— Certifique-se de que amarrou bem os pulsos. Ian é nervosinho – a voz vem chegando com cautela em meus ouvidos, melodiosa e irresistivelmente calma, trazendo-me de volta do mundo dos sonhos.

Burro. Eu deveria ter ficado lá. Assim que abro os olhos e permito-me sentir meu corpo, percebo que não somos só eu e Doc, e eu não estou à vontade em meu “leito”. Acabaram de amarrar meus pulsos e tornozelos com firmeza. Um olhar de soslaio e minhas suspeitas se confirmam; Jared e Kyle estão parados, um ao lado do outro, apreciando a cena.

— Se o Ian não estiver aí dentro, pelo menos vai ser divertido – comenta Kyle muito brandamente. Meu coração começa a palpitar. – Bom-dia, Bela Adormecida! – ele exclama assim que encontra o meu olhar.

— Doc, esse é o momento sobre o qual eu lhe falei. Faria a gentileza de se retirar por uns minutos? – Jared se dirige ao Doc com muita tranqüilidade, e já estou exasperado. Preciso sair daqui, mas sei que as tentativas serão inúteis com essas amarras, portanto fico quieto. Talvez, se eu tornar a fechar os olhos, pensem que estou morto ou desmaiado.

— Claro – ele responde com um sorriso no rosto.

— Ah, onde está aquela cadeira? – Jared o chama no instante em que ele está a milímetros de deixar a sala, o que me deixa mais ansioso.

— Tem uma para cada um de vocês ali no canto – ele aponta para um extremo do ambiente que não posso enxergar por causa de minha posição desconfortável.

— Ótimo, ótimo... – seus passos ecoam conforme ele vai andando para onde Doc indicou. Falando nele, ele já se fora. Ótimo, ótimo.

O arrastar horrendo de duas cadeiras arranham meus tímpanos. Jared as coloca de maneira que eu fique no meio, como uma barreira divisória. Será que pretendem dar surras em mim? Teriam coragem? Ambos se sentam e cruzam as pernas desafiadoramente, e eu me ocupo fitando o teto da Caverna.

— Vamos ter uma conversa de homem para homem – diz Jared em um tom mais alto do que seria necessário.

De homem para homem? Acho que Jared quer falar comigo.

Ah, santas almas, volte para as profundezas do abismo, Ian! Sai daqui!

— Está encontrando dificuldades em achar sua voz, Aberração? – pergunta Kyle; aposto como está se sentindo muito bem nesse papel de interrogador maligno.

— Por favor, prossigam – eu digo do modo mais apático e cordial que consigo.

Os dois riem aberta e debochadamente. Minhas bochechas estão queimando.

— Muito bem então, eu prosseguirei – Jared ironiza – Sabe, como uma alma, você é muito inocente. Peg me contou o que aconteceu, então decidi te dar uma mãozinha sabe, já que Ian se foi e bem... Ela ama o seu corpo, não é? – ele fala com certo desprezo, mas eu me limito a arquear as sobrancelhas tentando transparecer minha dúvida à sua colocação.

O que quer dizer com esse lixo todo, Jared?

Cale-se, Ian. A conversa é comigo.

— Quero dizer, ficou bem claro o que ela quis fazer... Mas você, um pouco inocente, não agüentou, não é, desmaiou... – Jared se mantém sério, mas Kyle não consegue abafar a risada. Eu os encaro com a testa enrugada, provavelmente.

Ah, Jared, quando eu assumir o controle de mim mesmo, vou quebrar todos os seus dentes. Quero ver se a Melanie vai beijar um banguela.

Não consigo me concentrar com você falando na minha cabeça, Ian.

— O que ela quis fazer? – minha voz soa um tanto desesperada, mas não me importo.

— Sabe – Kyle pigarreia alto, uma expressão de divertimento no rosto. – Quando um homem e uma mulher se amam muito...

Ele não vai dizer isso. Simplesmente não vai.

Eu estou tentando escutar!

Você não vai escutar merda nenhuma, Oito! E ela não quis nada disso!

Por que está tão bravo?

Por quê? Sinceramente! Você rouba meu corpo, quer roubar o amor da minha vida, quer roubar a minha voz, se fingir de bonzinho e pergunta por que eu estou bravo?! Se você é inocente, Peg é muito mais. Ela jamais teria feito aquilo com essas intenções.

Que intenções?

