Dança com Demônios. escrita por zRainbow Dash


Capítulo 2
Sobre demônios e crianças.




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Anos antes...

Um crepúsculo limpo crescia sobre o céu alaranjado e os últimos raios de sol encolhiam-se, retraindo-se no horizonte. No lugar da vasta claridade de um dia sem nuvens, pequenos pontos de luz brotavam, cintilando como prata.
Um garoto estava deitado sobre uma grama alta, observando as estrelas, quieto e imóvel, encarando-as como se encarasse antigos amigos, de uma forma quase nostálgica.
Seria um garoto comum de treze anos, de cabelos claros e lisos, da cor de areia seca e pele queimada pelo sol, se não fosse pelos seus olhos; olhos abatidos e vazios, de cores distintas. Um era de um azul intenso e profundo, como o céu refletido no mar e o outro era negro como a penumbra de uma noite se luar. Vestia roupas velhas e sujas de barro, revestidas de remendos, tantos remendos que seria difícil saber de que cor elas foram quando novas. Vestida com farrapos também estava a garota ao seu lado, que observava o céu com o mesmo olhar. Esta, por sua vez, era alguns anos mais velha, não ultrapassando os quinze anos. Seus cabelos eram ruivos, da cor de cobre com ferrugem e ondulados, descendo pelo seu rosto claro e delicado, onde chamejavam um par de olhos esverdeados.
— É lindo, não é? – disse a garota, em um leve flauteio de voz.
— Espere só até anoitecer totalmente. – respondeu o garoto, virando o rosto na direção da garota e encarando-a por alguns segundos, até ela retribuir o olhar. – Hoje teremos estrelas cadentes.
A garota pareceu maravilhada, como se uma luz iluminasse seu rosto.
— Sério mesmo, Khain? – perguntou, com uma voz entusiasmada. – Eu nunca vi estrelas cadentes! O Joseph fala sempre delas, que são mágicas.
Khain riu baixinho, com a mão na frente da boca e lançou um olhar jocoso para a garota. Em seguida, virou-se novamente para o céu e respirou fundo.
—O Joseph adora dizer que as coisas são mágicas, como se o mundo lá fora fosse infestado de fadas e elfos. As vezes tenho vontade de saber se é verdade.
Durante algum tempo, os dois permaneceram quietos, observando a noite cair e a lua emergir como uma foice prateada, iluminando o céu sem nuvens. Eles refletiram muito sobre a vida que viviam, mas nenhum dos dois falou uma palavra sequer. O momento era bom demais para estragar com pensamentos do tipo e ambos sabiam disso e, por esse motivo, apenas aproveitaram a companhia um do outro.
Era raro conseguirem ficar juntos e mais raro ainda conseguirem escapar da masmorra durante algum período para perambularem pela ilha. Todo o momento que passavam lá fora, respirando o ar puro, era extremamente precioso.
Quando a primeira estrela cadente rasgou o céu com sua calda esbranquiçada e vívida, Khain sentiu sua mão ser segurada pela mão de Laura, algo que nunca havia experimentado antes. A mão dela era quente e estava um pouco suada, mas ele não se importou, apenas colocou seus dedos entre os dela e rezou mentalmente para que um dia, pudesse sair daquela ilha com Laura e conhecer o mundo lá fora com ela.
— Olha Khain! Você viu? – disse Laura, no tom mais alto em que falara durante todo o tempo em que estiveram juntos. – Por Eltarys, que coisa mais linda!
Khain sorriu.
— Laura? – chamou o garoto, em um sussurro fraco, sem desgrudar os olhos do céu, enquanto outra estrela descia pelo horizonte, seguida por outras duas.
— Diga. – respondeu ela, em um murmúrio, focada no céu.
— Que tipo de mágica elas fazem?
A garota riu baixinho, e Khain virou-se para ela, ignorando o céu durante alguns segundos. Em seu íntimo, ele não sabia o que era mais lindo: aquela chuva de estrelas cadentes ou aquele sorriso tão raro e gracioso.
— Ué, você nunca acreditou nesse negócio de magia! Porque está perguntando?
— Curiosidade. – respondeu ele imediatamente, voltando-se para o céu em seguida.
Laura respirou fundo.
— Achei que você ia dar alguma explicação do que elas são, sabe? Algo tirado daqueles seus livros mofados. – disse, enquanto virou-se para Khain. O garoto retribuiu o olhar. Os olhos verdes, como grama da campina, chamejavam no escuro, encontrando-se com os estranhos olhos do garoto. Os dois se encararam durante algum tempo, estudando as faces um do outro.
— Bom, as estrelas cadentes na verdade não são estrelas, elas são met... – antes que Khain pudesse terminar sua frase, Laura colocou o dedo indicador nos lábios do garoto, enquanto ele parava de falar.
— Elas realizam desejos, se você rezar para elas. – sussurrou ela.
O garoto continuou encarando-a durante algum tempo. Podia sentir a respiração quente dela em seu rosto e, durante alguns segundos, achou que podia sentir até o sabor de seus lábios, vermelhos como morangos silvestres. Sentiu um calor intenso crescer em seu rosto, mas não se moveu. A sensação era estranhamente boa.
— Então eu fiz o meu pedido alguns minutos atrás.
Laura voltou-se para o céu e apertou a mão de Khain com mais força. Khain, por sua vez, continuou a deixa-la leve, como se tivesse medo de que algum movimento errado fizesse a garota solta-la.
— Eu também. – sussurrou Laura.

—-------------

O retorno para a masmorra foi tranquilo e pacato, sem surpresas. Nem Khain nem Laura articularam uma palavra sequer enquanto se caminhavam através do caminho secreto que utilizavam para suas escapadas. Tratava-se de uma passagem por trás de uma estante na sala comum, que seguia por um estreito túnel de pedras e terra até um aglomerado de rochas que ficavam na superfície. Não era lá muito seguro, mas era o que tinham.
Ao arrastarem a estante, com toda a cautela do mundo para não fazerem qualquer barulho, encontraram a sala comum vazia e escura, como rezaram a todos os deuses que conheciam para acontecer. O ambiente era amplo e vazio, apenas com algumas bancadas e uma grande mesa arredondada no centro e por isso, qualquer barulho iria ecoar longe. Com igual cuidado, os dois devolveram a estante no lugar e, na ponta dos pés, saíram dali o mais rápido que podiam.
Caminharam pela penumbra dos túneis da masmorra, esgueirando-se, norteados apenas pelas paredes as quais os guiavam enquanto arrastavam suas mãos por elas. Khain, que estava habituado ao local naquela escuridão, seguia na frente enquanto Laura o acompanhava, segurava-se em seu braço. Uma tocha ao longe tremeluzia, como o único ponto de luz, iluminando um pouco os dois.
Quando chegou o momento de se separarem, onde o corredor se dividia, Khain virou-se para ela e antes que pudesse sussurrar qualquer coisa, Laura tapou sua boca com a mão e em seguida, beijou-lhe a bochecha. Com uma piscadela, virou-se e partiu pelo corredor.
Khain chegou ao seu quarto apenas alguns minutos após a despedida. O local era pequeno, abafado, com apenas uma pequena janela que dava para o corredor, onde a chama amarelada da tocha tremeluzia fraca. Afora as teias de aranha, havia um amontoado de peles em um canto, onde costumava dormir, uma mesinha de madeira tosca e velha e, em um canto, junto com algumas mudas de trapos que usava para se vestir, uma pequena pilha de livros velhos, empilhados com cuidado. Seu pequeno tesouro.
Aquele era o grande santuário de alguém que não possuía mais nada. Era o seu ouro, sua fonte de alegria e ciúmes. Os dias naquela ilha eram sempre difíceis, cansativos e penosos, mas aqueles objetos de couro velho com páginas amareladas tomavam-lhe o tempo ocioso, o qual seria repleto de melancolia se não fosse pela distração que lhe traziam, ensinando-o e tornando o passar dos dias menos lento.
Phillip, um dos soldados das terras de fora, fazia parte dos encarregados de levar novos prisioneiros para a ilha e, sempre que dava as caras, trazia livros como presentes para Khain. O garoto nunca entendeu o motivo, mas gostava muito do homem e sempre que via o barco vindo ao longe no horizonte, rezava para que chegasse alguma continuação das histórias que vinha acompanhando.
