Maré escrita por Porcelain Warrior


Capítulo 1
Sem temer naufragar




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Erwin descascava uma batata, cena bastante incomum naqueles dias em que se considerava homem demais para sentar ao lado de um saco de batatas. Mas não parecia se importar. Seus braços morenos e suados, que estavam ficando mais grossos que o próprio tronco de Dominik, apoiavam-se confortavelmente nos joelhos enquanto ele assobiava uma cantiga velha. E batia o pé envolto por uma botina que não via água há três meses. Parecia feliz, assim, de longe. Passou o braço rapidamente pela testa que pingava suor antes de retomar o trabalho, virando a cara para cuspir no chão do cais. Tinha um gosto amargo na boca há horas.

-Que tu queres? - perguntou, depois de mais dez minutos jogando batata descascada no balde e pegando outra do saco. Não se virou, mas sabia que Dominik estava atrás dele há pelo menos meia hora, com seu polegar cuidadosamente posicionado entre os lábios como ele fazia quando precisava pensar. Não precisava de olhos nas costas para saber que Dominik movimentou a cabeça rapidamente, com o intuito de ajeitar a mecha de cabelo caída sobre seus olhos, aqueles olhos verdes desgraçados. O sol já baixava no horizonte, alaranjando o mar, alaranjando seus corpos, alaranjando o cais e as batatas. Dominik deu dois passos para se colocar ao lado do homem, afastando-se novamente ao perceber que pisara em cuspe que a madeira do chão não absorvia. Seu rosto se torceu em uma careta enojada.

Irritava Erwin a maneira como aquele burguesinho sem vergonha olhava para o mundo dele, para o cais sujo e o canivete com que ele cortava peixes e gargantas, mas raramente cortava cascas de batatas. Apenas olhava, como se tudo que Erwin tocava fosse imundo. E era mesmo. Suas mãos, seu quarto, sua cama em que Dominik gritava, era tudo imundo. Estava incomodado. Apertou os olhos e abaixou um pouco a cabeça, diante daquele silêncio calculado. Dominik era controlador a esse ponto, a ponto de minuciosamente estudar o momento exato para ficar em silêncio. Mas ele tinha 16 anos, ele não podia tapear demais.

-Cai fora daqui. - resmungou.

O loiro deu a volta no banquinho em que Erwin sentava-se, para chegar ao lado em que ele não cuspia, e passou a mão branca e macia na madeira empoeirada do cais para se sentar. Aquilo sim era uma novidade, Erwin pensou sem reagir, um porte de príncipe daqueles se sujeitar a sentar no chão dos mortais. Jogou outra batata no balde. Ao que abaixou para alcançar outra no saco, a mesma mão branca e macia prendeu seu pulso com firmeza.

Erwin levantou os olhos das batatas ao rosto de Dominik, as sobrancelhas franzidas e os lábios esboçando um sorrisinho irritante. Filho da puta.

-Eu não vou sair daqui.

-Então para de ser bunda mole e faz alguma coisa, viadinho.

Raramente Dominik fazia o que Erwin mandava, assim como raramente protestava também. Guardava uma teimosia educadíssima, como tudo que ele fazia, então guardava as palavras até o momento em que pudesse provar que tinha razão. E o merdinha sempre tinha razão. Mas assentiu com a cabeça e tirou do balde uma faca que deram para Erwin descascar as batatas, mas que ele nunca usaria, porque era fiel demais a Sally, seu canivete.

Dominik se entregava todas as noites, entregava o corpo, a alma, a inteligência arrogante, o orgulho a um homem com vinte e cinco anos a mais, que dava nome ao seu canivete. Nome de mulher. Nome de mulher gostosa, segundo ele. E não havia noite em que ele se conformasse com isso. Mas o nome do canivete nunca importou muito quando as mãos bruscas de Erwin o levantavam e rasgavam a camisa de cetim, fazendo os botões se espalharem e rolarem pelo chão. Quando Erwin puxava a calça dele sem abrir qualquer botão, tamanha era a urgência, e quando o empurrava contra a parede e o xingava de qualquer coisa baixa, palavras que Dominik jamais usaria, mas na boca de Erwin soavam tão quentes naquele bafo de fumo, como ele poderia se importar com qualquer coisa além daquela boca suja? Daquelas mãos imundas?

Pensava na boca suja e nas mãos imundas até quando elas estavam distantes. Passava a lâmina fina da faca pela pele delicada da batata em sua mão e sorria.

Erwin não perguntou por que ele sorria. E não precisava olhar para o lado para saber que o que Dominik tinha na boca era um sorriso da sacanagem mais fina, de primeira qualidade. Cuspiu de novo.

-O que vai acontecer quando vocês forem embora? Para outro porto, digo.

-O que é que tem?

Dominik encarou o rosto dele por muito mais tempo do que planejava. Perdeu-se na pele grosseira, na cicatriz que marcava a bochecha esquerda de Erwin, o bigode malfeito e a barba que começava a crescer no queixo e pelo maxilar, que ele coçava de vez em quando. Quando se deu conta de que olhava demais, abaixou os olhos para a batata. E riu. Nunca havia descascado uma batata na vida.

-Eu vou te ver de novo?

-Não sei nem se eu vou ter comida na mesa amanhã, não me faça essas perguntas idiotas.

Cuspiu de novo. Coçou o queixo. Jogou a batata no balde.

-Mas você quer?

-O quê?

-Voltar.

-Eu nem fui ainda e tu me perguntas se eu quero voltar?

Dominik soltou um suspiro frustrado. No começo, pensava que Erwin era mesmo ignorante como se mostrava. Porque seus diálogos davam voltas e voltas e voltas sem chegar a lugar nenhum, palavras nunca deram certo entre os dois. Mas agora ele já sabia que as respostas ignorantes de Erwin não eram por falta de compreensão.

-Tá cortando mais batata do que tirando a casca, para de estragar minha comida.

A mão tremia na faca. Voltou o olhar brevemente para a mão habilidosa, apesar de cascuda, que passava Sally delicadamente pela casca fina e mantinha a batata intacta, exceto quando afundava demais os dedos. Não media força muito bem. Dominik fechou os olhos e contraiu os músculos do rosto para não deixar escapar nem um pingo de melancolia. A batata escapou de seus dedos delicados. Não respirava direito. Abaixou o rosto para que as mechas douradas cobrissem sua cara e ele pudesse aliviar a tensão. Havia esquecido que Erwin sabia de tudo que ele fazia e pensava sem precisar olhar.

Passou a língua pelos lábios devagar. E enfim, levantou a cabeça, ajeitando o cabelo, dentro da sua perfeição, com a mão livre. Levantou-se.

Erwin roncou baixo e separou um pouco as pernas, ajeitando-se no banquinho que era pequeno demais para seu corpo de 103kg de músculo. Dominik não percebeu o movimento. Folgava e apertava os dedos segurando a faca, encarando o último brilho de sol no mar que já não estava mais azul. Ao que virou para voltar para casa, ouviu uma tosse breve e a voz de Erwin, mais mansa do que esteve nas três semanas que passaram juntos.

-Um amor em cada porto, loira. É esse o combinado.


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