Abismo da Alma escrita por Bruna Timbó


Capítulo 3
CAPÍTULO III - Escrevo a meus pais, com amor...


Notas iniciais do capítulo

Gostaria de agradecer a todas que estão lendo (e relendo) minha fic. Seus comentários são importantes para mim e vocês sabem disso.



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Mesmo já sendo quase hora do almoço Marguerite não tinha fome. Havia roubado uma garrafa vazia de leite da cozinha e corrido para o lago onde lançaria sua carta já que não tinha o endereço de seus pais, bem, pelo menos era assim que faziam os personagens das histórias que Sophie contava pra ela.

Ela escrevera a carta na noite anterior, enquanto todos estavam dormindo. Tinha depositado ali todas as suas esperanças e anseios. Todo o seu amor. Ela reuniu toda a sua força e jogou a garrafa com a carta dentro o mais longe que pode. E ficou parada ali na areia olhando a garrafa e esperando até que sumisse de vista.

● ● ●

Escrevo a meus pais, com amor...

Não sei quem são vocês. Onde moram, ou o que fazem. Mas eu os imagino.

Acho que minha mãe deve ser bonita e meu pai deve ser forte. Mas não me interessa saber como vocês são. Só me interessa saber se vocês me amam, mesmo depois de terem me abandonado em um orfanato, mesmo assim eu ainda amo vocês.

Sei que tiveram uma boa razão pra fazerem isso. Eu até já sei por que. Foi pra eu conhecer a Sophie. Ela foi muito boa pra mim. Me colocava pra dormir mesmo quando as outras Amas não faziam. Me dava comida na boca antes que eu conseguisse comer sozinha. Ela nunca me chamava de bruxa nem me batia como fazia a Ama Heloisa. Bem a Ama Heloisa ainda me castiga e muito, mas eu acho que é porque ela está com raiva porque a Sophie foi embora. Mas a Sophie está bem, ela me disse isso. Sabe, acho que com a morte dela eu fiquei mais forte, eu cresci mais. As outras crianças me chamam de bruxa e aberração, só porque eu sei fazer coisas que elas não sabem, mas eu não me importo mais. A Ama Sophie disse que eu sou especial então acho que vocês vão me amar muito mais por causa disso né!? Então vou continuar treinando como Sophie me ensinou até ser muito boa nisso e deixar vocês orgulhosos.

Mas eu estou escrevendo mesmo para dizer que eu não estou com raiva de vocês. Que eu os amo muito e que vocês podem vir me buscar. Ai quando vocês chegarem eu vou dizer pra todo mundo que meus pais vieram me levar e que eles me amam muito. E a gente até que podia levar outros órfãos com a gente, pra que eles não ficassem tão tristes e para que a Ama Heloisa não castigasse mais eles também.

Não sei se vocês lembram, porque faz muito tempo, mas eu estou no orfanato Kyrie. De agora em diante vou ficar esperando vocês virem me pegar. Todos os dias eu vou ficar no lago desde manhãzinha até a hora do jantar esperando vocês. Mesmo que a Ama Heloisa me castigue por causa disso. Mesmo que ela me proíba, mas eu vou ficar esperando. Porque eu sei que vocês vão vir.

E eu só queria dizer que eu amo vocês, Papai e Mamãe.

Com amor, Marguerite.


● ● ●

E assim fez Marguerite, ela todos os dias pegava comida escondida na cozinha e ia pro lago que era próximo ao orfanato em que morava. Todos os dias ela esperava seus pais aparecerem. Imaginava se sabiam falar em outras línguas que nem ela. Se eram pessoas “normais” ou se tinham outras habilidades especiais. Pensou em desistir por várias vezes, mas achou que Sophie iria ficar triste se ela desistisse. Enquanto esperava aproveitava que ninguém a observava e estudava com afinco.

O tempo passou e o dia de seu aniversário de 11 anos chegou. Logicamente nenhum dos órfãos lembrou do aniversário dela, mas estava acostumada com isso, a única pessoa que se lembrava era Sophie. Então se levantou bem cedo, foi até a cozinha e pegou uma cesta com um pouco de leite, pão, biscoitos e algumas frutas que as outras Amas haviam preparado pra ela como presente de aniversário. Ela teve a sensação de que aquele dia seria diferente dos outros. De que “algo” ia acontecer.

