Abismo da Alma escrita por Bruna Timbó


Capítulo 2
CAPÍTULO II – Todos que eu amo me deixam




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Veio o inverno e com ele a neve. Todos os órfãos saiam para brincar na neve após o café, enquanto as Amas cuidavam do Orfanato. Eles eram avisados para ficarem perto do orfanato e não irem para o lago que estava congelado, pois era muito perigoso.

Mas como todas as crianças ninguém nunca ouvia o que as Amas falavam.
Os meninos mais velhos estavam jogando bola enquanto as meninas brincavam de casinha. Todos se divertiam muito até Marguerite que dificilmente era convidada para as brincadeiras. Os exercícios de Marguerite com Sophie haviam dado algum resultado, mesmo que pouco, agora bastava um pouco de esforço e Marguerite conseguia traduzir textos inteiros em algumas línguas. Mas nunca podia mostrar o que aprendera para ninguém, pois se a Ama Superiora ficasse sabendo ia ser o fim das aulas. Todos a tratavam mal e a chamavam de bruxa ou aberração, mas Marguerite que já tinha 10 anos já se acostumara um pouco com isso, e aceitava brincar com as outras meninas mesmo que fosse sempre a empregada da casinha imaginária. Tudo ia bem até que a bola com a qual os meninos estavam jogando rolou para o meio do lago congelado e ninguém teve coragem de ir lá pegar.

– Manda a Marguerite. – sugeriu uma menina maliciosamente.

– Marguerite! – chamou alegremente um dos garotos. – Vem cá. Temos uma surpresa pra você.

“Uma surpresa!” Ela nem acreditava no que estava escutando! Marguerite largou a boneca com qual estivera brincando e correu para onde os garotos estavam. Logo todas as crianças estavam ali ouvindo a conversa.

– Quero pedir desculpas. Nós todos fomos muito malvados com você. – todos ficaram boquiabertos ao ouvir tais palavras. Marcos pedindo desculpas? Tinha algo errado, mas Marguerite estava tão contente que nem percebeu. - Quer brincar conosco? Fazer parte da turma?

Era como acordar de um grande pesadelo. Todos ali sendo seus amigos, brincando juntos, rindo juntos, juntos e não mais dela, seria a melhor coisa do mundo que poderia acontecer a Marguerite. Seria o presente de aniversário perfeito, mesmo que seu aniversário fosse só em dois meses.

– Claro que quero!!! - Ela teve que se conter para não pular de alegria. – Vai ser demais!!!

– Calma, calma, só que tem uma coisa. Ele segurou no ombro de Marguerite e foi levando-a para a beira do lago. – Vai ter que pegar nossa bola que caiu no lago. – Só isso e iremos ser seus amigos pra sempre.

Foi nesse instante que todos os outros órfãos perceberam. Marcos não estava realmente com a intenção de ser amigo da menina, ele só queria se divertir um pouco à custa dela. E quem sabe até conseguir a bola de volta.

– E então Marguerite? Você vai pegar a bola para sermos amigos ou não?

Era a oportunidade que ela sempre sonhou. Não poderia deixar isso passar. Tinha que pegar a bola para então ser amiga de todos.

Marguerite foi ate a margem do lago, a água era escura e mesmo perto do fim do inverno ainda fazia muito frio. Com muito cuidado pôs seu pequeno pé no gelo escorregadio. Seu coração batia forte, ela estava com medo.

– Mas... Mas e se eu cair?

– Você não vai cair. Estaremos aqui para lhe salvar. Se fizer isso nós iremos te amar muito Marguerite.

Isso era tudo o que ela queria ouvir. Finalmente seria amada por seus amigos.

Reuniu toda a coragem que conseguiu encontrar e subiu no gelo. Deu um passo e esperou que o gelo se quebrasse sob seus pés, mas nada aconteceu olhou para trás, todas as outras crianças estavam apreensivas. Todas contavam com Marguerite. Ela olhou para baixo, o lago parecia ser muito profundo, mas como ela não pesava muito achou que o gelo não quebraria, e mesmo que quebrasse seus amigos iriam salvá-la.

Mais um passo. Seu coração estava batendo descontroladamente. Outro passo vagaroso, a bola estava a uns 5 metros. Mais um. O gelo parecia que ia rachar a qualquer momento sob ela, mas ela continuou. Deu um suspiro e avançou mais alguns passos rápidos, a bola estava quase ao alcance da mão. Mais um passo e ela a tocaria. O ultimo passo e ela pegou a bola. Seu coração quase não coube dentro de si de tanta felicidade.