O garoto suspirou baixinho e deitou-se em sua cama improvisada. Havia apenas três velas em sua gaveta, o que dava para umas dez horas de leitura. Dessa forma, precisava guarda-las para dias em que realmente tivesse vontade de ler ou elas acabariam antes de conseguir mais.
Khain fechou os olhos e cobriu-se, colocando o pano entre as pernas. Enquanto pegava no sono lentamente, lembrou-se do dia que havia passado. Enquanto procurava uma posição confortável, ouviu algo bater á porta.
— Quem é? – perguntou, com um tom cansado e arrastado. Tudo o que queria naquele momento era dormir.
— Por favor, me diz que não está pelado. – disse uma conhecia voz serena. Era Habel.
Khain riu baixinho e se levantou, deixando as cobertas caírem sobre o chão. Sentiu os ossos estalarem e gemeu de dor.
— Vem cá ver meu lindo corpinho nu. – disse, enquanto abria a porta e encontrava o amigo parado na soleira, segurando seus próprios panos de dormir.
Era um garoto muito mais alto do que Khain, apesar de ter apenas um ano de idade a mais. Seus cabelos negros estavam molhados e desciam-lhe pelo rosto, grudados na pele. Ele balançou a cabeça, molhando o amigo, em uma vã tentativa de seca-los.
— Posso dormir aqui? Você sabe como é o meu quarto em dias quentes assim. – disse Habel, enquanto entrava porta adentro e deixava seus panos de dormir caírem sobre o chão. Porém, ao virar-se para Khain e encontrar um rosto confuso, completou. – Ele fica cheio de insetos...
— Mas lógico que pode, cara. Pode ficar, relaxa ai. - disse, enquanto fechava a porta com cuidado para não fazer barulho.
Habel sentou-se sobre seus panos de dormir, com as pernas cruzadas e suspirou baixinho.
— Eu estou muito cansado. Você não faz ideia de como eu odeio trabalhar cortando mato... - disse, enquanto inclinava-se para trás e caia com as costas sobre o chão frio de pedra.
Cortar o mato que crescia nas redondezas da masmorra era o trabalho menos gratificante que havia para se fazer na ilha. Era cansativo, debaixo do sol quente, dava dores no ombro e não acabava nunca. Fora o fato de que, em três dias, já havia crescido tudo novamente.
— É, eu sei como é uma merda. - disse Khain, lembrando-se do terrível destino que o aguardava ao amanhecer. - Amanhã é a minha vez. A ala sul tem mato na altura do meu peito... - sua voz foi sumindo, a medida que a ideia de cortar o mato crescia em sua cabeça.
— Nossa, nem ferrando que você não vai acabar até anoitecer. - comentou Habel, ainda deitado. Após um bocejo alto e preguiçoso, completou. - Depois de amanhã você vai ter que terminar. - em seguida, ergueu-se, ficando novamente sentado e tirou a camisa velha que vestia, mostrando seu tronco branco, onde alguns fios negros creciam espalhados pela sua pele.
Khain bufou alto, enquanto Habel dobrava sua camisa e colocava ao seu lado, com um estranho e singelo carinho pelo tecido. Quando terminou, virou-se.
— O que foi? Se apaixonou?
Khain deitou-se, quieto como uma rocha, caindo sobre suas peles de dormir. O amigo fez o mesmo.
— Sabe Khain, hoje eu estava trabalhando e estive pensando sobre as terras de fora.
O garoto refletiu durante alguns instantes. Sabia o que viria em seguida, aquele papo sobre liberdade, sobre ver o mundo. Habel era um espírito livre, como um lobo, que precisava sair de sua jaula. Adorava correr, pular e gastar energia. Quando brincavam de luta, ele sempre ganhava, não importava o que Khain fizesse, ele sempre conseguia vence-lo sem muita dificuldade. Era um animal selvagem, com um olhar inteligente e arisco.
— Não existe futuro aqui na ilha, Khain. Nada aqui dentro vai mudar e não tem nada que nós possamos fazer.
— Eu sei. - respondeu Khain, com uma voz arrastada. - mas o que você quer? Fazer um barco do zero? Ou sequestrar algum dos que trazem mais gente pra cá? - continuou, em um tom irônico. - você sabe que essas coisas são impossíveis.
Habel suspirou.
— É, eu sei.
O silêncio preencheu o quarto de pedras. Um silêncio frio e desconcertante.
— Hoje eu saí com a Laura, fomos ver as estrelas cadentes. - começou Khain, enquanto fechava os olhos lentamente, lembrando-se do momento. - Eu ia te chamar, mas imaginei que você estaria cansado por causa do trabalho de hoje. - mentiu.
— Assim vou ficar com ciúmes.
— Idiota.

—-----------
O sol da manhã banhou os cabelos louros de Khain quando ele saiu pela porta da masmorra. O céu estava limpo, em um claro tom de azul, onde algumas gaivotas planavam calmamente. As poucas árvores que cresciam ali perto balançavam com o vento ameno, onde suas folhas farfalhavam baixinho.
O garoto caminhou pela campina em passos lentos e arrastados, enquanto tecia pensamentos cansados sobre o sol queimando a sua pele e de como queimaria o dia inteiro. Usando o ombro de apoio, carregava uma comprida foice de capinar, de lâmina gasta e cabo remendado.
Rapidamente chegou ao local onde trabalharia durante o resto daquele árduo dia. Foi fácil então que se deu conta do por que Habel ter dito que ele trabalharia mais de um dia. A grama era espessa e alta, alta o suficiente para passar de sua cintura facilmente em alguns pontos, e para piorar a situação, ela estendia-se ao longe.
Desanimado, foi até uma árvore e deixou uma pequena sacola pendurada em um galho. De lá, puxou um chapéu gasto e cinzento, cheio de remendos, e colocou-o sobre a cabeça. Tudo o que menos iria querer quando fosse descansar, seria uma febre decorrente da exposição ao sol.
Manejando sua foice com uma habilidade ímpar, Khain iniciou o trabalho, usando golpes rápidos e precisos para arrancar a grama selvagem em poucos movimentos. Em poucos minutos, gotas de suor começaram a escorrer pelo seu rosto e mostrarem seu gosto salgado nos lábios do garoto.
O sol lhe açoitava nas costas, esquentando suas leves roupas de trabalho, como um capataz raivoso, obrigando-o a trabalhar mais rápido.
O progresso era lento e os golpes do garoto tornavam-se igualmente lentos à medida que o tempo passava e o cansaço atacava. Os músculos ardiam e Khain não sabia dizer se era de calor ou de tanto utiliza-los, por isso, decidiu fazer uma pausa.
Voltou à árvore, onde sua pequena sacola repousava ao vento e apanhou de dentro dela uma maçã rubra e suculenta. O garoto a mordeu com vigor, arrancando um grande pedaço dela, mas naquele momento, um intenso e terrível gosto de podridão infestou sua boca. Ele cuspiu imediatamente o pedaço da maçã que havia mordido. Assustado, olhou para o resto da fruta que ainda segurava na mão. Em vez de branco, como seria normalmente, o interior da mesma estava negro. Negro e morto.
— Bosta. – resmungou Khain, irritado, cuspindo novamente no chão, dessa vez, apenas saliva. Segurou o resto da maçã com firmeza e arremessou longe.
Enojado, buscou seu cantil dentro da sacola, desesperado para lavar sua boca, mas para sua decepção, não o encontrou. Khain refletiu durante alguns segundos, então se lembrou de tê-lo deixado na masmorra. Suspirou alto. Teria de buscá-lo ou certamente desmaiaria durante o trabalho. Tudo estava dando errado e, por isso, bufou novamente.
Deixando seus pertences onde estavam, andou em passos vagarosos em direção à masmorra. Sua roupa estava banhada pelo suor e o sol ardia em seus braços, agora avermelhados pela exposição.
