Dança com Demônios. escrita por zRainbow Dash


Capítulo 8
Pacto no escuro.




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/483743/chapter/8

— Você tá maluco, né? – comentou Khain, indignado, enquanto a risada de Habel ecoou pelo aposento.

Qanah’hyr foi até um de seus sacos e tirou de lá uma pedra de sabão colorido e um pequeno frasco de vidro preenchido pela metade por um líquido azulado. Virou-se para Khain e entregou os objetos para o garoto.

— Tem um balde com água no quarto do lado. Vai lá, toma um banho e depois volta aqui.  – disse, enquanto virava-se de costas para o garoto novamente e ia em direção a sua sacola. – Ah, é verdade. Volte nu. Deixa sua roupa ai mesmo se preferir.

— Eu estou limpo.

— Então fique mais limpo ainda. Sério. É questão de respeito. – respondeu Qanah’hyr enquanto retirava alguns objetos de sua sacola. – Não quero irritar quem a gente vai encontrar. Não mais do que já irritei antes. E você também não vai querer.

Aborrecido, Khain lançou um olhar ríspido para Habel, repreendendo-o pela risada.

No outro quarto, um local totalmente escuro, Khain encontrou o balde de água enquanto tateava o chão. Lavou-se com calma naquela água fria, esfregando o sabão colorido pelo corpo e passando o líquido nos cabelos. Deixou as roupas ao lado do balde.

Quando voltou, não encontrou Habel. Qanah’hyr usava uma túnica negra com capuz, escondendo quase que totalmente seu corpo. As mangas eram compridas e o capuz deixava a mostra apenas seu maxilar e sua boca, de onde surgia sua barba mal feita. No chão, a pequena adaga estava repousando ao lado de uma pequena taça prateada, cheia de um líquido rosado. Em torno dos desenhos ardiam algumas velas colocadas no chão, queimando em cores diferentes. Algumas azuis, algumas vermelhas e outras amareladas. Havia também um forte cheiro de canela no local, mas Khain não conseguiu encontrar de onde ele vinha. Dentro do círculo de sangue de Khain, havia um espelho redondo simples e sem adornos. Ele nunca havia visto um pedaço de espelho tão grande e ficou maravilhado com aquilo, mas não comentou nada.

— Khain, entre no círculo. – disse Qanah’hyr. Sua voz soou calma, mas ficou claro que se tratava de uma ordem. Quando o garoto colocou o pé desnudo no local, sentiu um pequeno formigamento em sua marca. – Em hipótese alguma saia daí. Não importa o que veja ou ouça. – disse Qanah’hyr, sério. Então entrou no círculo e virou-se para o espelho.

— O que exatamente estamos fazendo? – perguntou Khain, tentando fazer com que sua voz não soasse preocupada. Não conseguiu.

Qanah’hyr voltou-se para o garoto e, seu rosto foi escondido pela escuridão. As chamas da tocha estavam fracas e quase não iluminavam mais o local e as velas no chão brilhavam apenas à própria volta.

— Vamos evocar seu protetor. A energia que todos nós, magistas, usamos pra fazer o que for, vem deles. Da nossa fé neles. E sem ela, não somos nada mais do que pessoas normais. – disse, então estendeu a mão para o garoto. Nela, havia um pequeno amuleto prateado em forma de estrela. – Coloque isso no pescoço. O ser que vamos evocar aqui é o Asmoday. Ele é bem poderoso e sábio. Geralmente é um cara legal, mas nunca se sabe. Se alguma coisa estranha acontecer, levanta o amuleto que eu te dei na altura dos olhos e os feche.

Estavam prestes a invocar um demônio e Khain sabia. Qanah’hyr não queria assustar o garoto e por isso não disse a palavra exata, mas ele sabia. Sabia com o tipo de coisa que estava mexendo e, por algum motivo, isso fazia crescer uma estranha chama em seu interior.

— Khain, isso é muito importante. – começou Qanah’hyr, segurando o garoto nos ombros. – Não barganhe com ele, não o ameace e não peça nada. Melhor, não diga nada. Apenas responda caso ele te dirija a palavra.

Antes que Khain pudesse reagir ao comentário, Qanah’hyr ergueu a mão escondida no manto e revelou um pequeno sino dourado. O sino tocou oito vezes e então o colocou no chão, ao lado da lâmina e do cálice. O som foi baixo, mas preencheu o aposento de forma clara.