— Tem um zumbido na minha cabeça – eu comento, porque acho que perdi metade da explicação de Kyle com a explosão de Ian na minha mente. – Deve ter sido a pancada no chão quando desmaiei. Acho que preciso dormir...

— Dormir? Não! Nem começamos a conversar ainda! – Jared praticamente grita, levando os braços para o alto como se estivesse realmente feliz em estar aqui. – Como Kyle ia dizendo... Por favor, Kyle, prossiga – ele se empertigou na cadeira e fez um gesto para que Kyle continuasse a falar.

— Aí, se eles derem muita sorte e o homem acertar o alvo, se entende o que eu quero dizer, começa a gerar um... Como é que mamãe dizia, Ian? Um feto inútil como você, isso, feto inútil como você! – ele fala, arregalando os olhos para ver bem a minha reação.

Mas não sei como reagir ao “feto inútil como você”.

Kyle. Você está morto. Morto. Vocês dois. Mortos.

Ian, do que é que estão falando?

Mas Ian não responde. Aliás, sinto um leve tremor em meus braços e começo a ficar preocupado. Meus olhos parecem querer saltar das órbitas e meus dentes rangem... Meus dedos... Querem desatar os nós das amarras... Sinto que estou no meio de um terremoto. Estou perdendo o controle... Cada vez mais fraco... Ian...

— Corrompido... – Ian. É Ian quem está falando. É apenas um cochicho, mas eu não tenho poder para fazê-lo parar... Ele está no controle majoritário... Eu... Preciso tomar o controle. – Bastardos idiotas, corrompido – vamos Oito. Pegue seu corpo. Não o deixe dizer mais nada!

Reúno todas as forças que me restam e empurro a sensação de vertigem que me causa quando Ian resolve brincar comigo. Eu consigo afastá-lo com muita dor, muita mesmo. Eu o enfio no canto mais escuro de minha mente. Espero que demore para que ele saia de lá. Respiro fundo. Meus pulsos doem, como se estivessem queimando, estivessem em carne viva...

— Bastardos idiotas? – repete Jared, simulando um timbre intrigado.

Vamos Jared. Mostre pra mim que você não é completamente burro. Eu poderia tê-lo matado, mas em vez disso, resolvi te dar uma pista. Seja inteligente e não desperdice essa oportunidade que tive de aniquilar você.

Já voltou? Você... Você está de castigo, sabia! Como ousa? Como conseguiu? Vou redobrar minhas atenções. Nunca mais você vai se apoderar de mim, Ian!

— O que significa corrompido, Jared? – Kyle pergunta aparentemente entusiasmado.

— Ah, não sei Kyle, mas podemos dar uma olhada. Quem sabe, perguntar a Peg? É, vamos procurar o significado – diz Jared como um ponto final de uma frase que sentencia a minha morte. Eles não podem descobrir. Mas eu não sou corrompido, não sou.

Não é? Você é um bastardo idiota também, e acredite, está na minha lista dos... Bem, dos seres a serem mortos quando eu obtiver meu corpo de volta.

Só que nunca irá obtê-lo novamente, Ian. Nunca.

Veremos.

— Bem, já vamos indo – diz Jared, levantando-se. – Não saia daí... De qualquer forma, duvido que consiga sair, mesmo. Doc já deve estar vindo, Oito – ele fala enquanto se dirige para a saída.

— Adeus, aberração – Kyle começa a segui-lo. – Ah, não se preocupe, irmãozinho. Vou provar a você que posso ser inteligente de vez em quando – ele dá uma última olhadela para trás e desaparece de vista junto ao Jared.

Perfeito. Tudo o que eu precisava; mais desconfiança.

Ah, Kyle, bom mesmo que você prove ser algo além desse monte de massa muscular, cérebro inútil. Francamente, não sei como a Sunny pode gostar tanto de você, cara. Não é como eu, eu tenho laços de sangue, sou obrigado a gostar de você...

Cala a maldita boca!

Nossa, que linguajar chulo! Já que você está aí todo nervosinho, vou me retirar. Com licença, pode prosseguir Oito.

Seus... Bastardos!

Volte aqui, bastardo. Venha Ian, apareça. Covarde.

Todos são covardes.

Vou mostrar a eles. Mostrar a todos eles que vim para ficar. Inclusive mostrarei isso a Peg. Afinal, ela queria alguma coisa, não queria? Vou descobrir quais eram as intenções dela. Será que já acredita um pouco mais em mim? Deve ser por isso que Ian está irritado. Aquele bastardo covarde.