Melanie escrita por Mrs Dewitt


Capítulo 3
O fim




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– Papai, voltei! – Melanie entrou em casa, pendurando sua capinha vermelha atrás da porta dos fundos. – Voltei da casa da vovó!

Ela depositou a cesta de vime sobre a mesa, e olhou em volta. O céu noturno visível pelas janelas estava incrustrado de brilhantes, parecia que todas as estrelas do universo tinham vindo dar uma olhada naquela menina que morava no meio da floresta. Melanie sorriu. Amava as estrelas.

Mas por que a casa estava toda aberta?

– Papai? – Ela chamou. Sua voz doce ecoando pela casa, aparentemente vazia. Melanie a percorreu inteira, todos os andares da casa de tijolos, todos os cômodos, passou por todas as fotografias – ela pequena, seu pai com seus tios, a antiga casa de madeira que seu tio fizera e a primeiríssima, de palha -, por todos os vasos que ela fazia questão de encher de flores na primavera. Estava tudo vazio. Frio, abandonado. Não havia vivalma naquela casa. – Pai? – Chamou novamente, num sussurro. Uma brisa gelada passava pela janela, mas ela não se deu ao trabalho de fechá-la. Todo o equipamento de trabalho – as pás, o machado, o cal, o medidor de nível – tudo, estava ali. A oficina estava fechada. Onde eles estariam?

A menina vestiu novamente a capinha vermelha e puxou o capuz, se enrolando tentando proteger-se do frio. Passo a passo, continuou pela estradinha floresta adentro, além da sua casa. Às vezes, chamava baixinho “pai”? .

A floresta agora era ameaçadora. Algo a impelia a continuar andando, sentia que algo estava errado, mas o quê? As corujas piavam agourentas, e agora parecia que as estrelas gozavam da sua cara, da sua coragem de se aventurar em um lugar que só se deve visitar em sonhos. Uma floresta encantada, à noite. Algo passou veloz pela sua frente, na estrada. Teria sido um coelho? Bem, não importa. Melanie tropeçou e caiu. Já estava sem forças pra continuar, e deixou que seus olhos se fechassem em contato com a terra gelada e dura. Algo tinha acontecido, eles nunca a deixaram sem avisar antes. Ela respirou fundo e abriu os olhos. Congelou de pavor.

Sete vultos baixinhos e grotescos caminhavam lentamente em direção a ela. O mais próximo lhe estendeu a mão e, ao ver que a menina se encolhia de terror mudo, lhe disse:

– Não tenha medo, vamos ajudá-la. – Sua voz era profunda, gutural. Arranhava na garganta.

– É, vamos ajudá-la! – Outra voz gritou, histérica. Como se seu dono estivesse a beira da insanidade.

– Vamos, confie. – A voz gutural chamou de novo. Melanie pegou sua mão calejada e se ergueu, deixando ser guiada pela estrada infinita por aqueles sete anões. Quando as horas mortas começaram a soar, ela pode avistar um chalé, um chalezinho, ao pé de uma montanha. Cercado de carvalhos, algumas luzes estavam acesas. Quando se aproximaram, Melanie pode enfim ver o rosto de seus salvadores. Eram entroncados, toscos, como se fossem pequeninos bonecos de madeira malfeitos cujo alguém produziu lhes tirando lascas. Tinham dentes brancos e reluzentes, e olhos espertos, maliciosos e cruéis sobre as sobrancelhas grossas. - Seu pai e seus tios estavam te procurando. Devo dizer que você não se parece nada com eles. – O anão continuou, e a empurrou até a porta. – Se quiser vê-los, eles estão nos fundos.

– Nos fundos? Tudo bem. – Ela se sentiu feliz, pode-se dizer. Tudo estava tão estranho, tinha tanto medo. Encontraria seu pai, e ele a levaria para casa e a contaria histórias enquanto ela lhe tricotava meias de lã e tudo estaria bem. Passou correndo pela sala, em direção á cozinha. Todos os móveis eram rústicos, tudo parecia ter sido feito pelos anões. A lareira estava acesa, e um fogo gostoso e crepitante logo a aqueceu. Sentia que tudo ficaria bem. “Qualquer coisa que tenha sido, passou” pensou, com a mão na maçaneta da porta dos fundos, e suspirou, se sentindo aliviada.