Com a mão esquerda, Qanah’hyr começou a desenhar no ar. Khain não reconheceu as formas, mas o sujeito o fez quatro vezes, em quatro direções. E então começou a falar. Falava baixo, com uma voz grave e estável, em uma língua estranha. O garoto já estava ficando acostumado a ouvir línguas esquisitas e achou que seria engraçado comentar isso, mas não o fez.

— Eu convoco e invoco a ti, ó espírito Asmoday. Pelas Chamas de Azazel, Senhor da Terra, eu te conjuro. Por Beralanensis, Baldachiensis, Paumachia e Aplogiae Sedes. Pelos mais poderosos Guardiões, Djinn, Genii e espíritos do abismo trazidos pela Grande Sombra da Seraph de Fogo. Eu invoco os sábios e antigos espíritos, atenda-me e apareça agora neste círculo. Pelos nomes de Eltharys, que trouxe o fogo ao barro. Que nos deu o fôlego, fogo imortal e sagrado. Eltharys, Ouyar, Chameron, Aliseon, Mandousin, Premy, Oriet, Naydru,Esmay, Eparinesont, Estiot, Dumosson, Panochar, Casmiel, Hayras, Fabelleronthou, Sadirno, Peatham, Venite, Venite, Eltharys Amém.

As palavras de Qanah’hyr soaram brandas e fortes, ecoando altas pelo aposento e estendendo-se pelo corredor lá fora, perdendo-se na escuridão. Khain sentiu um leve arrepio e então se lembrou de que estava nu.

— Eu o invoco, sombra e luz, anjo e demônio, juntos como um só. Eu o convoco. O grande familiar da terra, com o qual minha adaga lhe comanda, apareça, mova-se e se se materialize no ponto de encontro dos espíritos. – Dizia Qanah’hyr enquanto se abaixava e pegava a adaga do chão e a arguia em direção ao espelho. - Eu te conjuro Asmoday. Apareça ante a mim, no centro do círculo. Responda ao meu chamado e mostre-se na forma que desejar para que nos reunamos em minha comunhão!

Aos poucos Khain sentiu o ar no aposento ficar mais gelado. A sensação começou pela sua marca e logo cresceu pelo corpo todo. Era um frio estranho, diferente do frio que fazia lá fora da masmorra no inverno. Era um frio dolorido e Khain sentia em seu interior, em suas veias, correndo com seu sangue. O fogo da tocha começou a ficar cada vez mais fraco, dissipando-se no ar até tornar-se apenas uma brasa. O aposento foi coberto pela mais completa escuridão.

—Seja bem vindo, Asmoday. – disse Qanah’hyr após alguns segundos em silêncio no escuro. - Seja bem vindo neste lugar de reunião da encruzilhada. Eu lhe chamei para se juntar a mim, pela união do paraiso e do abismo. Eu deixo isto dentro deste círculo para que você pegue a carne e o desejo dentro do teu sigilo de conjuração, com o qual eu lhe dou a vida. – Khain não pôde ver o que aconteceu, mas ouviu o som dos passos de Qanah’hyr e então o som de algo tocando o chão ao fundo da sala. Logo Qanah’hyr voltou e continuou. - Tu não deixarás esse círculo até que eu esteja satisfeito, porque eu te trouxe ao mundo da carne mais uma vez. Pelo centro sagrado do arcano de sombra e luz, dentro do círculo Ouroboros sou obrigado e livre, mas como você é Asmoday e deve encarnar os meus desejos de que falo.  Pelo meu comando e vontade você me trará aquilo que eu determinar, pois eu também tenho agora os seus servos que obedecem ao meu comando. – Qanah’hyr enchia o peito ao falar. Sua voz estava cada vez mais alta, como se estivesse se irritando.  - Pelo pentáculo de Salomão, eu lhe invoco! Dê-me a verdadeira resposta!

Então o frio cessou. Khain sentiu o ar pesado e uma pequena dificuldade em respirar.  Então, nos cantos do aposento, soaram sussurros. Era baixos e rápidos e só após algum tempo Khain percebeu que eram na língua comum.

