Facilis Densensus Averno escrita por Heosphoros


Capítulo 3
Olhos Escuros e Decepcionados


Notas iniciais do capítulo

"Assim que se olharam, suspiraram; assim que suspiraram, amaram-se; assim que se amaram, perguntaram um ao outro o motivo; assim que descobriram o motivo, procuraram um remédio"

William Shakespeare



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Clary escutou Sebastian fechando a porta atrás de si. E tudo o que ela mais queria naquele momento era ficar menor e menor até desaparecer por completo, sendo esquecida pelo mundo que insistia em ser tão cruel com ela.

Depois de encharcar as próprias mãos ela se atreveu a olhar para o irmão mais velho e sua expressão era totalmente ilegível: decepção, raiva, confusão, tristeza, nojo... Não tinha como ela saber, mas estava tudo claro ao mesmo tempo.

O que ela sentia era razão para todos aqueles sentimentos.

Clary ficou um longo instante encarando o irmão, cujos olhos escuros também fitavam seu rosto fixamente. Algo dentro dela ativou uma memória antiga, de quando era mais nova e entrou numa discussão (rara) com Sebastian por algum motivo bobo que ela se esquecera...

Ela se lembra que havia gritado com o irmão, que dissera que o odiava e que ele não se importaria porque nunca sorria nem amava ninguém. Naquele momento, os olhos de Sebastian ficaram mais sombrios e se perderam no rosto dela. Ele cerrara os punhos com força e a garota nunca o tinha visto com tanta raiva.

Na verdade, ela nunca o vira manifestar uma emoção antes.

Aquele olhar pareceu perfura-la como uma faca... e adivinha? Sebastian estava com aquele mesmo olhar, enquanto encarava ela e a imagem secreta que pintara diversas vezes seguidas.

– Desde quando você sente... isso? - ele perguntou, olhando para a pintura. Ela estremeceu ao ouvir o nojo na voz dele e naquele momento não havia ninguém para protegê-la, porque era esse o papel que Sebastian fazia.

Clary limpou suas lágrimas.

– Faz quatro anos - respondeu, tão baixo quanto um sussurro.

Pela expressão do irmão, parecia que ela tinha dado um soco na cara dele.

– Quatro anos? - perguntou, incrédulo.

– Por favor, Sebastian - ela disse agarrando o próprio travesseiro - não conte ao papai! Por favor, ele me mataria. Ele não entende que Jace não tem o meu sangue e não há nada de errado... Mas ele me mataria!

Sebastian a encarou.

Nada de errado? - gritou e Clary assustou-se ao ver o irmão daquele jeito, estilhaçado como vidro - como assim nada de errado? Você foi criada com ele! Você o viu crescer como se fosse seu irmão! Não há nada de certo no que sente!

As palavras a atingiram como flechas, perfurando uma parte diferente no corpo dela. Em cada parte havia uma dor, mais profunda e aguda do que a anterior, e era como se ela não pudesse sangrar. Tudo o que sentia, ficava aprisionado dentro dela...

Sem conseguir sair.

– Não vou falar com papai - disse Sebastian, por fim - nem com Jonathan. Mas não pense que vou deixar as coisas fáceis para você!

Fáceis? Como tudo isso que ela sente pode ser fácil?

Mas Clary apenas assentiu. Qualquer coisa que ele pedisse em troca de silêncio valia a pena. Qualquer coisa é melhor que a cólera doentia de Valentim.

– Você vai me ajudar - Sebastian continuou - vai me ajudar num plano que tenho tido com papai há dois anos, para tornar o mundo um lugar melhor... melhor de pessoas como você. Não vai dizer não para mim, nunca.

Clary olhou para as próprias cobertas, lágrimas ameaçando sair como um riacho de seus olhos. Sebastian, o único da família que a defendia, agora a odiava. Mesmo que ele nunca sorrisse para ela (ou para alguém), ela via em seus olhos escuros uma companhia. Alguém que não fosse afastado como a mãe, cruel como o pai ou insensível como Jace.

Alguém que, agora, ela só via a mais pura e sombria escuridão nos olhos. Alguém que ela jamais conhecera e que, no entanto, sempre esteve ali... Escondido e aprisionado nos demônios do próprio Sebastian.

– Quando se recuperar - o irmão disse - arrume-se e tome um banho. Hoje os Lightwood tomarão chá conosco, e é melhor que não deixe que desconfiem disto.

Depois de uma última olhada enojada para Clary e sua pintura, Sebastian virou de costas e saiu, a porta fechou-se atrás dele num baque sonoro que fez todo o quarto tremer.

Clary pegou a pintura e a colocou no tripé, cobrindo-a com um pano de tecido grosso. Valentim sempre dissera a todos na casa que os quadros da Morgestern mais nova eram tão particulares quanto um diário, e que espioná-los era proibido para os irmãos.

Foi a única vez que Valentim a defendera em alguma coisa.

Clary tirou o vestido e o espartilho, sem pedir a ajuda de uma empregada. Soltou os cabelos vermelhos e entrou totalmente nua no banheiro de seu quarto, afundando completamente dentro da banheira de água fria.

Quando fechou os olhos embaixo d'água, não pensou em mais nada. Até que a escuridão atrás de suas pálpebras mudou de acordo com o rumo que amente dela flutuava, e ficou dourada. Dourada como os cabelos de Jace.

– Jace, devolde meu anel!– ela ouviu a própria voz infantil gritando, tantos anos atrás.

Você é a única pessoa que eu amo nesta casa– um Jace um pouco mais velho dissera, abraçado com ela no chão do quarto enquanto chorava.

Eu também te amo, Jace– ela havia respondido, sem se importar em mentir dizendo que o pai (mesmo sendo adotivo) o amava também. Não queria ser uma hipócrita enquanto o tinha nos braços.

Clary– ele dissera depois que ficaram tempos e tempos em silêncio - vamos viver para sempre, você e eu.

E ela sabia, tinha certeza na verdade, que o amava. E que sempre amaria.

Então uma voz gritou de forma violenta e dolorosa em sua mente, sobrepondo-se à rara voz doce de Jace e aos raros momentos que ele tinha de amoroso nas lembranças dela:

– ... Você foi criada com ele! Você o viu crescer como se fosse seu irmão! Não há nada de certo no que sente!

Clary ergueu-se na banheira, desesperada por oxigênio.

Respirou ofegante por alguns momentos, depois afastou a mecha de cabelo molhado que estava grudada em seu rosto. Então deitou sua cabeça na borda da banheira e olhou para cima, imaginando se conseguiria ver estrelas caso se concentrasse... Indo além do teto e do céu azul.

Ao invés disso viu apenas Sebastian, e seus olhos escuros decepcionados ao encará-la.


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