Sempre em busca das sombras das arvores no caminho, Khain andava despreocupado, apesar de sua pequena frustração anterior. Aquele tipo de coisa era comum para ele e por isso, estava ligeiramente acostumado. As frutas envelheciam e deterioravam-se em uma velocidade cada vez maior e algumas, vez por outra, já caiam contaminadas de seus galhos, repletas de vermes repugnantes. Khain poderia jurar que, quanto mais próximas estavam as árvores da floresta, piores nasciam seus frutos, mas ninguém nunca lhe deu ouvidos quanto a isso.
Ele não tinha horário para concluir o serviço e, pelo que percebeu, trabalharia durante mais de um dia. Dessa forma, cabisbaixo, quase deixou de perceber uma pequena movimentação atrás de um grande e amplo arbusto ao seu lado. Khain olhou rapidamente e imaginou que animal poderia ser. Era um dia ensolarado de verão e a fauna da ilha estava bastante agitada, mas apesar de sua pequena e repentina curiosidade, virou-se para a pequena estradinha e continuou a caminhar. Depois de alguns passos, parou e voltou-se para o arbusto, encarando-o. Algo ali não parecia normal. Será que os cachorros haviam escapado novamente?
Se fosse algum animal, não queria assustar a criatura e muito menos ser mordido, por isso, avançou cautelosamente em direção ao arbusto. Após alguns passos vagarosos, o arbusto mexeu-se novamente, de forma repentina, como anteriormente, mas de uma forma mais violenta e branda. Khain hesitou e sentiu um leve formigamento em seus pés, que pareciam prontos para lhe tirar dali se necessário. Mesmo titubeante, aproximou-se e empurrou as folhagens para o lado, segurando alguns finos galhos de madeira. O arbusto era extremamente volumoso e amplo, mas isso não impediu que o garoto continuasse repuxando os galhos, até ver uma estranha sombra do outro lado, onde as árvores e arbustos eram maiores.
Uma sombra negra, quadrúpede e esguia, grande como um urso, corria entre as folhagens, passando pelos arbustos como se eles nem existissem. Aquilo não era um cão, muito menos uma raposa ou qualquer outro animal comum e isso atiçou ainda mais a curiosidade de Khain que, embora não se sentisse muito confortável com a situação, não conseguiu deixar de correr atrás do que quer que aquilo fosse. Era uma sensação estranha tomando conta de seu corpo jovem. Uma sensação que movia os seus pés naturalmente, a despeito de todos os pensamentos e reflexões sobre o perigo no qual poderia estar se inserindo.
Seus pés tocavam o solo e pisavam sobre as pedras, mas isso não o impedia de prosseguir sua pequena caçada. O que quer que fosse aquilo, o garoto descobriria. O sangue fervia em suas veias e a sua palpitação subia. O coração quase lhe sua pela garganta enquanto galhos, farpas e espinhos furavam sua pele em meio à corrida. Para trás, apenas o sentimento letárgico de todo o marasmo que vivenciava na ilha. A criatura fugia, mas o garoto a perseguia com uma fúria jamais sentida antes, apesar do intenso sentimento de medo que lutava em seu interior para ser liberado. Era uma sensação nova, que misturava o temor com a sensação de descoberta. Algo que jamais sentiu antes. A ilha, um lugar tão monótono... e enfim havia algo novo ali. Algo que não conhecia.
Apesar de toda a sua fúria ao correr, Khain vez por outra perdia o vulto de vista, em meio as árvores, mas logo em seguida o reencontrava, cada vez mais distante, alargando a diferença de espaço entre ele e seu perseguidor. Era esguio, apesar de seu tamanho, o que facilitava sua fuga e, vez por outra, em seu corpo negro, o garoto podia visualizar linhas ou manchas mais claras e isso era tudo o que era possível reconhecer.
A perseguição continuou implacável, enquanto Khain seguia cada vez mais para o centro da ilha, distanciando-se da costa e onde a masmorra ficava.
Quando finalmente achou que encontraria a criatura, vendo uma abertura em meio às árvores, deparou-se com um enorme lago e, por isso, parou. A adrenalina se dissipou rapidamente, como um choque, quando olhou para trás e compreendeu que não fazia ideia de onde se encontrava. Era uma grande clareira, entre um círculo de árvores antigas, altas e imponentes, que se erguiam tampando parte da luz do sol com sua copa, dando ao lugar um aspecto sombrio. Suas raízes, fortes, saiam da terra, contorcendo-se e agarrando-se as outras em volta, como uma espécie de corrente. Ali, não havia vento e o lago entre as árvores, redondo e quieto, como se ali não vivesse peixe algum. Sua água era escura e tranquila, serena e intocável, como aquela mata toda parecia ser. Estava na floresta proibida.
Quando parou, abalado, Khain arfava. Estava exausto, abatido, apoiando-se em seus próprios joelhos, que tremiam enquanto suas coxas queimavam por dentro. Tinha sede, mas por algum motivo, não ousou tocar aquela água. Por quanto tempo havia corrido? Olhou para trás, mas não reconheceu o lugar. Aquela sensação que havia se apoderado dele, fazendo-o correr instintivamente atrás daquele animal, como se ele mesmo fosse um. O que era aquilo?
Fatigado, sentou-se sobre uma das raízes próximas a ele, para repousar as pernas.Nenhum habitante da ilha devia conhecer aquele local e dessa forma, ninguém conseguiria encontra-lo. Precisava contar consigo mesmo para voltar para a masmorra antes do anoitecer, antes que as sombras errantes aparecessem. Olhou para cima e só viu as folhas das árvores impedindo a luz de chegar ao chão. Não sabia que horas eram e nem a que distância estava de qualquer lugar conhecido. E pior, estava sozinho.
Sentiu as lágrimas surgirem em seus olhos e soluçou baixinho, ali, onde ninguém escutaria. Ninguém, apenas aquelas estranhas árvores, que pareciam tão antigas quanto o próprio mundo. Elas elevavam-se, com seus troncos grossos e fortes como pedra. Khain, que chorava baixinho, sentiu uma estranha pressão sobre ele, quase como se fosse observado. Como se as árvores que ali jaziam, o encaravam, analisando-o como o forasteiro que era. No ar, quente e pesado, Khain quase podia ouvi-las sussurrando, baixinho, em sua língua ancestral e remota. Quase.
Não podia se desesperar ou entrar em pânico. Estava perdido e precisava dar um jeito de sair dali. Talvez, se voltasse em linha reta, indo em direção de onde havia vindo, chegasse a algum lugar, mas isso não era de total certeza.
Enxugou as lágrimas com as costas da mão e levantou-se lentamente. Precisava se concentrar e dar um jeito de sair dali. Não podia contar com a luz do sol para saber a localização ou as horas e isso dificultaria muito. Dessa forma, decidiu que só havia uma alternativa: subir em uma árvore.
Khain nunca foi um exímio escalador de árvores, não como Habel era e, por isso, hesitou ao examinar o enorme tronco à sua frente. Olhou atentamente para as aberturas em seu caule, procurando visualizar bem onde colocaria os pés e as mãos. Havia alguns galhos e rachaduras, o que ajudariam no processo. Então começou.
Não foi realmente difícil subir , pois era garoto era forte e estava habituado a fazer tal tipo de esforço. Sua subida foi ligeira e fácil, apesar de alguns escorregões e, em alguns instantes, já estava acomodando-se em um galho alto. Sentando-se, após achar uma posição em que podia permanecer equilibrado, encarou o horizonte ou o que era possível de ver.
As árvores, extremamente juntas e amontoadas, formavam pequenas paredes de um imenso labirinto verde e marrom, que crescia até onde os olhos de Khain podiam enxergar. Estava na floresta, o local proibido dentro da ilha e por isso suspirou baixinho. Preocupado, não sabia o tamanho dela e tampouco como sair da mesma. Mas uma coisa ele sabia, que o que quer que repouse nessa floresta durante o dia, era o que saia dela durante a noite e por isso todos os habitantes da ilha eram proibidos de saírem da masmorra após o crepúsculo. Algum mal estava recolhido naquelas terras, à espreita, rastejando entre as árvores, esperando o por do sol.
O garoto encostou as costas no tronco, procurando conforto. Talvez se subisse mais, pudesse olhar por cima da copa das árvores. Talvez pudesse encontrar alguma trilha. Ficar ali, parado, não ajudaria em nada. Khain olhou para cima e viu os poucos galhos em que poderia se apoiar a partir dali. Seria uma escalada ainda mais difícil. Olhou para baixo e encontrou o lago. Se caísse, cairia dentro dele, o que era algo bom, apesar de não saber sua profundidade.