— Ele o chama. Ele o convoca. Ele o ordena. Ele fala na língua mortal. Ele não é ninguém. Devore. Queime. Fure seus olhos. – diziam os murmúrios, cada um em uma voz diferente. Então, no fundo do aposento, uma voz sobrepôs todas as outras.

— Aqui estou. – era uma voz fria e calma. Khain imediatamente lembrou-se de Bael. Era o mesmo modo de falar. A mesma voz singela e pacata, incólume e distante. De um aspecto sobrenatural.

— Eu clamo por ti, Asmoday. Sou Qanah’hyr Caleb, da Chama Cinzenta, e este é Khain.

Khain apertou os olhos, observando a escuridão e, após algum tempo, conseguiu ver algo à sua frente. Onde havia o espelho, algo tomava forma. Algo onde deveria estar apenas refletindo a escuridão do quarto.

—Eu sei quem você é. Não é a primeira vez que nos encontramos. Qual o motivo da convocação? E qual o motivo de tantas ameaças e ordens?

— Eu trago a você este garoto. – disse Qanah’hyr e Khain pôde sentir uma pequena hesitação em sua voz pela primeira vez desde o começo do ritual. – Ele precisa de você e sacrificou o líquido de sua vida para convoca-lo. Ele o saúda para que beba de sua taça.

O silêncio tomou novamente o local e, pela primeira vez naquele dia, Khain sentiu medo. Não havia se dado conta, até aquele momento, de que estava frente a frente com algo que Qanah’hyr não podia lidar.

— O que é você, garoto?

— Eu sou Khain, senhor.

Uma risada preencheu o local. Foi alta e espalhafatosa, assustando Khain, fazendo-o com que desse um passo para trás. Então se lembrou do que Qanah’hyr disse sobre sair do círculo e voltou para o lugar onde estava antes.

— Eu perguntei o que você é e não quem é. Eu vejo em seus olhos, mas quero que diga. Quero ouvir sua voz, ouvir se ela é digna de minha força, de minha fúria e de minha generosidade.

Khain não esperava uma pergunta tão complicada, então hesitou. Não queria deixar que passasse muito tempo, mas não queria dar uma resposta idiota.

— Sou teu servo e teu subordinado.  – disse Khain, após algum tempo. Sabia que essas criaturas gostavam, acima de tudo, de serem colocadas em um pedestal e era isso que faria. – Sou teu para que faça de mim o que desejar.

Qanah’hyr se precipitou e colocou-se entre Khain e o espelho.

— Ele está aqui para...

— Calado. Eu estou falando com o garoto. Interrompa e eu o mato. – interrompeu Asmoday, então Qanah’hyr saiu da frente do garoto. A sala foi tomada pelo ar gélido novamente. Dessa vez, mais gélido que antes. Khain sentiu em todo o seu corpo e rapidamente seus dentes começaram a bater. – agora em diga, o que quer de mim para que me sirva com tanto entusiasmo?

As palavras soaram de forma pacata, mas Qanah’hyr foi tomado por um silêncio completo.

— Eu quero poder. – respondeu Khain imediatamente. Em seguida, pensando no que poderia vir daquilo, completou. – Eu preciso da sua energia, quero me tornar um magista.

— E o que você pode me dar em troca disso? A sua fé de nada me servirá. Você não é ninguém e sua alma não tem valor algum. 

Não devia barganhar. Khain sabia que não devia, mas aquilo parecia impossível. Estava encurralado e o demônio sabia bem disso. Qanah’hyr também devia saber, mas nada falou. Não barganhe com demônios, Khain. Você já fez isso uma vez. Não se meta em mais uma.

— Eu serei alguém. Serei o magista mais poderoso que já lhe serviu. Vou erguer o teu nome para lugares onde jamais esteve. Mas preciso que me ajude com isso. Preciso que me conceda sua benção. – Aquilo não era algo que não poderia dar. Não havia informação dúbia ou qualquer outra forma de interpretar. Não havia modos de Asmoday jogar com suas palavras e o demônio sabia disso.

— Eu sou um dos sete reis do abismo, Khain. Estou logo abaixo de Eltharys e nada pode mudar isso. Não preciso que espalhe meu nome por ai. Não preciso de nada. Eu sou luxúria e fúria, sou fogo e caos. Sou o alfa e o ômega. O princípio e o fim e nada que alguém fizer poderá transformar isso.

— Mas está preso, não está?