– Peguei! – Gritava ela a plenos pulmões. – Pessoal eu peguei!

As crianças a margem do lago pularam e gritaram vivas. Mas um barulho vindo de baixo a fez ficar imóvel. Marguerite viu que havia algo errado. Ao olhar para baixo viu que o gelo estava se partindo, ela sabia que aquele gelo fino não iria aguentar seu peso por muito tempo.

– Gente! – Gritou ela olhando aflita do chão para as crianças na margem – O gelo ta partindo! Eu acho que eu vou cair. Me tirem daqui!

– Vai cair é!? – Falou Marcos – Então antes de cair joga a bola pra cá Bruxa!

Foi como se ela tivesse levado um choque. Eles não queriam ser amigos dela, só queriam se divertir mais uma vez à custa da pequena bruxa, como a chamavam.

– Mas vocês disseram que seriam meus amigos... Que me ajudariam... Que gostariam de mim...

E todos ficaram assustadoramente silenciosos.

– Você nunca será amada por ninguém seu monstro! Ninguém quer adotar uma bruxa e eu aposto que foi por isso que seus pais te largaram.

– Bruxa! Bruxa! Bruxa! Bruxa! - Todas as crianças riram - Bruxa! Bruxa! Bruxa! Bruxa!

Nesse instante o gelo no qual Marguerite estava em cima cedeu. Ela mergulhou pesadamente na água. Aquela água escura e gelada. Tentou gritar, mas só o que conseguiu foi sufocar ainda mais. Sentia como se milhares de agulhas estivessem perfurando seu corpo. Não conseguia pensar em mais nada a não ser na dor. Então se lembrou de Sophie, de seu sorriso, de seu amor. Só ficava triste por saber que nunca mais iria ouvir sua doce voz e não iria escrever a seus pais com ela. Não tinha raiva das outras crianças, sabia que todas no fundo gostavam dela. Mas não importava mais, tudo acabara.

Era o fim.

Foi então que uma mão puxou Marguerite para a superfície. E outras mãos a pegaram e a arrastaram até que ela chegasse a terra. A garota não sabia quem a tinha tirado da água, mas estava muito agradecida, tinha certeza que era Marcos, ele viera salvá-la, só demorou um pouquinho. Então após alguns segundos Marguerite pode distinguir os gritos das outras crianças e das Amas. Amas!? O que estavam fazendo ali?

Seus olhos estavam fechados e ela quase não respirava, mas com muito esforço pode abri-los e ver que estava quase na margem onde não havia gelo. Mas as pessoas não olhavam aflitas pra ela e sim pro meio do lago. Ao correr os olhos pelo lago pode ver algo que a deixou em pânico. Sophie se debatia na água gelada, bem onde antes estava Marguerite.

“Então foi isso o que aconteceu?” Sophie fora salvá-la e em troca estava se afogando. Marguerite olhou a cena aterrorizada. Toda vez que a Ama emergia e tentava se segurar no gelo, esse se partia e a levava mais pro fundo. Nenhuma Ama se atrevia a ir lá, pois eram muito pesadas e o gelo só quebraria mais. Todas as crianças olhavam horrorizadas o fim de Sophie.

“Não. Ela não pode me deixar sozinha. Sophie é a única pessoa no mundo que eu amo. É a única pessoa que já me amou... e ela vai morrer...”.

Foi nesse instante que a atenção de todos se voltaram para Marguerite. A menina de 10 anos estava flutuando a um metro do chão. Seus cabelos levitavam alguns centímetros acima da cabeça e de seu corpo saia uma estranha energia verde. Parecia que seus olhos estavam em chamas, mas eram labaredas verdes como as que estavam a sua volta e levitou indo até onde Sophie estava. Nesse instante a Ama afundou e não mais retornou a superfície. Marguerite velozmente mergulhou no lago sombrio.

O tempo se arrastava. Os segundos pareciam horas para aqueles que estavam na margem esperando. Foi quando no centro do lago surgiu Marguerite flutuando com Sophie desacordada sendo levitada ao seu lado. Ninguém ousou falar nada, eles apenas olharam as duas voltando em direção à margem.

Ao tocarem o chão à aura envolta no corpo da menina desapareceu, ela depositou a mulher na areia e ficou olhando pra ela. A ama Heloisa aproximou-se com cautela e tocou no pulso de Sophie, apenas para constatar o que todos já sabiam. A Ama estava morta. Mas Marguerite pareceu não perceber, pois ficou olhando pra Ama com um sorriso esperando que ela acordasse a qualquer momento.