Apoiando-se no tronco e em um galho acima de sua cabeça, ergueu-se ereto e foi aí que viu algo se movimentando entre as raízes das imensas árvores à sua frente. Duas pessoas caminhavam cautelosamente, um lento passo após o outro, como felinos atrás de uma presa. Seus pés dançavam entre as raízes e folhagens, galhos e pedras, como se eles nem ao menos existissem. Estavam distantes demais para Khain distinguir se os conhecia ou não, mas antes que pudesse sequer pensar em quem poderia ser, soltou uma pequena exclamação. Tapou a boca com uma das mãos, sem soltar o galho no qual se apoiava.
Os dois sujeitos viraram-se no mesmo instante, encarando o topo das árvores, correndo os olhos pelos galhos. Khain cerrou os olhos, tentando enxergar melhor e então percebeu que um deles preparava uma flecha em um arco que segurava enquanto o outro se aproximava, como se lhe instruísse. Eles ainda não haviam visto o garoto, pelo que pode perceber, já que ainda moviam a cabeça, observando o local.
Precisava fazer algo, mas o que? Talvez fossem conhecidos. Poderia ser Odher e Lemmy procurando pelo garoto. Claro que entrariam armados na floresta, pois não eram loucos... mas havia algo esquisito. Algo que Khain não podia deixar de sentir. Uma sensação estranha. Talvez algo no ar, como um aroma ou fragrância. Mas que antes que pudesse entender o que estava acontecendo, o indivíduo que segurava o arco, soltou a corda.
A flecha rasgou o ar, assobiando, atravessando o espaço entre eles em uma velocidade assustadora. Sem tempo para reação, Khain tentou abaixar-se, mas sua mão acabou escorregando do galho no qual se apoiava, fazendo-o perder o equilíbrio. Seu pé escorregou.
Quando percebeu, estava caindo em pleno ar. Não havia nada para se segurar e a queda era longa. O tempo pareceu parar enquanto o vento zunia em seus ouvidos, levantando seus cabelos louros e remexendo suas roupas. O desespero era quase inexistente e ele apenas precisava esperar, rezando a todos os deuses que conhecia para que aquele lago fosse fundo o suficiente. Pelo menos não havia dor, então sabia que a flecha não o havia acertado. Precisava virar o corpo, precisava mudar sua posição ou a queda iria doer tanto quanto se caísse no chão duro de pedra da masmorra... mas apenas um pensamento correu em sua cabeça. Laura.
O choque da água em suas costas foi doloroso e fez Khain sentir o coração quase sair pela sua boca. Afundou durante alguns instantes, imóvel, enquanto a água fria tomava conta de seu corpo, banhando-o por completo. Logo sentiu o toque do fundo do lago, mas não se moveu. A dor era imensa e se não estivesse completamente sem fôlego, choraria ali mesmo.
Seus pulmões completamente vazios ardiam, enquanto o garoto lutava para não deixar entrar em suas narinas a gélida água do lago.
Aos poucos foi recuperando as forças, enquanto abria os olhos e via uma luz fora da água. Um único ponto, ardente, tremeluzindo ao longe.
Estendeu a mão, em uma vã tentativa de alcança-lo, agarra-lo com seus dedos, que formigavam levemente. Mas então, subitamente, de forma abrupta, algo se enrolou em volta de seu pulso. Algo negro, enroscando-se como uma serpente faminta, e puxando-o com força para fora da água.
Khain fechou os olhos, enquanto emergia, esperando sentir aquela luz quente banhar seu corpo, mas isso não aconteceu. Seu corpo chocou-se com força contra o chão duro, machucando lhe as costelas. Um ar gélido invadia seus pulmões, mas ele não se importou. Respirou com todas as forças, todo o ar que podia, enchendo o peito como se aquela fosse a ultima vez que respiraria. Agarrou o ar com todas suas forças, como uma mãe agarraria um filho que partiria para a guerra... então abriu os olhos.
Sua visão estava turva e esbranquiçada, mas podia discernir as formas e objetos de uma ampla sala, cercada por paredes de rocha escura e úmida, onde algumas estantes erguiam-se no aposento, recheadas de livros antigos, grandes e pequenos, dos mais variados formatos. Mas o que mais chamava a atenção no peculiar local era um pequeno altar cinzento, onde estava entalhado um pequeno dragão de asas estendidas, com um rosto calmo e impassível. Sobre suas asas, abria-se um tomo antigo, marcado pelo tempo, fechado com uma pequena corrente de prata. Em um canto, um baixo trono negro jazia, onde o fogo de duas tochas crepitava em sua volta, de forma simétrica, iluminando o local por completo.
— Então... Finalmente está na hora. Gostou do meu lar? – perguntou uma voz sussurrante atrás do garoto. Khain sentiu seu sangue congelar. Era uma voz masculina, gélida e sensata, como um frio vento de inverno. Havia algo anormal nela, algo sobrenatural, que ele não conseguiu decifrar. Relutante, virou-se lentamente para observar o homem.
Tratava-se de um sujeito alto, trajando vestes negras e compridas que lhe desciam dos ombros aos pés. Seu rosto era alvo, branco como uma folha de papel, sem marcas de idade ou imperfeições de qualquer natureza, onde dois olhos negros e sem brilho estavam incrustados, fitando o rapaz com uma expressão desdenhosa. Sua sobrancelha era rubra, avermelhada como sangue vivo, assim como seus longos cabelos que cresciam volumosos até o tórax.
Se isso fosse uma história comum, Khain teria gritado de horror ao perceber um enorme par de chifres curvados, escuros, ondulando sobre a parte de cima de sua cabeça. Em vez de ficar horrorizado, Khain simplesmente os observou estático.
Mais exótico, porém, era a criatura que jazia deitada aos seus pés, encarando o garoto com olhos amarelados, onde fendas pretas cintilavam como em uma serpente. Era uma criatura azulada, em tons escuros, esguia, enrolando-se em torno das pernas do homem ali parado, em seus quatro pares de patas, onde três garras cresciam como lanças. Suas costas eram cobertas por um tipo de carapaça preta, que ao chegar perto de sua cabeça, tornava-se aos poucos uma fileira de espinhos eriçados como pelos. Para completar a aparência demoníaca da criatura, sua boca era coberta por fileiras de dentes pontiagudos e salientes, de onde serpenteava uma língua comprida e arroxeada.
Khain engatinhou de costas, procurando manter distância do monstro que poderia medir fácil um metro de altura. Não havia nada que pudesse usar para se proteger, nenhuma pedra solta ou pedaço de madeira. Sentiu-se nu.
O homem deu um passo à frente, afastando-se do animal que não se moveu. Estendeu a mão para fora do manto que vestia, inclinando-se para frente. A mão era clara como a pele de seu rosto, com dedos compridos e finos, quase femininos.
— Ora, não se acanhe, gatinho assustado. Ele não vai atacar. – disse o homem, aproximando ainda mais a mão do garoto. – Ao menos que eu peça para que ele faça o contrário, logicamente.
Khain fitou a mão do homem, relutante. Fosse o que fosse não era um homem comum. Não sabia até que ponto poderia confiar em sua palavra ou em toca-lo, mas não havia alternativa. Aquilo não parecia ter soado como uma ameaça, mas o garoto sentiu que o melhor era não esperar para ver, então segurou a mão estendida, que o ajudou a erguer-se sobre seus pés. Estava encharcado e com frio e só agora havia percebido isso.
— É bem assustador, não é? – começou o sujeito, virando-se para a criatura, que permanecia imóvel como uma estátua. - Mas é um bom companheiro, juro. Ele que não me deixa morrer de solidão aqui dentro. Você já teve algum animal de estimação?
O garoto estava confuso demais para conseguir responder aquilo com rapidez necessária para que o diálogo se assemelhasse a uma conversa comum. Mas por fim, tomou fôlego.
— Bom... na ilha, nós temos alguns cachorros. – respondeu apreensivo. Não entendia que rumos aquilo poderia tomar, mas não queria parecer mal educado, não quando um monstro o fitava com saliva pingando de seus dentes.