– Não sei se vai ser uma cena muito bonita. – O anão de voz histérica disse, seguindo-se a isso uma risada completamente despida de humor, totalmente desalmada e insana. Fazendo muito esforço, Melanie virou-se na direção dos anões. Não havia mais qualquer indício de que eles queriam ajuda-la, como haviam agora a pouco. Ela viu somente sete pares de olhos negros como carvão, fitando-a. Em todos havia um brilho louco. Animal.

– Não vai abrir a porta? – Perguntou um dos anões, um riso maníaco passou pelos seus lábios. Melanie não sabia, seria mais perigoso abrir a porta ou ficar aqui dentro? Decidiu abri-la.

Com os dedos tremendo, ela recolocou a mão direita na maçaneta, enquanto a mão esquerda continuava apoiada na madeira áspera da porta. Girou o trinco e empurrou-a. A primeira vista, não viu nada, mas depois seus olhos acostumaram com a escuridão, e com terror ela desejou que não o tivessem.

A um canto do pátio, uma pilha disforme que aparentava ser o resto de três corpos humanos estava sendo devorada por um enorme lobo.

Era do tamanho de um urso, branco como a neve. Ela se lembrou do trecho de um dos seus livros. “A morte tem cães brancos”. Os olhos vermelhos brilhavam, e o pelo estava também vermelho, manchado de sangue. Ele balançava alegremente o rabo, como se acabar com a vida de três homens fosse uma de suas maiores alegrias. Se pensasse, talvez realmente o fosse. Mas era um animal. Assim que sentiu o cheiro de Melanie, a besta se virou para ela, fixando-a com seus olhos, a baba vermelha e mal cheirosa pingado, seu hálito podre penetrando na cabeça da menina.

– Ainda não, meu querido. – Uma voz suave o chamou, e ele imediatamente baixou as orelhas e voltou a sua refeição, como um cão doméstico. – Ainda não.

Melanie voltou seu olhar para a mulher que o chamara, o olhar do lobo estaria eternamente impresso em sua retina. Branca de Neve continuava sendo a mulher mais bela de todas. Seus cabelos continuavam tão sedosos como outrora, em seu breve tempo feliz, os olhos negros como o coração que carregava, os lábios rubros como o sangue que bebera e a pele translúcida como as almas que entregara a Azrael.

– Quem é você? – Ela conseguiu dizer, com a voz monocórdia. Os anões atrás dela riram e a empurraram, e a menina caiu na grama úmida. Uma mão alva e delicada se estendeu para ela, mas a menina a rejeitou e se ergueu sozinha. Todas as formas de fuga possíveis passaram por sua cabeça, mas sabia que suas pernas nunca a obedeceriam e, mesmo que obedecessem, não fugiria da besta em forma de lobo que esperava somente o comando dela. – Quem é você? – Repetiu, tentando fitar a mulher nos olhos. Quando o fez, sentiu seu coração gelar. Não era uma mulher. Não havia mais humanidade naqueles olhos. Havia somente a ganância, o egoísmo. Pode ver a trilha destruidora que tinha colocado aquela mulher onde estava, pode ver todo o mal que ela tinha feito. E – para seu pavor – pode ver que ela de nada se arrependia.

– Ora, onde já se viu? – A mulher deu-lhe as costas e avançou em direção ao enorme lobo, colocando sua mão sobre seu dorso e acariciando o pelo do animal, como se fosse somente um gato persa. – Falar assim com sua mãe?

Minha mãe?

– Não eu, não... Não... Você, quer dizer, ela... A minha mãe...

– Sou eu, minha querida. – Branca de Neve lhe sussurrou. – Sou eu.

– Não, ele... – Melanie fitou novamente a pilha de destroços humanos que era seu pai, e sentiu seu estômago revirar. Vontade de vomitar. – O quê você fez?