– Sophie? – chamou a menina num sussurro. – Acorda... Todo mundo está olhando...

Mas ela não se mexeu. Seu rosto estava roxo por causa do frio, mas seus lábios pareciam sorrir para a pequena Marguerite.

– Porque você não acorda? – Perguntou ela tristemente. – Para de brincar eu não gost...

A frase foi interrompida por um tapa vindo de Heloisa que olhava com fúria para a garota.

– Ela está morta. E a culpa é sua! Sua aberração! Bruxa!

Passado algum tempo todos haviam voltado para o orfanato. Mas até aquele momento Marguerite não derramara uma única lágrima, apenas ficara parada ali na beira do lago o dia todo. Morta? Aquilo a atingiu como um soco. Não, não podia ser.

Sophie nunca a deixaria sozinha. Ela prometera isso, prometera que quando a pessoa é amada ela nunca fica só. Mas Marguerite estava só. E só agora percebera que estava encharcada e que o vento soprava mais frio ainda. Olhou para o orfanato do alto da colina e viu que aquele não era o seu lar. Olhou para o lago e chorou. Chorou com nunca havia chorado antes. Chorou por não ter mais alguém que a amasse. Chorou por ter deixado Sophie morrer. Chorou por não ter conseguido salvar a única pessoa que realmente se importava com ela.

No dia seguinte ocorreu o enterro, nevava bastante e todos tinham um casaco quentinho para ir ao funeral, todos menos Marguerite que ainda estava com a roupa do dia anterior, o dia da morte de Sophie, nem mesmo as outras amas pareciam se importar com ela. Após o funeral todas as pessoas começaram a se afastar dali, deixando a pobre Marguerite sozinha, ela não falava nem olhava pra ninguém. Ninguém tinha coragem de olhá-la nos olhos.

Marguerite apenas ficou ali, parada olhando a o túmulo de Sophie até que sua vista foi escurecendo e a ultima coisa que ela viu foi à neve que começava a cair lentamente. Acordou uma semana depois em sua cama no Orfanato Kyrie. Ninguém olhava pra ela. Marguerite não saia de seu quarto, apenas ficava olhando o mar pela janela. Até mesmo Heloisa sentia um pouco de pena. Nem mesmo os outros órfãos mexiam mais com ela, perdera a graça. Desde aquele dia ela não conseguia mais dormir direito, sempre acordava a noite gritando o nome de Sophie. E sempre que isso acontecia Heloisa tratava logo de castigá-la.

Então em uma madrugada, exatamente há uma semana de seu aniversário, Marguerite sonhou pela primeira vez com Sophie. No sonho Sophie estava na beira do lago rindo para Marguerite.

“- Marguerite – Chamava ela alegremente. – Venha, mande sua carta!”

“- So...Sophie... – Chorava a menina. – Me desculpe, eu não pude salva-la.”

“- Não seja boba Marguerite - Sophie correu ao seu encontro e deu um enorme abraço na garota, fazendo com que as duas caíssem sentadas na areia – Eu estou bem e muito feliz, sabe por quê?”

“- Não. – Se encolhendo nos braços de Sophie”

“- Por ter lhe conhecido. Você minha cara Marguerite você é a melhor pessoa desse mundo. E eu não acredito que você não vai cumprir sua promessa!”

“- Que promessa?”

“- Ora que promessa!? – Disse ela fazendo cócegas em Marguerite que ria alegremente – A promessa de enviar uma carta aos seus pais. Quando eles lhe conhecerem e virem a menina linda e adorável que você se tornou vão amá-la pra sempre. Como eu amei você.”

Sophie se levantou e ajudou Marguerite a se levantar.

“– Você vai embora?”

“– Não minha linda eu vou sempre estar aqui. – Tocou então o peito de Marguerite. – Todas as pessoas que você ama sempre vão estar com você, onde quer que você esteja.”

Ela continuou após uma pequena pausa no qual Sophie dava um beijo na testa de Marguerite.

“- Você é a Herdeira sabia!?”

“- Sou é... De que?”

Tudo foi ficando escuro e a voz de Sophie se distanciando...

Enquanto acordava naquela manhã fria de final de inverno e se lembrava do sonho que acabara de ter, Marguerite pela primeira vez desde que Sophie havia morrido voltara a sorrir. Olhava então o mar por sua janela e tivera a certeza de dali em diante dormiria sem problemas e que aquilo não fora apenas um sonho...

FIM do Capítulo II


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