— Céus, eu amo cachorros! Aquela personalidade calorosa deles fazia com que eu me sentisse tão bem. – disse o homem, entusiasmado. Seus dentes eram todos comuns, a não ser pelos caninos, afiados e compridos como facas. – Esse lindinho aqui não é um cão, mas ele é bem carinhoso quando quer. A propósito, você é Khain, certo? – perguntou, enquanto caminhava lentamente em direção ao trono.
Khain empurrou o cabelo para trás. Ele sabia seu nome, mas como? Que lugar era aquele? Quem era aquele homem? Havia uma centena de perguntas em sua cabeça, mas não podia deixar o desespero tomar conta da sua cabeça. Por hora estava seguro e isso o aliviava um pouco. Precisava ir com calma. O homem precisava continuar falando e parecia que gostava muito de fazê-lo.
— Sim, meu nome é Khain, e você? – perguntou, enquanto via o homem sentar-se em seu trono, largando-se sobre ele sem qualquer floreio, como se estivesse exausto. Não achou que poderia mentir, não enquanto aqueles olhos negros o encarassem como se estudassem o corpo e a alma do garoto. Era como uma espada apontada para sua garganta.
— É esquisito responder isso depois de tanto tempo. – começou, então respirou fundo e estalou o pescoço de leve, inclinando a cabeça para o lado. – Já fui chamado de muitos nomes, sabe? Tantos que não sei qual te responder. Ou talvez eu simplesmente não me lembre. Tanto tempo confinado aqui e eu já nem sei mais quem sou. Mas o mais antigo, penso eu, é Bael. Pelo menos era assim que os primeiros me chamavam. Na língua deles acho que era alguma palavra pra “Senhor”, mas acabou ficando. É como quando te dão um apelido que acaba ficando mais popular que o seu próprio nome, sabe? – continuou, rindo baixinho, deixando a mostra seus exóticos dentes intimidadores.
— Sei. Tem um sujeito na ilha que nós chamamos de Barril, pois ele é muito gordo. – Disse Khain, fazendo o possível pra se sentir à vontade ou pelo menos fingir que está.
O homem respirou fundo, enchendo o peito e soltando o ar lentamente.
— Que falta de criatividade! – resmungou baixinho. – vocês humanos, quando querem, conseguem ser tão chatos. Céus. O homem é gordo e o apelido mais divertido que conseguem colocar nele é Barril? Mas acho que a culpa não é sua, deve ser de algum idiota. Mas você não é assim, eu posso ver. – continuou, enquanto mudava o tom de voz. Ficava mais sério e, conforme falava, aproximava o rosto de Khain, que permanecia de pé na sua frente. – Estou falando demais, não? – perguntou, voltando para sua voz tranquila de antes. – Vamos. Você deve ter perguntas. Vou lhe dar o direito de fazer três delas, certo?
— Primeiro, que lugar é esse?
Bael sorriu de levinho com o canto da boca.
— De certa forma, ainda estamos na ilha onde você mora. É um tipo de lugar entre o seu lugar e o meu lugar, entende? Pode soar esquisito, mas é exatamente isso. Aqui também é uma pequena sala onde eu vivo, como você pode perceber.
— O que é você?
— Eu sou de uma espécie antiga, meu caro Khain. Sou tão velho quanto a ilha, quanto o sol que banha ela com sua luz e quanto a lua que ilumina a escuridão. Vocês, humanos, costumam nos chamar de demônios ou de criaturas da noite, e se referem a minha raça de uma forma um tanto quanto pejorativa.
O garoto estremeceu.
— Como eu volto para casa?
— Ah! Finalmente uma pergunta coerente. Eu já estava mudando de ideia sobre você não ser um idiota, sabe? – Bael riu alto, levando a mão ao rosto. – mas enfim, eu vou te mandar novamente pra casa em breve, mas antes, precisamos acertar algumas coisas. Você só precisa fazer o que eu vou lhe dizer e então você poderá voltar para os braços da sua namoradinha.
Khain bufou. Poderia ter usado melhor suas perguntas, mas não foram totalmente em vão. Agora sabia com o que estava se metendo e no tipo de encrenca que estava incluso. Não podia ser inocente, sabia que os demônios eram criaturas furtivas e ardilosas, pelo menos assim eram nas histórias que havia lido sobre eles. Tudo o que se conseguia deles, tinha de ser pago. Eram criaturas com as quais não se podia barganhar.
O garoto não estava totalmente amedrontado. Medo não traria nada de bom naquele momento e, por algum motivo, seu cérebro pareceu perceber isso rápido demais. Não poderia perder o controle ou acabaria sendo enganado ou morto... ou quem sabe algo pior. Demônios não eram algo real até dez minutos atrás. Eram criaturas das histórias antigas, dos contos de fadas ou da cabeça dos loucos. Eles não estavam presentes entre os problemas do mundo real, não eram a causa da fome, da sede ou do frio. Não até o momento.
— O que eu tenho que fazer para ir embora? – perguntou Khain. Precisava ser direto, pois nas histórias, os problemas sempre vinham nas entrelinhas, nas ambiguidades.
Bael passou os dedos sobre seus cabelos avermelhados, entre os fios, quase como se os penteasse. Seus olhos fecharam-se durante alguns instantes e depois se abriram calmamente. Sua respiração estava lenta e calma, como de um animal antes da morte.
— Para que a pressa? – perguntou, com um leve ar de chateação. – Você quer tanto assim voltar para casa? Tão rápido? Aquele lugar meio imundo, meio chato. Achei que poderíamos conversar mais. Eu passei muito tempo sem quem conversar, sabe? O Gothar, o bichinho ali, não é de falar muito, apesar de ser um bom ouvinte. – suspirou baixinho. – Olha, abre aquele baú e pega uma almofada pra você sentar em cima.
Khain passou os olhos pela sala e avistou o baú. Era de uma madeira clara e bonita, bem lixada e sem adornos. Seu fecho era prateado, mas estava destrancado. Levantando-se lentamente, sem querer demonstrar pressa alguma, foi até ela e a abriu. Havia apenas uma grande almofada avermelhada lá dentro, nada mais, por isso pegou-a e fez como Bael disse. Sentou-se calmamente em frente ao demônio.
— Se você anda se sentindo tão só, porque não sai daqui? – disse Khain, sem pensar muito. Realmente estava sendo apressado demais, mas era de se entender o motivo. Um demônio a sua frente e um cão monstruoso as suas costas, fora o fato de estar perdido e com frio.
— Eu não posso. – respondeu Bael, após alguns segundos quieto. Havia algo em sua voz que se assemelhava a um pesar profundo. – Estou preso aqui há muito tempo. Tanto tempo que fica difícil se lembrar de várias coisas do mundo lá fora.
— Entendo. Deve ser difícil ficar confinado. Uma vez caí em um buraco e passei o dia inteiro lá, com o sol sob a cabeça, até me tirarem de lá. – começou o garoto, tentando lembrar-se de como chegou a cair lá, mas não conseguiu.
Bael inclinou-se para frente, encarando o garoto, com os olhos perspicazes. Não havia brilho neles, mas o garoto pode perceber uma fagulha de sentimentos em algum lugar naquele negrume que o par de olhos era.
— Eu odeio o sol. - disse, olhando para o chão. Talvez lembrando de como é o toque de seus raios e do calor que ele proporciona. - Escute, posso ser mais velho do que as pedras que me prendem aqui, mas eu sinto o passar do tempo. Sinto nos ossos. Não devemos medir as tristezas das pessoas comparando com as nossas, pois cada ser é diferente, mas imagine você preso naquele buraco durante mais de quinhentos anos. É muito tempo, não? Tempo o suficiente pra se esquecer do que é o sol que você tanto reclamou no dia em que ficou lá preso? Tempo suficiente pra se esquecer de como é ter uma conversa leviana com alguém em um bar? Tempo suficiente pra se esquecer de como é o amor?
O garoto engoliu seco. Havia uma tristeza naquelas palavras que nem o som delas podia traduzir. Algo depois delas, algo mais fundo do que as palavras ou a voz. Algo que se debatia incontrolavelmente como um inseto após ser pisado, agonizando desesperadamente.
