Nascidos da Noite - Livro Rigor Mortis escrita por Léo Silva


Capítulo 11
Capítulo 11 – Porque somos diferentes




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Lugar não identificado, São Paulo, 2020

 

Samanta terminou de se alimentar e encarou Cachorro Louco.

Ele estava recostado em uma das paredes, e brincava com um isqueiro. Aceso. Apagado. Aceso. Apagado. Quando a luz irradiava, a vampira via brevemente o rosto de seu salvador. Um belo rosto, um pouco sujo e com um ferimento pequeno na testa, mas nem por isso menos belo. Quando ficasse mais velho – se ficasse – se tornaria o tipo de homem que faz qualquer um virar o pescoço na rua para admirar.

— Ainda está aqui?

— Não desisti da sua amizade – respondeu Cachorro Louco, guardando o isqueiro.

Aproximou-se de Samanta. Ela estava de cócoras, segurando o braço do velho. O cadáver dele jazia, seco, como se tivesse sido colocado em uma estufa. Os olhos do velho, brancos feito leite, pareciam fitar o teto, talvez à procura de um céu que jamais veria novamente.

— Muito bem, e se nos tornarmos amigos, o que acontecerá a seguir? – perguntou ela, se levantando.

Os olhos de Samanta brilhavam vermelhos, como duas luzes na escuridão. Ela começou a andar em círculos em torno de Cachorro Louco, lentamente. Naquele momento, em que as forças voltavam aos seus músculos, Samanta se sentia viva novamente.

— Eu não sei... Não pensei muito nisso...

Os olhos da vampira se concentraram no rosto de Cachorro Louco.

— Você sabe qual é o meu dom?

Ele negou com um movimento da cabeça.

— Vou mostrar. Estenda-me sua mão direita. Não se preocupe, não o morderei, estou satisfeita com a última refeição.

Cachorro Louco, um pouco hesitante, estendeu a mão.

Samanta segurou-a. A pele da vampira era fria como o gelo, e ele sentiu os pêlos do braço arrepiarem.

— Pois bem, agora que estou conectada a você, consigo obter as respostas que quiser. E a primeira pergunta é: o que você quer comigo?

Cachorro Louco não sentiu muita coisa em um primeiro momento. Depois, foi como se um tipo e eletricidade estática percorresse seu corpo, do ponto em que Samanta o segurava até sua cabeça. Os olhos começaram a doer, e ele teve de fechá-los. Foi aí que seus lábios começaram a se mover sozinhos, e ele começou a falar coisas sem pensar, como se a vampira drenasse seu cérebro.

— Eu preciso ir para um lugar – disse ele.

— Que lugar seria esse?

— Rio de Janeiro.

— Por que quer ir para o Rio de Janeiro?

— Minha mãe. Preciso encontrá-la.

— Então, você quer um guarda costas, não um amigo? – perguntou Samanta, soltando o braço do adolescente antes que ele respondesse à última pergunta feita.

Cachorro Louco voltou a si aos poucos.

— O que você fez? Estou tonto...

— Eu consegui a resposta que queria. Você quer um guarda costas, só isso.

Ela recuou. Com um salto, alcançou uma das vigas da construção. Não parecia seguro, mas Samanta era leve e certamente escaparia se tudo desabasse.

Cachorro Louco olhou para o alto. Os olhos dela eram a única parte visível.

— Não menti quando disse que a queria como amiga... Acontece que também preciso de ajuda. Essa viagem não será fácil, está tudo louco lá fora. Eu só achei que, se tivesse alguém, seria mais fácil chegar lá.

— E esse alguém tem que ser um vampiro?

 A voz de Samanta ecoou pela escuridão do recinto feito um lamento de morte. Depois, o silêncio tomou conta novamente, até ser quebrado pela voz de Cachorro Louco.

— Não exatamente... Acontece que, depois de ver minha mãe, eu quero outro favor. Quero deixar de ser humano.