Khain sabia que não devia estar falando assim com Asmoday, mas não havia outra forma. Queria sair daquela ilha, queria conhecer o mundo. Queria ver todas as coisas belas sobre as quais leu. Queria aprender e viver. Queria respirar e crescer.

O frio cresceu mais. Ficou tão frio que Khain se perguntou se, ao respirar, sairia vapor de sua boca. Sentiu seus membros se enrijecerem enquanto cresciam as chamas das velas em volta do círculo. Seu fogo dançava no ar, revelando totalmente o aposento e revelando também o espelho.

— Com meus poderes, garoto, você será capaz de alcançar a lua, rasgar os céus e abrir a terra, mas você não sabe o que isso lhe causaria. Meu ultimo servo tornou-se algo que nem mesmo Eltharys poderia domar e, no final das contas, ele está como está. Aprisionado em seu próprio refúgio. Amarrado pelas próprias sombras. Qanah’hyr o conhece. Diga a ele. Diga o que aconteceu com Lazarus

— Não fale sobre isso, Asmoday! – disse então Qanah’hyr, colocando-se diante do espelho. Em sua mão, estava esticada a adaga, com a lâmina para frente.

— Você me ameaça com tão pouco, Qanah’hyr. – escarneceu a criatura. – Sabe que, se quebrar meu selo, eu voltarei de outras formas, Qanah’hyr. Já aconteceu antes.

— Eu não permitirei que fale de Lazarus. – irrompeu Qanah’hyr, dando um passo para frente, ainda apontando a adaga.

Aos poucos, de dentro do espelho, uma forma começou a emergir. Primeiro as mãos saíram de dentro da superfície, depois a cabeça e o resto do corpo. Era um homem alto e pálido, completamente nu, sem qualquer vestígio de genitália, com braços e pernas longos e magros. Seus cabelos eram negros e compridos, descendo até a metade do tronco. Em cima deles, grandes chifres cresciam. Eram curvados e escuros, extensos e imponentes. Seus olhos eram completamente brancos, como os de um cego, mas Khain sabia que eles viam tudo que havia ali para ver e talvez mais. Um aro prateado circundava seu pescoço, apertado, onde uma corrente o ligava até o espelho. Asmoday estava contido em uma coleira, como um cão.

Imediatamente o homem abaixou a cabeça. Olhou para Qanah’hyr com um pequeno sorriso e sentou-se no chão, sem sair do lugar. Pegou a taça de prata e bebeu o que quer que estivesse ali dentro. Do canto da sua boca escorreu o líquido rosado, mas ele lambeu com uma língua comprida e bifurcada como a de uma serpente.

— O que vai fazer, Qanah’hyr? Você pretende quebrar meu selo se eu tentar me aproveitar do garoto? Pretende quebrar meu selo se eu falar sobre Lazarus?– perguntou Asmoday, voltando-se a Qanah’hyr, que assentiu com a cabeça. – Eu estou muito confuso. Você me trata como se eu fosse um daemon comum. – disse, enquanto jogava a taça vazia para longe. – Vocês da Escola nunca haviam tentado me invocar até aquele dia e deu no que deu. E mesmo assim, aqui estamos nós novamente. Eu quero saber o motivo real de eu estar aqui. Eu, Asmoday, príncipe do inferno, trigésimo segundo espírito e braço esquerdo de Eltharys. Guardião da eterna Chama Negra e senhor do abismo profundo. – sua voz era repleta de orgulho, enaltecendo-se com uma voz branda e poderosa.

— Este garoto tem algo de especial. – disse Qanah’hyr prontamente, baixando finalmente o braço que apontava a adaga para o demônio. – Ele e o amigo. Mas ele um pouco mais. Você já deve ter percebido isso. Deve ter sentido algo diferente nele. Ele emana energia. Ele atrai magia. Ele é diferente dos outros alunos que tivemos e achei que talvez você pudesse se interessar.

O demônio se levantou, apoiando-se no próprio joelho.. Khain sentiu uma dor lancinante em sua marca, mas se esforçou para não demonstrar nada. Asmoday curvou o corpo na direção de Khain, até que a corrente o parasse, e o garoto sentiu os olhos brancos o avaliando dos pés a cabeça. Colocou a mão no queixo e então se sentou novamente.