— Mas o que o prendeu aqui? - perguntou Khain, exitante. Estava assustado e não queria despertar a ira da criatura. Isso nunca é bom, em hipótese alguma. Todos tem seus meios de nos machucar, se atiçados. Até mesmo um minúsculo mosquito pode nos morder.
— Ah, aqueles bastardos. - suspirou Bael, cruzando as pernas e olhando para o lado. Apoiou o rosto na palma da mão e o cotovelo no encosto de seu trono. - Fui traído, apunhalado e despido de meus poderes. Bom, de quase todos eles. Mas isso é tudo o que você precisa saber.
O garoto ficou perplexo. Não era a resposta que esperava e nem da forma que esperava. Nunca imaginou ver algo como ele e muito menos algo como ele chateado. Parece que os livros não estavam totalmente certos sobre a natureza dos demônios. Eles sempre eram referidos como criaturas de puro ódio e luxúria. Bom, talvez luxúria fosse algo recorrente em Bael, mas não ódio. Ele parecia até simpático, do jeito dele.
— E você quer sair daqui pra se vingar? Vai me usar pra isso, tenho certeza.
— Mas é claro! - respondeu Bael, entusiasmando-se de forma impetuosa. Sua mão fechou-se em um punho, tremendo levemente. - Escute. Há anos profetizei que você cairia aqui e há anos venho o observando. Você é perfeito para o que eu preciso.
— Ah, não sou muito perfeito pra nada, sabe? Eu nem pescar direito sei. - resmungou Khain, lembrando-se da ultima vez em que tentou pegar um peixe. A vara voou em direção ao lago e nunca mais foi vista.
O demônio baixou sua mão fechada e desceu-a até o ombro direito do garoto. Seu toque era frio, uma mordida gélida como um vento de inverno, passando pela sua roupa encharcada. Ele levantou-se de seu trono e ergueu o garoto com apenas uma sujestão do que ele deveria fazer. Khain, de pé, frente a frente com Bael, sentiu a mão de Bael passar do ombro para o seu braço e ao chegar próximo ao punho, segurou-o.
— Hei, espera...
— Não se preocupe, vai durar apenas alguns segundos e nós dois realmente precisamos disso. Dói tanto em mim quanto em você.
O demônio apertou o braço de Khain e sussurrou algo em uma velocidade sobrenatural. O garoto não conseguiu reconhecer sílabas ou sons. Era algo completamente diferente de tudo que já havia ouvido. Sentiu o corpo arrepiar-se, mas não teve vontade de se soltar. O lugar onde Bael o segurava passou do frio ao calor em segundos, esquentando-se rapidamente. Esquentando-se muito.
O garoto hesitou, mas não puxou o braço. Se o demônio o quisesse ferido ou morto, já o teria feito. Era algo diferente que estava acontecendo ali. Um arrepio corria pela sua espinha e a dor crecia, queimando-o até a carne. Lágrimas irromperam de seus olhos, mas não cedeu. Olhou para Bael, com a visão turva. Os olhos dele estavam sérios, como se fizesse um esforço descomunal.
Quando foi solto, Khain despencou no chão, exausto. Suas pernas ardiam, seu corpo se contraía, mas nada doia mais do que onde o demônio o havia tocado. Lá, onde sua mão esteve, repousava uma marca negra em um formato exótico. Uma espécie de árvore morta, sem folhas, com raízes e galhos longos, retorcendo-se em volta de seu braço.
Olhou para cima e viu Bael sentar-se novamente em seu trono. Respirava fundo, de olhos fechados. Seu rosto quase parecia ter suor. Quase.
— O que você fez comigo?
— Eu lhe coloquei uma marca, Khain. A minha marca. - começou Bael, em pequenas pausas, nas quais respirava fundo. - Me desculpe, eu estou fraco. Não era pra ter doído tanto assim, não foi minha intenção.
— Mas doeu e ainda dói.
Bael abriu os olhos, seus olhos sem brilho, negros como carvão velho. Havia algo neles que Khain não tinha visto até então.
— Eu não me importo se doeu ou não! - irrompeu, segurando o apoio de seu trono com força. - Seus pequenos problemas mortais não me dizem respeito. Você e sua raça não vivem mais do que sessenta anos, não são nada! - continuou, enquanto saliva escorria entre seus lábios.
O garoto continuou o observando, quieto, enquanto sentia a ira de Bael passar como uma pequena tempestade de verão. Sabia que passaria, podia sentir, entre os espasmos que sentia da queimação em seu braço. E passou.
Bael sentou-se novamente, bufando como um touro.
— Escute. - começou, recuperando seu tom de voz comum. - Eu preciso que você traga pessoas para o lago. As derrube dentro dele. Eu me encarregarei do resto.
— Eu acho que posso fazer isso. Mas essa é a condição pra me deixar sair daqui? - disse Khain, após pensar um pouco. - não tenho como provar que farei isso. Você está preso aqui, como me forçaria?
Bael olhou para a criatura do outro lado da sala.
— Eu não posso sair, mas Gothar pode. - disse, de modo indiferente. A criatura rosnou baixinho, em um som sinistro e sorrateiro. - E ele já me contou sobre Laura, sua amiguinha. De qualquer forma, você me ajudaria, mesmo sem esses pequenos incentivos. Sabe o que eu posso fazer quando sair daqui e sabe que não vou esquecer de você. De qualquer forma, talvez possamos nos ajudar. Faça isso e eu te tirarei dessa ilha. Você vem comigo para o continente lá fora.
Era uma proposta maldita. O demônio sabia que isso era o que Khain mais desejava na vida e estava usando disso para convence-lo. E, em poucos segundos, Khain percebeu que foi realmente convencido. Era errado. Errado e perigoso. Khain passou metade da vida evitando alguns tipos de trabalhos, os quais julgava monótonos e sem sentido. Tudo lhe parecia chato, mas este não. Era algo diferente e não sentia que alguém no mundo já havia feito algo assim. Não dessa forma. Mas não devia fazer. Não sabia o que aconteceria com tais pessoas, mas sabia que seria algo ruim.
Khain pensava, preocupado. Não devia fazer. As pessoas desconfiariam, todos perceberiam o desaparecimento de pessoas da ilha. Era algo complicado. Poucas pessoas viviam lá e qualquer uma que desaparecesse por mais de um dia, causava um enorme alarde. Mas havia aquelas pessoas, aquelas poucas, que não sabiam viver em paz. A ilha era um lugar isolado do resto do mundo e tinha suas próprias regras e leis. Muitas coisas terríveis já aconteceram lá e muitas das pessoas que já fizeram tais coisas ainda estavam lá, vivendo calmamente, como se nada tivesse acontecido. Talvez isso ajudasse um pouco Khain... e também havia Laura. E melhor, havia a perspectiva de conhecer o mundo lá fora. De mostrar as coisas maravilhosas que estavam longe daquela ilha.
Bael parecia simpático e até divertido, de sua própria maneira, mas ainda era um demônio. Khain não sabia do que ele poderia ser capaz, por isso não duvidou. Não podia duvidar, não havia tido outras experiências com criaturas da noite. Laura era a coisa mais importante na vida dele e por isso não retrucou. Por isso e por mais uma série de motivos.
— Quantas pessoas?
— Oito.
— Certo.
— Então estamos combinados. Agora está na hora de você ir, eu estou cansado, mas foi uma ótima conversa. Você é exatamente como eu esperava. - dizia rapidamente o demônio, enxotando Khain com um movimento das mãos, como se tentasse abanasse o garoto para longe.
Khain sorriu. Havia gostado da conversa. Os demônios não eram, afinal, tão diabólicos quanto as histórias diziam... ou ao menos não pareciam ser. Não aquele. Bael era bem simpático, de seu próprio modo, e até um pouco divertido. Talvez sua natureza fosse como a de uma pessoa, uma pessoa com poderes e mais velha do que o mundo, mas uma pessoa.
— Mas como eu saio daqui? Como saio da floresta?
O demônio bocejou, mostrando seus caninos afiados, brancos como uma folha nova de papel.
— Primeiro, pelo lago. Segundo, siga em frente. Sempre vá em frente, sempre siga caminhando. Sempre. Você vai chegar em algum lugar.