***

Base secreta dos Cavaleiros do Apocalipse, São Paulo, 2020

Antony era sempre o mais agitado dos quatro. Aires geralmente só falava no final, talvez, a mais sábia decisão. Marçal, irmão de Aires, geralmente quebrava alguma coisa. E Egil presidia as reuniões, por ter sido o primeiro a chegar. Não se sabia àquela altura se a ideia também partira dele, mas, naquele momento, Éden era o lar oficial de diversos vampiros perseguidos pelas autoridades humanas. Funcionara, pelo menos em parte. E também por causa do acordo de sangue obrigatoriamente firmado por todos os participantes.

Estavam na sala de reuniões, em cujo centro se encontrava uma mesa de carvalho de 350 anos e pesando meia tonelada. Em um dos cantos havia um telefone que não funcionava há algum tempo. Na parede em frente, um enorme mapa-múndi e, do lado dele, um mapa de São Paulo onde se viam várias marcações em vermelho. Na parede oposta havia uma janela coberta por papel. No teto, um ventilador girava preguiçosamente.

Egil caminhou lentamente até o mapa de São Paulo. Apontou cinco marcações, então se voltou para os companheiros. Marçal girava um cinzeiro de vidro. Antony batia os dedos na mesa. Aires mantinha-se em silêncio.

— Neste momento nossos irmãos atacam os centros de inteligência dos humanos. Isso é apenas o começo – disse ele, cruzando os braços e recostando-se à parede. – Se eles quiserem que isso acabe, deverão atender às nossas reivindicações imediatamente.

Mactep, você sabe, agora os militares estão no poder – disse Antony.

— Não sei se mudou muita coisa. Civis, militares, todos nos querem mortos. Alguns até dizem que não é bem assim, mas sabemos que, bem no fundo, eles gostariam que não existíssemos – continuou Egil.

Aires apenas assentiu com um movimento da cabeça.

Mactep, a pergunta é, por quê? – falou Marçal.

— Porque somos diferentes, claro. Humanos não gostam de nada que é diferente. Odeiam uns aos outros por motivos torpes, como, por exemplo, a cor da pele ou o deus que o outro venera.

— Não acho que seja só isso – continuou Marçal. – Sabe, tenho pesquisado muito sobre a origem do preconceito...

— Vou te dizer qual é a origem disso: precisam de um bode expiatório, e nós somos a bola da vez. Mas voltemos às pautas da nossa reunião, temos a eternidade para discutir isso. Como eu dizia, nossos planos seguem conforme idealizamos. Os ataques devem se encerrar por volta das três horas. Então, poderemos planejar os próximos passos.

Nos instantes que se seguiram Egil não disse nada. Apenas observou os homens que estavam na sua frente. Conheciam-se há tanto tempo que já se consideravam uma família. Antony fora o primeiro a se juntar a Egil. O agitado vampiro fora marinheiro no navio de Barbanegra, o Queen Anne’s Revenge, antes de ser convertido por uma prostituta. Os irmãos Marçal e Aires chegaram depois. Teriam padecido da peste em 1350, se não fosse pela conversão de uma bondosa vampira disfarçada de freira, que trabalhava no mosteiro onde foram procurar ajuda. Ela fez isso porque se apaixonou por nós, disseram uma vez. Se não, teria simplesmente nos sugado até a morte definitiva. Desde então nunca mais a encontraram.

— A próxima pauta é... Vejamos. – Ele caminhou até a mesa e pegou um papel. – O planejamento de crescimento. Você tem os arquivos da polícia, Antony?

O vampiro estendeu um tablet para Egil, que começou a passar as páginas vigorosamente.

— Estupro. Assassinato. Abuso sexual. A lista está boa heim— disse Egil.

— Não faltam atrocidades na existência humana. E ainda dizem que nós somos os monstros – balbuciou Antony.