— É. Talvez ele possa ser alguém algum dia. – disse para si mesmo, fechando os olhos. Ficou em silêncio por algum tempo, pensando. Qanah’hyr não se moveu. – Khain. Você deseja ver o mundo? Deseja conhecer as montanhas? Os rios? As cidades? Deseja que eu te torne o mais poderoso magista que já pisou em qualquer lugar que fosse?

Não deveria ceder as palavras de Asmoday, isso sabia muito bem. A criatura tentaria iludi-lo. Isso era óbvio e era óbvio também que havia mais naquelas palavras do que Khain podia ver, mas não se importou.

— Sim.

Qanah’hyr imediatamente olhou para o garoto. Seus olhos negros, por baixo do capuz, estavam arregalados. Khain sabia que o que havia feito e simplesmente assentiu com a cabeça e voltou os olhos para Asmoday.

—Eu me tornarei o maior magista que já pisou neste mundo. E deverei tudo a você, senhor. – Khain estava indo longe demais. Sabia que estava, mas não conseguia segurar suas próprias palavras. Havia acabado de dar sua alma para um demônio em troca de poder. Em troca de sair da ilha. Apenas uma coisa estava em sua cabeça durante todo este tempo e ele sabia o motivo de estar fazendo isso. Bella.

O demônio assentiu com a cabeça e imediatamente abaixou o corpo. Soltou um estranho grunhido e, entre seus lábios, um líquido negro emergiu. Ele borbulhava e imediatamente um cheiro característico invadiu o local. O líquido, em poucos segundos, começou a desaparecer, como se escorresse entre as frestas das pedras que formavam o piso do local e, após sumir totalmente, restou apenas um anel preto. Era fosco e simples, totalmente liso e desprovido de adornos ou gravuras.

 

— Tome. É seu. Ele detém parte do meu poder e eu lhe empresto. – disse, então esticou a mão para fora do círculo de sangue em que estava.

Khain olhou para Qanah’hyr, que assentiu com a cabeça. Então o garoto caminhou pelo círculo até se aproximar de Asmoday. O Demônio tinha um cheiro forte que Khain não havia sentido de longe. Suas unhas eram negras como o anel e o ar era ainda mais pesado a sua volta. O garoto parecia ter se esforçado mais para andar até perto do demônio do que se esforçava para correr de um lado ao outro da ilha. Abaixou-se e apanhou o anel.

— Se precisar de mim, me chame. Eu virei. Mas lembre-se que, ao final da sua vida, eu virei buscar o anel e tudo que lhe dei. – disse. Então, colocou a mão dentro do espelho novamente, fazendo com que seu braço adentrasse na superfície do objeto e saísse, como se fosse um lago de águas calmas, puxando um papel e uma pena, já molhada de tinta vermelha. - Esperava que eu fosse usar seu sangue. Eu sei. Antes era assim, mas não precisamos dessas formalidades. Assine. – disse, então derrubou o papel e a pena sobre o chão. Khain sentou-se e escreveu seu nome no papel em branco.

Quando terminou de escrever, a ponta do papel começou a brilhar, avermelhada e, aos poucos, chamas cresceram sobre ele, queimando-o.

— Então é isso?

— Sim. Ao colocar o anel, você nunca mais irá conseguir tira-lo. Lembre-se disso. E quanto a você, Qanah’hyr, foi bom vê-lo novamente. Diga ao Shma que eu o saúdo. – disse o demônio, virando-se de costas.

— Direi. – soou a voz de Qanah’hyr. Estava fraca e ofegante. – Eu lhe darei...

— Eu não preciso de sua permissão para ir embora, professor. – disse o demônio com um leve riso em uma voz jocosa. – Até mais. – disse, entrando aos poucos novamente no espelho. – As trevas o esperam na hora de sua morte, garoto de Gomorra.

O fogo das velas imediatamente cessou, apagando-se por completo. Mas antes que a escuridão tomasse o local, a chama alaranjada da tocha cresceu e o frio maligno que tomou o local rapidamente foi dissipado. Khain olhou para seu braço e a sua marca havia sumido completamente, mas em alguns segundos ela começou a reaparecer. Quando Khain foi caminhar em direção da taça que Asmoday havia jogado longe, Qanah’hyr correu em sua direção e o segurou.

— Não saia do círculo.