Não queria... Não, não podia... Mas talvez... Se tentasse?

Melanie saiu correndo em direção a floresta. Não sabia por quê corria, não sabia pra onde ia. Só queria ir. Pra longe daquela besta, daquela maldita cabana e de seus moradores insanos, pra longe da pilha de destroços que outrora fora sua única família, longe daquela mulher. Sua rainha. Sua mãe.

Os anões fizeram menção de irem atrás da menina, mas com um movimento das mãos a rainha os impedira. Assoviou. A besta virou sua cabeçorra para ela, seu faro sentindo o cheiro da morte que se aproximava, todos os seus músculos tensos. O enorme animal voltou-se para a dona. A morte chamou seus cães.

– Pegue.

Melanie corria como nunca correra na vida. Seu chapeuzinho vermelho já havia se prendido em alguma árvore, ou voado, não importava. Corria pela floresta, caindo, se levantando, tropeçando. Seu vestido já estava completamente rasgado, seu rosto, braços e pernas cheios de arranhões. Não queria parar, não iria parar

Ouviu um barulho. Algo se movia atrás dela. Podia sentir o peso, as patas macias e fortes pisando na terra. Era uma questão de tempo.

Logo, o Ceifeiro entrou em seu campo de visão.

Mais alguns metros.

Era o fim?

E agora?

Dói? Morrer.

Será que dói?

E depois, o quê vem?

Se aproximava.

Podia sentir seu cheiro podre.

Sentia seu coração batendo mais forte, o ar era doce. Se sentia viva. A floresta inteira estava viva, pulsando junto com ela. Seus corações batendo como um só.

O momento em que nos sentimos mais vivos é momentos antes da morte.

E enfim

O nada.

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Branca de Neve se sentara no chão, brincando com uma das flores que cresciam entre a grama. Branca, pequenina e delicada. Simples demais para que tivesse um aroma. Ela a segurava pelo talo, girando-a.

Estava tudo acabado. Finalmente, a menina morrera. Só podia confiar em si mesma, deveria ter feito tudo quando tivera chance.

Tão fácil, soltá-lo pra cima dela.

Agora, hora de ir pra casa.

Levantou-se, como num sonho. Se sentia leve, se sentia feliz. Matar lhe rejuvenescia. Podia fazer tudo. Tinha um sorriso leve nos lábios rubros, deslizava sobre a relva.

Fitou as estrelas. Parecia que todas as estrelas do universo tinham vindo dar uma olhada naquela mulher no meio da floresta. Branca de Neve sorriu. Amava as estrelas.

De repente, sentiu uma dor intensa no ombro. Como se a tivessem perfurado. Virou-se. Uma flecha rústica lhe atravessava o braço na altura da clavícula. O sangue logo inundou seu vestido, jorrava como em uma cachoeira. O sangue de todas as pessoas cuja a vida ela tirara parecia sair de seu corpo. Logo, outra flecha veio juntar-se a primeira, encravada em sua coxa. O sangue quente e amargo corria até o chão, exalando seu perfume. Sua visão começou a tornar-se turva, mas ela pode ver.

Sete vultos grotescos correndo em sua direção, empunhando machadinhas. Um deles carregava um arco e flecha. Seus olhos já haviam se toldado, e em meio as brumas que agora eram sua mente, entendia algumas poucas palavras que eram pronunciadas no mundo exterior... “pagar”... “débito’... “a mais bela”... “poder”... “vingança”.... “morte”....

Agora ela conheceria os verdadeiros cães brancos, os quais ela tanto tentara imitar.

Por quê?

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O Ceifeiro retornou de sua caçada, satisfeito. O que restara da menina fora deixado na floresta. Agora devia retornar para sua rainha, retornar. A besta refez rapidamente o caminho, guiada por seus instintos.

Ao chegar a cabana maldita, sentiu o cheiro de sua verdadeira dona. Sentiu o cheiro de sangue. Sua dona passara por ali. Passara, e levara mais uma vítima.

Talvez Branca de Neve tenha aprendido a lição, afinal.

Ora, parece que a morte lhe deixara a sobremesa...


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