Hiroshima escrita por Giullia Lepiane


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Minha sétima história, segunda one-shot e primeira original :D Espero que gostem de lê-la assim como gostei de escrever. Boa leitura!



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Hiroshima, Japão – Dia 6 de agosto de 1945, horário indefinido.

A garota de nove anos Hotaru Seiyo acordou com um barulho ensurdecedor, como um apito estridente sendo soado bem perto de seus ouvidos, quase lhe estourando os tímpanos.

Inicialmente, ela não conseguiu abrir os olhos para conferir de onde vinha tão incômodo som – suas pálpebras estavam fortemente coladas uma na outra. Mas ela não teve muito tempo para pensar nisso, também, pois logo notou outro fato alarmante: havia um gosto horrível em sua boca, que estava seca como o deserto e cheia de poeira. Sua garganta ardia, implorando por um copo d’água.

A ardência, no entanto, não chegava aos pés da dor lancinante espalhada por todo o seu corpo. Hotaru o sentia quebrado, esmagado, destruído, e ela sequer conseguia gritar ou chorar.

Em sua mente, além da onipresente dor, estava a confusão. O que havia acontecido? O que era aquilo?

Concentrou-se numa tentativa de se lembrar de alguma coisa, qualquer uma que a ajudasse a entender sua situação. Encontrou, ainda fresca em sua memória, a lembrança de ser de manhã e de ter sido acordada com um barulho de rádio.

Hotaru tinha se levantado do tatame onde dormia e ido até à cozinha, onde seu pai, sua mãe e seu avô estavam em volta do rádio antigo deles, parecendo bem intrigados. Ela perguntara o que havia acontecido, porque só tinha conseguido entender da transmissão as palavras “ameaça inferior”, mas nenhum dos três quis responder. A mãe a mandou para o quarto.

Lá, se manteve próxima à porta, tentando captar ainda fragmentos da conversa. Ouviu o pai dizer algo sobre ir a um abrigo antiaéreo. Ouviu a mãe respondendo que não haveria bombas – o rádio dissera apenas que algumas naves iam vindo, mas que não representavam perigo. Logo mais as mesmas palavras de antes. Ameaça inferior.

E ela estava mesmo muito interessada na discussão que se alongou por bastante tempo, até o som dela ser camuflado por um bem mais alto – tão alto que parecia que tinha explodido os ouvidos de Hotaru. Tudo ficou branco, muito claro, cegando-a. E então, tudo escuro.

Como se a última recordação fosse um pesadelo, do tipo que arranca mais cedo as pessoas das entranhas da inconsciência, a menina se sentiu mais alerta, e bem assustada. Será que tinha sido o fim do mundo? Será que, se Hotaru abrisse os olhos, veria que era a única alma viva sobre a Terra?

Com o coração martelando em seu peito, ela ousou juntar forças para vencer as pálpebras pesadas e abrir os olhos. E o que viu só serviu para aumentar ainda mais o seu pavor.

Hotaru se viu há quase dois metros abaixo da superfície, em meio a toneladas de destroços. Um pedaço de telha estava sob ela, roçando em seu rosto, arranhando sua pele. Um pequeno armário esmagava suas duas pernas, e montes de outras coisas – a maioria destruída, negra como carvão e parcialmente em chamas – se amontoavam ao seu redor.

Também havia a fumaça, fumaça densa e escura para todos os lados, não permitindo que Hotaru concluísse se era dia ou noite. E a garota, por si só, não estava na melhor das aparências.

Ela via suas vestes rasgadas, imundas. Pelo seu corpo, graves queimaduras e profundos cortes não faltavam. Os cabelos de Hotaru, compridos, escuros e lisos como o da típica japonesa, estavam empapados de sangue quente. Também não era difícil adivinhar que seu rosto também estava em péssimo estado, embora ela não pudesse vê-lo.

Era definitivamente o fim do mundo. Tudo ao redor de Hotaru estava tão destruído que ela imaginava que toda a Hiroshima, todo o Japão, toda a Ásia e talvez, até, todo o planeta estivessem naquelas condições.

Passou alguns minutos examinando tudo ao redor dela, até reparar na mão.