– O que você está pensando Marguerite? – perguntou para si mesma quando se sentou na areia de frente ao lago e começou a comer seu café da manhã. – Só porque as Amas me deram um pouco a mais de comida não significa que algo v...

Mais sua voz foi sumindo à medida que deixava o pedaço de pão cair de sua boca aberta. Ela olhava espantada para o lago. Piscou algumas vezes como que para assegurar-se de que não era uma ilusão. Heloisa vinha se aproximando apressadamente de Marguerite, ela tinha em suas mãos uma garrafa, a garrafa que Marguerite havia jogado para seus pais e parecia estar furiosa.

– Sua pirralha! – Gritava ela ao chegar a Marguerite e agarrar-lhe pelo braço. – Como ousa? Depois do que eu fiz por você? Quer saber quem são seus pais? Pois eu lhe digo quem são! Sua mãe era uma vagabunda que não lhe quis, ela disse que você era filha de um demônio e que não queria o mal em sua casa! Sua certidão de nascimento foi escondida, para que você nunca conseguisse ir atrás da sua mãe! Ela não te queria!

Lágrimas caiam dos olhos da menina. Aquilo não podia ser verdade!

– Não... A Ama Sophie disse que...

– Sophie está morta! – Ela gritava isso na cara de Marguerite – Você a matou! Porque você é um demônio! Sua bruxa! Ninguém nunca vai lhe amar, nem sua preciosa Sophie lhe amou, ela me contava que tinha medo de você! Te tratava bem com medo que você pudesse enfeitiçar ela. Ela te odiava!

– Não! – Marguerite se libertou do aperto de Heloisa e saiu correndo sem destino para longe da mulher.

– Fuja sua tola! – Ainda podia ouvir os gritos de Heloisa ao longe – Fuja! Vai morrer de fome e frio antes do inverno acabar! E ninguém, nem mesmo Deus vai lhe proteger sua bruxa!

Marguerite correu durante horas. Seus pensamentos vagavam por todas as suas lembranças. Correu tanto que quando não conseguiu mais correr viu que não sabia mais onde estava. Pelo menos não estava mais no orfanato.

Heloisa tinha razão, ninguém a queria, nem Sophie que dizia que a amava. Marguerite continuou andando, agora lentamente pelas ruas de Londres.

Se ninguém precisava dela, ela também não precisava de ninguém. Tinha toda uma Londres para descobrir e era bem esperta. Saberia se virar muito bem e agora ninguém iria pará-la, pois Marguerite ia se vingar de todos que a fizeram sofrer. Havia cansado de ser a garotinha boba que todos maltratavam, a partir daquele dia ela estava só e tudo ia mudar, quer fosse pra melhor ou não. O coração da doce menina se encheu de tristeza e amargura. A menina meiga que queria ser amiga de todos havia morrido para sempre.

Ela agora era Marguerite, uma garota que não mediria esforços para completar seus objetivos.

A noite era fria e escura. Marguerite ainda usava seu uniforme do orfanato, um vestidinho cinza com uma faixa preta ao redor da cintura, ela olhava para cima, de onde via o Big Ben, aquele relógio marcava mais de uma da manhã e ela andava sem rumo no meio da neblina que cobria aquela cidade. Agora realmente havia ficado com medo, nunca estivera sozinha na vida, não sabia o que fazer ou pra onde ir, a fome tinha aumentado e o frio estava se tornando insuportável, foi quando algo chamou sua atenção, um cheiro forte de comida que saia detrás de uma porta.

Em cima da porta lia-se SACRILÉGIO em um letreiro bem grande e colorido. Com certeza esse era um daqueles lugares do quais as Amas as alertaram para que se mantivessem longe. Então prontamente Marguerite entrou no local, e ficou parada, escondida atrás da porta que dava para o beco de onde saíra. Logo percebeu que aquilo era um bar, havia sinucas e muitos homens e mulheres se beijavam o tempo todo. Ela achou aquilo muito estranho, afinal de contas homens e mulheres só podiam se beijar caso fossem casados, mas não se interessou muito nos casais, pois sua atenção foi voltada para um senhor que brincava com uma moeda na mão em uma mesa próxima a ela.