— Esse não é o ponto, mactep— interrompeu Marçal. – Isso que fazemos, é apenas um paliativo. Sabemos que o problema da fome não vai se resolver apenas com esses vagabundos que pegamos, nem com as bolsas de sangue que roubamos das lojas de conveniência. Precisamos de mais...

— Já discutimos isso antes, Marçal. Não vamos caçar cidadãos comuns. Como teremos apoio da opinião pública se matarmos as pessoas de bem?

— Talvez não precisemos do apoio das pessoas que se dizem de bem. Egil, abra os olhos! – Marçal socou a mesa e o cinzeiro rodopiou, espatifando-se no chão. – Você não pode começar uma guerra se não tiver condições de terminá-la, lembre-se disso. Estamos crescendo muito rápido, e logo não teremos alimentos para todos.

— Entendo o que você diz, mas não concordo que inocentes paguem pelos erros dos verdadeiros culpados.

— E quem são os verdadeiros culpados, mactep?

— Os verdadeiros culpados são aqueles que fingem que estamos integrados à sociedade, mas que, na verdade, nos querem mortos. São aqueles que se recusam dividir o mesmo ônibus com um semi-vivo. Que exigem que escondamos nossa face em locais públicos, para que assim possam esquecer que existimos. Que pedem nossos votos, mas depois votam contra as leis pró-semi-vivos. Que sorriem para nós nas ruas, e depois doam dinheiro para movimentos anti-semi-vivos. Esses são os verdadeiros culpados, Marçal. E não são todos, sequer são a maioria. Se existem vampiros bons e maus, também há humanos.

Marçal abaixou os olhos, os punhos fechados. Quando voltou a encarar Egil, parecia outra pessoa. Suas crises de raiva, embora intensas, também costumavam ser rápidas. Marçal mudava feito o tempo em alto mar – de tranquilo a tempestuoso, e de volta à tranquilidade em questão de segundos.

— Você tem razão. Desculpe-me mactep.

— Está tudo bem. E já pedi que dispensem as formalidades entre nós, antes de ser seu mestre, sou irmão de vocês. Agora, mais do que nunca, precisamos permanecer unidos.

Todos assentiram silenciosamente. Aires se levantou e passou os olhos por todos. O vampiro de cento e setenta e oito centímetros de altura (maior do que a maioria dos homens da Idade Média, quando ainda estava vivo) tinha noventa quilos de músculos. Os longos cabelos loiros eram amarrados em um elegante rabo de cavalo, e possuía mãos capazes de esmagar a cabeça de um urso apenas apertando-a. Vestia-se de preto da cabeça aos pés, e usava um pesado sobretudo, mesmo durante o verão.

— Vocês sabem o que andam dizendo por aí. Um vampiro, autoproclamado nosso Salvador, anda juntando forças para formar um exército.

— Sim, nós sabemos Aires. Guiado por uma antiga profecia, ele pretende abrir as portas do submundo para que os Primeiros atravessem, iniciando uma era de progresso e desenvolvimento para os vampiros – recitou Egil. Já ouvira aquela história milhares de vezes em sua longa vida.

— E de morte e destruição para os humanos – completou Marçal. – A profecia também diz que a Ordem do Sol Nascente irá derrotar o Salvador dos vampiros antes que ele obtenha sucesso em sua empreitada.

— Boatos – disse Antony.

— Talvez sim, talvez não. Acontece que, enquanto estamos aqui discutindo assuntos triviais, feito um bando de senhoras, outras forças se levantam. Acho que devemos investigar e confirmar se tratarem ou não de boatos – disse Aires.

— Acho um desperdício de energia investigar isso. Temos que nos concentrar no plano original – disse Antony, se levantando.

Os outros três encararam-no. O vampiro de cabelos ruivos alisou os cabelos para trás, e caminhou até o mapa.

— Esqueçam São Paulo. Precisamos mostrar para os humanos que não estamos brincando. Vamos acabar com o centro de poder deles – disse, colocando o dedo sobre um ponto do mapa.

A cidade de Brasília.


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