Então se abaixou e passou a mão sobre o círculo de sangue, apagando um pedaço. Em seguida, caminhou até o espelho e o tirou do suporte que o segurava. Puxou um pano negro de dentro de seu manto e o cobriu por completo, então puxou o capuz para trás, revelando seu rosto marcado.

— Pronto. Agora é seguro. – disse, então quando Khain tentou sair do círculo, Qanah’hyr segurou em seus ombros.

Seus olhos estavam repletos de raiva e encaravam o garoto como se quisesse mata-lo. Então respirou fundo e abaixou a cabeça, fechando os olhos em seguida.

— Você é louco. – disse em voz baixa. – Completamente louco. E é por isso que te escolhi.

Khain riu.

—_______________________________________

Khain esperava a vez de Habel do lado de fora, sentado nos degraus da fria escadaria de pedra, tentando reconstituir o ocorrido. Bael, a esta altura, já devia saber de tudo e Khain não poderia mentir a ele. Era um ser ardiloso e o garoto se preocupava com a reação que viria.

Colocou a mão no bolso e retirou o anel negro de Asmoday. Colocou-o à frente dos olhos, examinando-o de perto, pois o local estava escuro e o anel era completamente preto. Era feito de um estranho metal e parecia mais frio e pesado do que deveria ser. O que será que isso faz? Será que eu já devo coloca-lo? Vou esperar o Qanah’hyr. Ele deve saber o que fazer.

Então, enquanto refletia, sentiu um enorme frio se apoderar do ambiente ao seu redor, assim como havia acontecido momentos antes com Asmoday. Mas havia algo diferente. Um estranho cheiro surgiu no ar. Um odor intenso e fétido.

Khain se levantou e olhou ao redor. Não havia nada. Nenhum som emergia do quarto desde que Habel havia entrado no aposento e fechado a porta, então o garoto não fazia ideia do que poderia estar acontecendo. Guardou o anel no bolso novamente e caminhou cautelosamente em direção à porta. Colocou o ouvido na madeira, esperando que pudesse ouvir algo, mas nada aconteceu.

O frio crescia enquanto Khain, inutilmente, tentava ouvir algo do que acontecia lá dentro. O silêncio era mortal e denso, mas logo o corredor foi preenchido pelo alto som de algo se chocando contra a porta no outro lado. O garoto não se assustou, mas ficou em estado de alerta. Sentiu o frio eriçar os pelos de seu braço enquanto olhava para a velha e enferrujada fechadura de ferro. Então um estranho sussurro veio do final do corredor, onde fraca luz da tocha presa à parede não podia iluminar.

Era um sussurro quase inaudível e Khain deu um passo para trás. Não podia haver nada naquela direção. Apenas infinitos corredores, salas e escadarias que iam cada vez mais profundamente para baixo. Nada vivo. Nada podia ter se escondido lá durante tanto tempo, mas ainda assim o sussurro permanecia. Parecia um monólogo ou uma reza, mas o garoto não conseguia entender o que dizia.

Então a porta se abriu com um estrondo. De dentro dela, Qanah’hyr, ainda vestindo seu robe negro, surgiu em um salto e colocou-se entre Khain e o corredor. Khain, perplexo, olhou para dentro do quarto.

Lá, Habel estava caído sobre o círculo, desacordado. Na sua frente, ao lado do espelho que o garoto já conhecia, havia um homem. Era magro e tinha o corpo moreno, escuro como bronze. Uma comprida cobra branca se enrolava em seu braço direito, envolvendo-o quase que totalmente. O rosto da criatura era impassível, com lábios avermelhados e um olhar ameaçador. Seu cabelo era liso e comprido, de uma cor prateada. Prateadas também eram as plumas de um estranho par de asas que crescia suas costas. Eram longas e sua ponta chegava praticamente ao chão e, apesar da cor, não brilhavam. Eram prateadas, mas mortas.

Qanah’hyr olhava para o corredor e trazia na mão sua adaga.

— Vá pra dentro do círculo. – disse ainda virado para o corredor. – Agora. – completou ao perceber que o garoto não se mexia.

Khain se apressou e entrou no quarto. O demônio o encarou, mas não disse nada. Apenas observou enquanto o garoto entrava no círculo, como se estudasse cada passo que ele dava.