Ele usava uma calça preta com uma camisa branca, de suas calças saiam suspensórios que estavam caídos dos lados, seus cabelos eram loiros e curtos e ele tinha os olhos do mais profundo azul que Marguerite jamais havia visto, não deveria ter mais que 30 anos. Quando começou a escutar a conversa dele atrás da porta viu que ele estava discutindo com um senhor alto e que deveria ter pelo menos o dobro de sua idade, seus cabelos eram lisos e brancos, seus olhos pareciam dois grandes buracos no quais Marguerite tinha medo de se perder. Ao seu lado encontrava-se um homem alto e forte que ficava de braços cruzados e não se movia.

– E então Olivier, vai me pagar ou você vai nos fazer ser mais persuasivos?

– Hehe! Calma Dominic... – o loiro continuava a brincar com a moeda mais não tirava os olhos do homem maior, ele tinha um forte sotaque francês - Já lhe disse antes, estou esperando receber uma boa quantia em alguns dias e creio que você ficará satisfeito em saber que pretendo lhe pagar a soma que lhe devo mais os juros.

Dominic olhava com descrença para Olivier que sorria com delicadeza para ele. Marguerite estava encantada com aqueles belos olhos azuis e foi quando percebeu que um dos homens que acompanhavam o tal Dominic foi se aproximando de Olivier, sorrateiramente ele retirou de seu punho algo que Marguerite confundiu com uma caneta, e o horror estampou seu rosto quando ela viu que aquele objeto em sua mão na verdade era uma faca. Ele se aproximou de Olivier por trás, lentamente retirando a faca de seu esconderijo, eles iriam matá-lo, Marguerite tinha de fazer algo.

– Ele tem uma faca! – gritou a menina denunciando o homem.

Tudo a seguir aconteceu muito rápido. Olivier olhou para o capanga que havia chegado sorrateiramente por detrás dele e com uma agilidade nunca vista subiu em cima da mesa, ficando longe do alcance da faca. Derrubou Dominic com um chute no rosto, o que fez com que dois dentes voassem de sua boca, e correu em direção a saída, sumindo de vista logo que passou pela porta. Marguerite ficou olhando enquanto o capanga ajudava Dominic a se levantar. Ele olhou com raiva para ela.

– Traga ela aqui!

O homem era mais rápido do que Marguerite pensara, ele a segurou pelo pulso quando ela ia começar a correr. Seu aperto era tão forte que a machucava, arrastando-a contra sua vontade Marguerite esperneou e gritou por ajuda, mas todos que estavam ali simplesmente a ignoraram como se ela não existisse. O brutamonte a jogou aos pés de Dominic, Marguerite caiu de joelhos no chão, ele a levantou até a altura de seus olhos segurando por seu queixo.

– Você tem idéia do que fez aqui hoje sua pirralha? – Marguerite estava apavorada, tudo o que ela mais desejava era poder sair dali, poder voltar para sua cama, mas agora estava com sérios problemas e tinha de arrumar um jeito de sair daquela situação ou morreria ali mesmo. Seu coração parecia que ia sair pelo peito de tão forte que batia quando ela começou a falar.

– Eu... eu não... – ela olhava para baixo, com medo – Me desculpe...

Um tapa marcou o rosto de Marguerite assim que ela proferiu aquelas palavras. Ela sabia que se não contornasse aquela situação o quanto antes acabaria morrendo, e foi com esse pensamento e um gosto de sangue na boca que ela recomeçou a falar.

– Eu não pretendia espantá-lo senhor. – sua voz estava carregada de medo, mas ela tratou de escondê-lo bem – Sei que ele lhe deve, mas como ele irá pagá-lo se estiver morto?