—--------------------

Quando emergiu de dentro do lago, a primeira coisa que Khain notou, foi o calor do sol em seu rosto. Sentiu seus poros aquecendo-se com aquela luz graciosa que conseguia transpassar a copa das arvores e penetrar na pequena clareira, banhando a face molhada do garoto como um presente dos deuses.
Nadando vagarosamente, preocupado com os homens que o atacaram há uma hora atrás, chegou até a margem, onde permaneceu durante alguns segundos, com o rosto semi-submerso, observando a sua volta. Nem sinal deles.
Saiu da água, sentindo suas roupas pesadase jogou os cabelos louros para trás. Precisava aproveitar o entardecer que se seguia para iluminar seu caminho dentro daquela mata desconhecida, pois a idéia de passar a noite ali lhe causava arrepios, ainda mais por causa de tudo o que aconteceu.
Ao erguer-se por completo, sentiu a marca em seu braço latejar. Ainda queimava, como se tivesse sido marcada com brasa, mas fez o possível para ignorar a dor. Lamentar não ajudaria muito naquele momento e estava preocupado com outras coisas mais importantes.
Tentando triangular a posição do sol em relação as faixas de luz que desciam entre as folhas do arvoredo, Khain seguiu o caminho oposto, pois lembrava-se de que a Masmorra era ao leste da floresta. Então, esgueirando-se entre as árvores, iniciou seu caminhar.
Era um caminho tortuoso, pois frequentemente precisava desviar-se de algumas pedras ou um amontoado de árvores o qual não conseguia atravessar. Sentiu os minutos correndo enquanto olhava para o céu preocupado. Estava ficando tarde e ainda não havia visto progresso em sua pequena jornada.
Após algum tempo de caminhada, começou a relaxar em sua vigilância e preocupação em relação aos homens que o haviam atacado e, graças a isso, quase pisou em uma grande cobra escura que ali passava, rastejando inocentemente entre a grama alta. Em um surto de consiência, desviou o pé, tendo de segurar-se em um tronco velho para não cair. A serpente continuou seu caminho, como se nada tivesse acontecido, até desaparecer em meio a relva.
— Ufa.
Após suspirar baixinho, finalmente sentiu a brisa da noite correndo na floresta, como um sussurro agitando as folhas e os galhos, avisando-os que a noite estava para cair. O garoto, ignorando seu senso de auto preservação, simplesmente irrompeu em uma corrida frenética através da mata, fazendo o possível para manter o caminho em linha reta, pulando qualquer obstáculo que aparecesse.
Mas antes de conseguir chegar a qualquer lugar, enchergou no horizonte, através dos ultimos raios de sol que desapareciam, duas figuras negras caminhando à sua frente.
Khain parou imediatamente e, assustado, jogou-se contra uma árvore, tentando sair do possível campo de visão dos sujeitos. Mas, apesar de ter tido certeza de não ter feito barulho algum, ouviu uma voz baixa e aterrorizante, que fez um estranho frio correr-lhe pela espinha.
— Mo'ethur... Korva zaen sithil. - disse a voz que parecia ser masculina, apesar de seu som sussurrante e tom baixo.
Outra voz respondeu, em uma voz ainda mais baixa.
— Esad tes'edil. - E, após uma pausa de alguns segundos, continuou, agora aproximando-se lentamente. - Trevis Mertor pur'ghan.
Khain, desesperado, sentiu o suor escorrer de seu rosto. Não conseguia ouvir mais nada, nem a voz nem passos dos dois aproximando-se. Seu primeiro instinto foi o de ficar ali, parado, e rezar para que algo o tirasse daquela situação. O medo tomava conta de sua cabeça enquanto corria-lhe pelo corpo, fazendo-o tremer. O segundo instinto foi o de correr na direção contrária e assim ele o fez.
Disparando o mais rápido que podia, o garoto correu, sentindo o frio sopro da noite em seus cabelos. Suas pernas davam passos maiores dos que achou que podia dar, enquanto seus braços moviam-se dando-lhe ritmo. Mas antes que pudesse chegar em sua velocidade máxima, ouviu a voz sussurrar-lhe algo, em alto e bom som, apesar de sua velocidade e desespero.
— Ghuawi velmuz.
De repente, ouviu o som agudo de algo percorrendo o ar e então sentiu uma dor em sua perna como nunca havia sentido antes. Uma ligeira queimação, seguida por uma dor lacinante de algo a perfurando, atravessando pele, carne e finalmente o osso. Uma flecha o havia acertado em cheio na panturrilha e ficado presa lá, enquanto o garoto perdia o equilíbrio, devido a dor e a uma fraqueza gigantesca se apossando de sua perna, e caia.
Sua visão ficou completamente turva e ele não sabia se era por causa da dor ou por causa da escuridão, que agora já havia caído totalmente sobre o local. Tentou tatear no escuro, em busca de algo que pudesse usar como arma, mas em vez disso, encontrou um barranco extremamente íngreme. Era a sua única chance de escapar. Sem olhar para trás, usou as poucas forças que lhe restavam para rolar na direção do barranco e rezar para que ele fosse alto o bastante para despistar os dois que o perseguiam. A ultima coisa que viu, foram os homens encarando-o no topo do barranco enquanto ele rolava ribanceira a baixo.
—-----------------------------------

Limpou os olhos com as costas da mão e não sabia dizer se o que tirou de suas pálpebras era terra ou sangue. Sentiu que havia ficado algum tempo desacordado, talvez alguns minutos, mas sentiu ainda mais a forte ardência em sua perna perfurada.
Sem se preocupar onde estava, tentou ajeitar-se encostando-se em um tronco de árvore caído, apoiando as costas sobre ele e, usando as mãos, arrastou a própria perna em sua direção. Talvez tivesse sido uma péssima idéia rolar de um barranco com uma flecha presa em sua panturrilha, mas foi a melhor coisa que conseguiu pensar naqueles segundos de desespero. Agora, a flecha estava torta em algumas partes, ainda enterrada em sua carne.
Não queria gritar, mas sabia que precisava tira-la de lá, mas sabia ainda mais que a dor de fazer isso seria quase insuportável. Khain queria apenas deitar-se ali na grama, apoiando a cabeça em algum montinho de barro e dormir, preocupar-se com isso amanhã, mas não podia. Havia algo enfiado em sua perna, dois homens o atacaram e estava completamente perdido. Dormir era um luxo que não podia ter naquele momento.
Estava escuro completamente escuro e não conseguia enxergar praticamente nada. A luz da lua não chegava até ele e o máximo que podia fazer era apertar as pálpebras enquanto enganava-se a si próprio, fingindo que isso o ajudaria.
Algumas lágrimas brotaram em seus olhos quando tocou o ferimento. Havia muito sangue seco em volta da flecha e ainda podia haver a possibilidade dela estar envenenada.
Khain arrancou um pedaço da sua camisa e enrolou na mão, ia usar isso para fechar o ferimento, mas antes, precisava arrumar coragem para arrancar a flecha dali. Após algumas respiradas fundas e uma forte mordida em seu antebraço, puxou ela com toda a força que conseguiu arranjar. Sentiu sangue borbulhar da pele onde mordeu e tocar seus lábios.
A dor foi a maior que já sentiu na vida. O formato da ponta da flecha não havia deixado ela sair rapidamente como havia entrado, mas havia rasgado ainda mais a pele do garoto. O suor escorreu pelo seu rosto e um grito agudo morria em sua garganta, enquanto amarrava o pedaço de pano que rasgou de sua camisa em volta do machucado com todo o cuidado do mundo. O pano rapidamente ficou encharcado de sangue, assim como suas mãos, mas limpou-se rapidamente no resto de sua blusa que ainda vestia.
Agora tinha coisas para pensar. Muitas coisas e talvez não tivesse muito tempo. Os homens podiam estar dando a volta para encontra-lo ali e não queria saber o que eles fariam se pegassem. Eles não foram muito amigáveis no primeiro e nem no segundo contato.