Colocando o braço em volta do corpo de Habel, Khain sentou o amigo, que ainda estava desacordado. Havia uma queimadura em seu rosto, comprida, no formado de uma faca, logo abaixo do olho. Era vermelha e forte.

— Acorda Habel. – disse Khain, porém voltando os olhos para a porta, onde via Qanah’hyr, que ainda não havia se mexido. 

O cheiro estranho do local se misturava com o odor de carne queimada que vinha de Habel. O garoto não se mexia, mas respirava normalmente, o que deixava Khain um pouco mais aliviado. Porém, antes que pudesse chamar novamente o garoto, a porta do quarto se fechou em uma velocidade sobrenatural. E Qanah’hyr ficou preso lá fora.

— Qanah’hyr te chamou para ficar dentro do círculo, não foi? – soou a voz do demônio. Era uma voz calma, ainda mais calma que a de Asmoday ou de Bael. Parecia completamente serena. Khain deitou novamente o amigo e se virou para o demônio. – Eu sou Ashtart, é um prazer.

Khain não respondeu. Apenas ficou observando a criatura, enquanto se sentava ao lado do amigo e colocava a cabeça dele apoiada em sua coxa.

— Você não é de falar muito, certo? – disse Ashtart, enquanto se sentava na mesma posição de Khain, imitando-o como um espelho.

— Não com o seu povo. – respondeu Khain, secamente.

— Asmoday e Bael são do meu povo e mesmo assim vocês conversaram bastante. – A voz de Ashtart pareceu ainda mais calma do que antes. A cobra em seu braço começou a se desenrolar lentamente e logo tocou o chão. Khain não demonstrou reação ao ouvir os nomes de Asmoday ou de Bael. Não podia demonstrar fraqueza naquela situação.

— Eles são mais simpáticos. Pelo menos o Bael. – disse Khain, passando a mão nos cabelos de Habel. – Nenhum deles queimou meus amigos.

A cobra agora estava no chão e sai deslizando sobre o piso, indo em direção da escuridão do fundo do quarto, onde a luz da tocha não iluminava. Logo, sem Khain conseguir saber bem como ou de onde, outra serpente começou a se enrolar no braço do demônio.

— Nenhum deles queimou seus amigos? – disse a criatura de forma brincalhona. – Essa marca que eu coloquei em Habel é como a marca em seu braço, meu querido Khain. O problema é que seu queridinho não aguentou o incômodo que ela causa ao ser feita. Não como você aguentou aquele dia no lago.

Ele sabia de tudo sobre Khain e o garoto logo percebeu isso. Talvez fosse algum artífice ou truque, mas era impossível saber. Algo estava acontecendo ali. Algo diferente e por causa disso Qanah’hyr havia saído do círculo. Por causa disso Khain agora estava ali e Qanah’hyr não.

— Como você sabe dessas coisas? O que aconteceu aqui?

O demônio forçou uma tosse seca enquanto levantava o braço na altura dos olhos e beijava a nova cobra que se enrolava em torno do seu membro.

— Quanto a primeira pergunta, eu sei de tudo, Khain. Sei de todos os segredos, sei tudo o que os homens escondem e sei o que o destino reserva para seus corações. – dizia, enquanto olhava intensamente para a serpente. – Sei sobre tudo que acontece em todos os locais, tanto no reino dos mortais quanto fora dele. Sei o motivo das estrelas brilharem e até quando brilharão. Posso farejar os desejos nos espíritos dos homens e posso sentir em quanto tempo a vida irá se esvair de seu corpo. Eu posso ver tudo claramente. Tudo desde o início da criação.

— E o que aconteceu aqui realmente? O que Qanah’hyr faz lá fora? Você ainda não me respondeu. – irrompeu Khain, irritando-se. Sabia que o demônio não lhe devia explicações e dificilmente lhe daria respostas, então puxou o cordão que trazia no pescoço e colocou na frente dos olhos. Imediatamente a expressão de Ashtart mudou. – Me responda ou quebrarei seu selo. – se lembrava de Qanah’hyr ter dito algo assim e, mesmo não entendendo o significado, parecia algo importante. Ainda bem que não devolvi isso pro Qanah’hyr.

Ashtart se mexeu, parecendo desconfortável e logo a outra serpente se desenrolava de seu braço e caminhava pelo piso do quarto.

