando sobre ser abençoado por um deus. Estou falando de possuir o DNA de Netuno.

Meu corpo gela, ou ela era definitivamente louca ou estava mais encrencada do que imaginava. – Netuno existe?

– E esta mais perto de você do que imagina. – Conversando agora, ela se parece com a minha tia.

– E por que você acha que eu sou filha de Netuno?E se eu for, o que quer comigo? – apesar de estar curiosa eu também estou com medo da resposta.

– Não é filha exatamente. É Herdeira mágica. Para Netuno viver na Terra ele precisou se desfazer de parte de seu poder, e ao descartar essa carga foi parar em uma criança. Nós procuramos o Herdeiro há anos, mas sabe o que mais é divertido?

– O que?

– Que meu filho pode ser o herdeiro. Assim como você, ou a Matilde. Nós usamos um artefato para localizar o poder de Netuno, não conseguimos o local exato, apenas uma grande área de busca. Fomos reduzindo as opções de herdeiros e chegamos em vocês três. – Ela diz animada, ou orgulhosa de si mesma.

– Aí Netuno vai me matar e pegar seu poder de volta? – Minhas mãos tremem desesperadamente.

– Não. Se ele fizesse isso ele seria expulso daqui. Deuses não podem viver aqui. Ele vai utilizar o herdeiro para completar um feitiço, ele vai juntar a magia, não pegar de volta.

Chegamos a uma nova escada. Essa é maior e a porta fica no teto, acho que dera no convés do navio. Subimos a escada e eu empurrei a placa de metal e no mesmo instante uma brisa gelada entrou. Vou para fora e observo meu vestido todo sujo e rasgado. Me viro e observo Naga saindo. – Que feitiço ele quer realizar?

– Ele quer trazer o criador das sereias e criaturas marinhas de volta a vida.

– Quem?

– Jhynn, você é muito nova para ter ouvido falar nele. – Ela aponta para uma escada que vai para fora do navio. – Vá para lá. – Após dizer isso ela entra novamente no navio.

Se eu descer do navio, o que terá lá me esperando? Bem, preciso ir lá ver. Vou até a beira do navio e espio lá em baixo. O navio esta praticamente enterrado na terra, com poucos metros a cima do solo. Em terra firme, em alguns metros a frente tem uma espécie de palco de pedra, redondo. Não, não é redondo. É na forma do rosto de Netuno, pelo menos se parece com as figuras dos livros de história. No palco tem um altar, e uma mulher virada de costas para mim. Não é uma mulher, é a Matilde.

Desço a escada e corro até o local. Fico com receio no começo ao pisar no palco de Netuno, mas depois subo e chamo pela Matilde. Ela não se vira e eu fico com mais medo ainda. O que ainda me falta acontecer hoje? A noite escura apenas iluminada pela lua não me ajuda muito a ver o que ela esta fazendo. Me aproximo mais e vejo que ela não esta mais com o vestido que ela estava na sua festa. Agora ela esta com um vestido preto longo, cheio de rendas e mangas com babados. Chamo novamente o seu nome e agora ela se vira.

Quero correr, fugir para o mais longe possível. Matilde se vira para mim, sorrindo com os dentes brancos como se fossem pintados. Sua boca esta negra, mas não parece batom. Seu olhar é obscuro e sua pele é tomada por veias finas e escuras, fazendo com que elas se destaquem sobrem à pele branca.

– Jhynn Maicoom, o que faz aqui? – Apesar de sua aparência ter mudado, sua voz continua a mesma.

– A Naga, ou Hedite me trouxe até o navio. Ela diz que eu sou a Herdeira de Netuno, deve ser louca.

A expressão de Matilde muda, ela fica séria primeiro e depois arqueia as duas sobrancelhas e seu rosto é tomado por raiva. – EU SOU A HERDEIRA DE NETUNO!

– Ei, calma aí. – Não sei por que eu disse isso, deveria correr enquanto podia.

– SUA PUTA EMPOSTORA. NÃO IRÁ ROUBAR MEU REINADO. – Ela grita de forma ensurdecedora. – Quando o verdadeiro pai renascer eu me tornarei uma rainha, a rainha que eu nasci para ser. - Ela volta a sorrir novamente, mas de forma muito mais sinistra. – E VOCÊ NÃO IRÁ ME ATRAPALHAR.

– Puta é você. – Digo a ela. Deixo a magia tomar conta do meu corpo, sinto a terra sobre os meus pés. Minhas costas queimam, mas de forma prazerosa e entoado sobre um brilho verde surge um par de assas roxas. São parecidas com asas de borboletas, mas maiores e mais finas. Eu sempre gosto de admirá-las, mas hoje não posso me distrair com a sua beleza. Meu vestido desgastado se desintegra em um sopro mágico e meu corpo é coberto por folhas e flores. Uma saia verde com o formato de pétalas, segurado com um cinto rosa com uma flor. Sobre os meus seios um tomara que caia verde de tecido semelhante a uma fina folha de arvore. E por mim meus punhos são protegidos por braceletes também verdes, mas esses são duros e resistentes, enfeitados com uma flor rosa. – Queridinha, não preciso ser herdeira de merda nenhuma para ser uma rainha. Sou uma fada da terra, consigo controlar um dos elementos mais poderosos. E a sereia aí faz o que, bolinhas de sabão?