Primeiro veio a repulsa, depois a ânsia de vômito, e só por fim o desespero. Havia uma mão saindo do meio dos destroços. Uma mão que provavelmente estava conectada ao corpo de uma pessoa soterrada que, pelo que Hotaru sabia, podia muito bem ser o cadáver da mãe, do pai ou do avô dela.

Não. Não, não, não, não, por favor, não. Isso não.

- Mamãe! – Tentou chamar, mas não houve som algum em sua voz. Estaria muda? Ou surda? Havia ainda o apito em seus ouvidos, mas com exceção disso, ela nada ouvia. – Mamãe! – Tentou de novo, mais alto, e dessa vez ouviu a sua voz ecoada, abafada e distante, assim como o acesso de tosse seca que se seguiu. Ao menos que fosse uma impressão, e ela só achasse que tinha ouvido por ter imaginado isso e estar acostumada com a própria voz. De qualquer forma, não desistiu: - Papai! Vovô!

Ninguém respondeu.

Uma lágrima abriu caminho pela poeira de seu rosto.

Eles não podiam estar mortos. Não podiam. Eles provavelmente só não estavam ouvindo Hotaru chamar.

E se a família dela estivesse em uma situação pior que a dela? Nesse caso, não seria a garota quem deveria encontrá-los?

Hotaru tentou pegar impulso com os braços para levantar o tronco, mas não conseguiu erguer-se por mais de alguns centímetros antes de desabar novamente, de tão fraca e machucada que estava. Tentou, então, mexer as pernas – a parte de seu corpo que mais doía -, porém elas permaneceram imóveis. Claro que havia o peso do armário sobre elas, mas Hotaru também temia que estivessem quebradas, as duas.

Ela podia não ter a força que acreditara que tinha, contudo logo foi comprovado que tinha mais lágrimas do que acreditava ter, e elas resolveram que aquele era o momento ideal para lhe escaparem dos olhos.

Completamente sozinha em meio aos destroços, ela chorou. Até chegou a provar uma lágrima, para tentar amenizar um pouquinho a secura da boca e a ardência da garganta, o que de nada adiantou.

O claro e o escuro, por causa da fumaça, não existiam mais, então era impossível que Hotaru soubesse por quanto tempo durou seu choro inaudível – ou pelo menos, assim o era para ela – até ficar cansada demais para continuar.

Sentiu sono e fechou os olhos, embora não achasse que conseguiria dormir com toda aquela dor por mais absolutamente exausta que estivesse, e estava certíssima. Simplesmente ficou lá esperando por qualquer coisa, desde um milagre até a chegada da inconsciência.

Passado algum tempo, o que aconteceu foi que o ar fumacento subitamente ficou menos denso, mais fácil de respirar. Hotaru quis abrir os olhos, surpresa, para ver se também já era possível ver o céu, mas suas pálpebras estavam mais irrevogavelmente coladas que antes. Arriscou uma tentativa de se mexer, porém constatou que não conseguia mover mais nem um músculo. E, pelo que pareceu, a dor só estava esperando que ela notasse isso para passar, virando um formigamento que logo também foi embora, afastando-se aos poucos de Hotaru – ou assistindo Hotaru afastar-se dele.

E Hotaru não sentia mais medo ou desespero: havia só o sono, muito sono. E ela finalmente conseguia dormir.

“Por que será que isso aconteceu?”, foi o último pensamento da menina. Talvez fosse um castigo pela guerra, que ela nunca aprovou. Na verdade, ela nunca quis que alguém se ferisse, assim como muita gente que ela conhecia. Então, porque eles deveriam ser castigados também?

Mas embora o cenário pós-apocalíptico continuasse instalado em Hiroshima, Hotaru Seiyo não participava mais dele. Ela podia até ter sido castigada por algo que não fez, mas, como sempre acontecia quando uma injustiça era cometida com alguma pessoa, ela logo fora poupada.

Hotaru não viu quando a fumaça se dissipou e o céu se tornou visível.

*********

E reza a lenda que, quando a tripulação do Enola Gay viu a onda de destruição causada pela bomba atômica Little Boy em Hiroshima, um deles comentou, perplexo:

“Meu Deus, o que foi que nós fizemos?”


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Notas finais do capítulo

Gostaria de ouvir a opinião de vocês! Todo e cada comentário será devidamente respondido!



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