Talvez pudesse esconder-se dentro daquele tronco mesmo. Havia insetos ou talvez alguma cobra, mas seria melhor do que os dois caminhantes. Não. Eles o haviam percebido sem ter feito qualquer barulho alguns momentos atrás. Eles o encontrariam se ele continuasse ali, disso tinha certeza. Precisava fugir, mas para onde? Já estava mais perdido do que antes. Sua noção de espaço havia sumido despencou do barranco e portanto, já não sabia em que direção estava a Masmorra. Mas ali não poderia ficar, por isso, apoiando-se ao tronco, ergueu-se, botando o mínimo de peso que podia em sua perna machucada. Colocando a flecha entre os dentes, mordendo-a, seguiu cambaleante entre a escuridão.
Seu avanço era lento e cauteloso, graças tanto a dor quanto ao medo de topar com aqueles dois e, apesar de enchergar praticamente nada naquele denso negrume, continuou sem grandes problemas, apenas seguindo em frente. Além dos dois, sua preocupação repousava no fato daquela floresta ser habitada por alguns animais. Havia a cobra que encontrou, como também haviam ursos, cães e, bom, demônios.
Baal havia dito que o protegeria, mas não viu nada dessa proteção ainda. Sua perna sabia muito bem disso. Como poderia confiar na palavra de um demônio? Como poderia confiar em alguém que acabou de conhecer e que nem sequer era humano?
Muitas coisas rondavam a cabeça de Khain naquele momento. Tudo havia acontecido muito rapidamente, coisas que nunca aconteceram. Eram muitas emoções em um período muito curto de tempo e sentia uma imensa confusão em sua cabeça. Queria contar para o Habel o que aconteceu... para a Laura. Será que eles acreditariam? Provavelmente não. Além do mais, havia sido proibido de contar sobre seu encontro com Baal para qualquer um e isso o chateava um pouco. Algo tão interessante. Algo que nunca aconteceu naquela maldita ilha e não podia dividir com ninguém.
Laura...
Sua perna queimava, assim como seu ombro e por isso, achou que merecia um certo descanso. Andou bastante, durante uns quinze minutos. Bom, parecia bastante para alguém que estava mancando e com lágrimas de dor escorrendo de seus olhos e por isso, tentou ver se encontrava algum lugar onde pudesse sentar-se. Uma grande sombra parecia erguer-se perante o garoto, uma árvore imensa, com grandes raízes circundando a terra em sua volta. As raízes eram grossas e estavam bem afastadas, assim sendo, o garoto aconchegou-se entre algumas delas, torcendo para que nenhum inseto venenoso tivesse tido a mesma ideia que ele.
Algo passou a sua frente, lentamente. Não era um inseto, mas uma serpente. Parecia-se muito com a que ele havia evitado pisar em cima. Talvez fosse a mesma. Ela cintilava em meio a escuridão, com suas escamas negras, brilhando no véu preto da noite. Era a única coisa que Khain via naquela noite e tinha certeza do que era. Ela parou de rastejar quando percebeu a presença do garoto e virou-se lentamente na direção do mesmo. Seus olhos eram dóceis, mas inteligentes, como duas fendas mais escuras que a própria escuridão. Eles encaravam Khain, estudando-o, mas logo ela virou-se para a selva, observando as árvores.
A marca colocada no ombro de Khain queimou, ardendo como não ardia desde que havia sido colocada por Baal, latejando em espasmos curtos e agudos, fazendo-o ponderar se preferia a dor do ombro ou a perna. Um sussurro gélido cortou o ar, correndo em meio a brisa amena da noite. Era diferente do som dos homens e da estranha língua que eles falavam... parecia serena demais, cautelosa.
"Corrr..."
Antes que pudesse refletir sobre o que ela queria dizer, ouviu novamente a voz de um dos homens entre o farfalhar das árvores, sobresaindo-se sobre o sussurro que havia ouvido.
— Gurrlan Eltharys pae'fur. - dizia, agora um pouco mais alta do que de costume. Talvez estivesse um pouco longe. - Illthur bae lokki thoranfur el'bais.
A serpente a frente de Khain rastejou até desaparecer, enquanto a ardência em seu ombro diminuia gradativamente. O desespero tomou conta do garoto novamente enquanto ele lutava para se erguer. Pegou o resto da flecha e segurou com firmeza. Não era nada incrível, mas era o que tinha a sua disposição para usar como arma. Quando tentou dar o primeiro passo, sentiu o pé preso entre as raízes nas quais estava escondido. Logo o pé da perna machucada.
Usando toda a força que dispunha no momento, começou a puxar a perna com suas mãos, pois ela recusava-se a obedecer como deveria, devido a dor. Lágrimas correram pelo seu rosto, enquanto sentia o ferimento crescer, abrindo-se e fazendo seu sangue escorrer para fora, borbulhante e quente. Quando finalmente conseguiu arrancar a perna dali, ouviu às suas costas.
— Thurun leak! - disse a voz, um pouco mais próxima.
— Roadis bae profurr. - comentou a outra, em um tom ainda mais sinistro. Como se houvesse saliva escorrendo entre seus dentes. Como se sentisse fome ou algum outro desejo com muita intensidade.
Tremendo, Khain tentou correr, ignorando a dor que sentia, mas falhou. Tropeçou em uma das raízes e despencou sobre o chão. As vozes aproximavam-se cada vez mais, em uma lenta conversa sussurrante. O garoto não sabia o que fazer e, por fim, decidiu enfiar-se novamente entre as raízes. Tentou arrancar um pouco da terra com as mãos trêmulas, procurando esconder-se o máximo que pudesse.
Em alguns segundos, estava escondido. O máximo que poderia ficar escondido ali, entre as raízes de uma árvore gigantesca, com terra em seus dedos e insetos correndo pelos seus braços, pernas e rosto.
O pouco que conseguia ver de fora de seu esconderijo, foi a silhueta dos homens se aproximando da árvore. A única coisa neles que refletia a fraquíssima luz da lua que descia do céu, era o brilho pálido de uma lâmina nas mãos de um dos dois. Uma lâmina comprida e curvada.
Eles andaram e pararam onde Khain estava segundos atrás. Um deles abaixou-se e sumiu no breu, mas logo levantou-se.
— Thurr... - sussurrou, com a língua entre os dentes.
O outro começou a caminhar entre as raízes lentamente. Khain fechou os olhos e rezou a Eltharys o mais rápido que podia. Não havia nada que pudesse fazer, nada além disso. Seus lábios reproduziam as palavras, movendo-se sem fazer som algum, até que dedos fortes e grossos enroscaram-se em torno de seu braço e puxaram-no com uma força e rapidez que deixaram-no completamente perdido.
O garoto deu-se por si deitado na grama, encarando as duas sombras imóveis durante algum tempo.
— Pla'er. Illgur fea Thakor. - sussurrou uma voz um dos homens para o outro, enquanto ele avançava na direção de Khain. A lâmina em sua mão brilhava.
Ele baixou-se e agarrou a canela do garoto que percebeu que ainda segurava a flecha em sua mão com muita firmeza. Talvez fosse seu instinto de sobrevevivência gritando alto, mas em um impulso, Khain ergueu metade do corpo e girou o braço, soltando um urro, enquanto cortava o ar em um golpe veloz, mirando a ponta da flecha no corpo do homem.
O mesmo segurou o braço de Khain, aparando o golpe no ar, encarando-o friamente. Seus olhos eram dois orbes esbranquiçados, sem retina ou qualquer resquício de cor. Era apenas um branco pálido e gélido como neve. Mas antes que qualquer outra coisa pudesse acontecer, algo enorme brotou das sombras e saltou na direção de um dos sujeitos, que foi arremessado em cheio em direção a árvore. O que segurava Khain soltou-lhe rapidamente e virou-se em direção ao que havia atacado seu parceiro. Em meio as trevas, parecia a enorme sombra de um cão ou lobo, negro e imponente.
O garoto não viu o que se seguiu, pois nessa oportunidade, virou-se e correu pela mata adentro. Sua perna latejava, seu ombro queimava, mas ele não se importava. Não diminuiu o ritmo, apenas continuou, se esforçando ao máximo. Antes que pudesse perceber o que estava acontecendo, corria em campo aberto. Não havia árvores ou raízes, era apenas um gramado liso, banhado pela luz do luar.
Estava fora.


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