—Sempre as mesmas ameaças. – disse, jogando a cabeça para trás e a encostando no apoio do espelho.  – Vocês humanos são insuportáveis. Ainda bem que morrem cedo.

— Me diz.

— É simples. Assim como você, Habel agora está marcado e seu destino, selado. - Ashtart arrancou um fio de seus cabelos e segurou na frente de seus olhos. Aos poucos, o fio foi engrossando e ficando cada vez mais comprido, sem que o demônio fizesse nada além de observa-lo. – Eu e ele estamos entrelaçados e agora eu sei o que nos espera. Sei o futuro rubro em nossas mãos.

Khain se precipitou. Estava confuso antes, mas agora estava ainda mais. Olhou para o amigo, desacordado e depois olhou para o demônio novamente, incrédulo.

— O que ele pediu em troca?

— Seria horrível se eu contasse os segredos mais íntimos de um homem para outro. – disse Ashtart, ainda encarando o fio de cabelo. Logo, na ponta do fio, dois olhos se abriram, vermelhos como rubis de sangue. - Vocês estão atrelados pelos fios do destino e o destino é traiçoeiro. – disse, enquanto jogava para longe o que era anteriormente um fio de cabelo, e agora havia se tornado uma nova serpente branca. – Tem sangue no destino de vocês e do destino não se pode fugir.

Havia algo na voz do demônio que Khain não conseguia compreender. Era um tom diferente, como se a criatura sentisse algum tipo de prazer em tudo que acontecia ali. Um sentimento delicado, escondido, que o garoto não conseguiu compreender bem.

— Ele vai quebrar o que há de mais precioso em seu mundo, garoto. Ele vai destruir seus sonhos e pendura-los no alto das trevas.

O que esse bicho está dizendo? Tudo aquilo soava muito esquisito. Talvez forçado. Os demônios tinham uma leve inclinação ao senso dramático.

Khain colocou Habel de lado e se levantou. Ashtart se levantou junto, acompanhando os movimentos do garoto.

— Eu não confio em você. – irrompeu Khain, frente a frente com o demônio. Olhou a criatura nos olhos, encarando-o sem desviar o olhar e o demônio retribuiu.

— Ninguém confiaria. Não no lugar que você está agora. – demônio assentiu com a cabeça e abriu um pequeno sorriso. – mas isso não quer dizer que eu minto.

A verdade estava clara, mas Khain permanecia confuso. Tudo o que o demônio havia dito sobre o passado era verdade, mas isso não queria dizer que o que ele disse sobre o futuro também podia estar. Os demônios pareciam muito diferentes uns dos outros, tanto no aspecto físico quanto mental. Eles eram assustadoramente humanos.

— As estrelas se alinham, Khain. O tempo para o novo Aeon está se aproximando. As coisas vão mudar. – dizia Ashtart, ainda olhando nos olhos do garoto. Não havia expressão em sua voz, mas algo nela fez Khain sentir vontade de correr dali, mas não o fez. – Um novo mundo te espera e espera também a todos que você conhece. Todos. Um mundo vermelho sangue. Eu estou aqui por um motivo, Khain. Qanah’hyr está lá fora e você aqui dentro por isso. Você precisava ser avisado. Nós o vemos, Khain. Vemos todos aqui na ilha. Vemos Khain e Habel. Vemos Qanah’hyr. Vemos Bella. Esta ilha é especial, Khain. Especial como quem vive aqui.

Então a porta se abriu bruscamente e Qanah’hyr surgiu no aposento, entrando novamente dentro do círculo. Parecia cansado.

— Conte para ele. – disse Ashtart, voltando sua atenção para Qanah’hyr. – Conte com quem você falava lá atrás. Conte. – sua voz parecia um pouco mais exaltada que antes, mas não se elevou em momento algum.

Qanah’hyr arfava, respirando de forma lenta e carregada. Olhou para Khain e depois para Ashtart.

— Eu escondi. Tem mais uma coisa que eu vim fazer– disse Qanah’hyr, jogando sua adaga para o canto. Sua lâmina estava quebrada.

Khain olhou para o amigo, desmaiado sobre o chão e lembrou-se das palavras de Ashtart. Demônios são criaturas ardilosas. Havia maldade em suas palavras e o garoto sabia disso.

— Eu já posso me retirar? – perguntou Ashtart


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Dança com Demônios." morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.