As idéias vinham a sua mente como um clarão. Ela sabia o que o homem queria ouvir e se dissesse tudo certinho talvez ele a deixasse ir embora. Ele parecia não ser muito inteligente.

– E quem é você? – a desconfiança dele aumentava.

– Meu nome é Marguerite e eu... – ela pensou por um momento – E eu sei onde Olivier se esconde. Poderia mostrar ao senhor onde é.

O homem ponderou por alguns instantes, por fim largou o queixo da menina e se pôs a examiná-la com o olhar.

– E qual sua ligação com Olivier?

– Nenhuma apenas o vi saindo de sua casa e poderia dizer ao senhor onde fica, se me deixar ir embora depois.

– Acha mesmo que vou acreditar que uma menina suja e maltrapilha sabe onde encontrar Marc Olivier? Um dos maiores trapaceiro de toda Londres?

– O que o senhor tem a perder em confiar em mim? – ela tremia dos pés a cabeça e rezava para que ele não percebesse. – Afinal de contas o senhor precisa do dinheiro não!?

– Pois bem Marguerite – ele se ergueu da cadeira e segurou nos ombros dela – Leve-me a Olivier e lhe deixarei ir embora.

Marguerite não sabia o que fazer a não ser começar a andar com aqueles dois homens logo atrás dela. Tentava parar de tremer, mas as mãos pesadas que seguravam seus ombros a deixavam apavorada. Ela olhava para os lados quando saíram do bar, tentava achar alguma forma de escapar.

Foi quando viu nas sombras de um beco escuro a figura de um homem, ele acompanhava-os a distancia, observando cautelosamente a caminhada da menina e dos outros dois homens. Seus passos lentos já estavam deixando-os impacientes, enquanto ela andava tentava pensar em alguma maneira de fugir.

– Vamos garota! – Dominic apertava seus ombros a ponto de machucá-la – Tem certeza de que sabe pra onde está indo?

– Claro senhor. – Ela olhou para o lado apenas para ver que a figura misteriosa que a acompanhava havia ido embora. Triste ela continuou andando em linha reta. Em seus passeios por Londres as Amas as levavam ao Big Ben, era um dos poucos lugares que ela conhecia. Resolveu levá-los até lá, pelo menos a caminhada até lá levaria mais alguns minutos e ela teria tempo para pensar em algum plano.

A noite se arrastava enquanto caminhavam. Ela já estava pensando de que maneira seria morta por eles. Já estava pensando como sua vida mal começara e já estaria acabando. Uma pena, ela tinha muitos planos pela frente, iria ficar rica e viajar pelo mundo. Foi quando um barulho ensurdecedor invadiu seus ouvidos fazendo com que ela se abaixasse e os tapassem com as mãos, vários estampidos do mesmo tipo ecoaram pelas ruas enevoadas de Londres. Abaixada e de olhos fechados Marguerite pode ouvir um grito abafado do homem que estava logo atrás dela e em seguida um baque surdo no chão, e tudo ficou quieto.

Abriu os olhos devagar e pode ver que os homens que a acompanhavam estavam caídos aos seus pés. Uma poça de sangue se formava e se misturava com a água do sereno que começava a cair. Ambos estavam mortos, suas roupas que outrora eram bonitas e limpas agora estavam cobertas de sangue que saia de vários buracos feitos pelas balas.

Ela olhou ao redor e procurou o autor dos disparos, e qual foi sua surpresa quando viu que um homem oculto pelas sombras a olhava. Ele aproximou-se lentamente de Marguerite, ao sair das sombras ela pode ver que aqueles olhos azuis que a observavam eram de Olivier, o francês do bar. Ele a olhava com suspeitas e ao chegar a sua frente guardou o revolver que carregava.

– Chéri. – Sua voz estava carregada de sotaque e ele sorriu para a garota – Que dois-je faire avec vous?

Tudo o que ela conseguiu ouvir foi à voz do francês, pois seus sentidos a abandonaram, ela mergulhou para a escuridão desmaiando de fome, cansaço e por causa das fortes emoções sofridas naquela noite. Ao acordar teria certeza que seu coração não iria aguentar outra noite como aquela.









FIM do Capítulo III


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