Crônicas de Um Meio-sangue ao Resgate escrita por arashi


Capítulo 2
Eu abro a entrada do inferno usando a minha voz


Notas iniciais do capítulo

Música do capítulo: The Sore Feet Song, Ally Kerr



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Olá, meu nome é Richael Disoilet, popularmente Rick, tenho treze anos, e não sou um ser humano normal; quer dizer, não sou exatamente um ser humano.

Receio que, se você sentir-se familiarizado com essa condição de forma estranha, sua vida mudará para sempre da mesma forma que a minha mudou.

 

Começou quando estávamos numa excursão escolar, especificamente para o Central Park, em New York. Estávamos na oitava série.

Como qualquer nova-iorquino, eu já havia visitado o lugar centenas de vezes, mas aquele era o dia em que o colégio precisava levar seus alunos a algum lugar, mas não tinha outro melhor para ir, além dos mais típicos. No ônibus de passeios, sentei-me ao lado de Michaella. Ela era especialmente linda, na verdade perseguida por grande parque dos valentões da escola, mas tinha uma mente brilhante, era legal, e uma das minhas melhores amigas (a melhor, na verdade). Possuía longos cabelos negros, e olhos esverdeados.

Acho que um dos motivos mais influentes de sermos amigos era a semelhança ao fato de ambos não conhecermos um dos nossos pais. Minha mãe dizia que meu pai era um homem encantador, jovem, tinhas cabelos loiros e olhos azuis brilhantes como os meus, e era muito gentil, enquanto Michaella, pelo que sua mãe narrava, contava que o homem que lhe remetia a paternidade tinha cabelos negros e olhos azuis, muito parecido com ela, e não entrava em mais detalhes.

 

Estávamos conversando sobre as criaturas que provavelmente habitavam o parque. Sabe, o tédio pode, de fato, fazer pessoas sanas viajarem em assuntos exóticos.

 

“Ouvi dizer que trarão novos ornitorrincos” dizia ela, com um sombrio sorriso nos lábios.

 

“Claro que vão, junto com as águias que sobrevoarão nossas cabeças procurando pedaços de carne fresca”. Ela entendeu o sarcasmo, e fez algo que costumava botar inveja nos meninos, mas que sempre me deixava um pouco assustado. Tocou minha face com as mãos, aproximou o rosto e usou seus olhos profundamente escuros para encarar os meus. Senti uma frieza invadir meu corpo, e uma sensação de medo me possuir. Claro, achei que fosse bobagem, era Michaella, a pessoa mais inofensiva do mundo. “Vou puxar seu pé à noite”, disse ela, logo após rindo histericamente.

 

Depois de poucos instantes, havíamos chegado. O ônibus parou naqueles estacionamentos especiais, e os alunos saíram correndo feito maníacos. Eu e mais meia dúzia de pessoas – incluindo Michaella – esperamos o tumulto passar, para só então nos dirigirmos para fora; incrivelmente, todas essas pessoas eram meus amigos, talvez nem tanto amigos, mas ainda assim conversávamos com uma freqüência questionável.

Fomos direto para um dos meus lugares preferidos, uma pequena área verde, margem de um lago não tão grande, que era atravessado por uma ponte aparentemente antiga coberta por azinhavre. A borda próxima à água era iluminada pelo sol, mas recuando um pouco, as árvores faziam sombras vastas. Nosso grupinho fez um círculo debaixo da sombra de uma árvore grandiosa, Michaella encostou-se no tronco coberto por musgo da mesma, mas eu preferi estender-me debaixo dos raios do sol, enquanto olhava diretamente para o mesmo. Sim, eu estava olhando para o sol e meus olhos permaneceram intactos, coisa muito estranha que fazia os médicos dizerem “ele possui uma genética que permite a seus olhos resistência à luz” ou simplesmente “um caso peculiar, fim de consulta”.

Eu sentia como se minha pele absorvesse a luz e a transformasse em energia (não estou falando de produzir vitamina-D, é algo completamente diferente).

Talvez por esse motivo, eu sempre fora fã de parques e lugares abertos.

 

“Rick! Você prefere secar aí, ou vir conversar conosco, idiota?”. O gentil chamado foi executado por Matt, meu amigo. Contra a minha vontade, me dirigi em direção à roda, onde Clarisse já estendia uma toalha para um provável piquenique. Ótimo, percebi que Michaella não esperava pelo momento em que cantaríamos uma musiquinha animada falando o quanto comer garantia força aos músculos; óbvio que isso foi irônico.

Sentei-me em seu lado, de costas ao tronco, uma garrafa de coca-cola havia sido colocada sobre o pano, junto com copos de plástico.

 

“Fala sério, qual a graça de vir a um parque onde você pode passar o dia explorando o interior de árvores e grutas e, ao invés disso, fazer um lanchinho com seus amiguinhos felizes?”. Ri do seu comentário, ela nunca foi fã de coisas assim.

 

Sem pensar duas vezes, peguei um copo e preenchi-o com o líquido preto.

Em poucos minutos, a garrafa já estava fazia, e em mais um par deles, a outra que havia sido colocada pra substituir a antiga também fora completamente consumida.

 

“Que tal um campeonato?” disse Matt.

“Do que, de quem sabe a maior variedade de canções de ninar?” retrucou Michaella, zombadeira.

“Talvez, mas não canções de ninar”, Clarisse sugeria. Suas sobrancelhas arqueavam-se e desciam conforme ela nos encarava com euforia.

Admito que me animei. Pelo menos, no musical da pré-escola, meu pai disse que eu cantei bem o bastante bem para que a professora quisesse me tornar uma celebridade, e esse fato foi verídico. Infelizmente, não me transformei num cantor mirim gracioso e fofo, mas dizem que isso faz sucesso entre as garotas.

“Eu topo”, falei sem pensar.

 

Michaella me fuzilou com os olhos. Eu sabia que ela não queria ouvir músicas, de fato, mas minha animação não poderia ser contida.

Repentinamente, um violão surgiu da mão de um dos garotos – não me pergunte como ele carregou o mesmo durante a viagem. Ele veio em minha direção e cochichou um “qual música quer cantar?” em meu ouvido, o que respondi sem receios.

O violão começou a tocar, e todos me olhavam preparando-se para soltarem o riso.

(http://www.youtube.com/watch?v=CGy5fGfLZ0o)

 

I walked ten thousand miles,
ten thousand miles, too see you
And every gasp of breath,
I grabbed it just to find you
I climbed up every hill too get to you
I wandered ancient lands too hold just you

 

Mal terminado a primeira estrofe, o queixo da maioria havia caído, Clarisse e outras duas garotas pareciam ter um brilho estranho e obcecado nos olhos ao olharem para mim cantando, até Michaella estava me olhando como se tivesse visto um unicórnio – ou seja, muito surpresa.

 

and every single step of the way
I paid...
Every single night and day
I search for you
through sandstorm and hazy dawn
I reached for you

 

Tentei me focar na grama aos meus pés, mas isso era difícil considerando todos aqueles olhares hora incrédulos, hora fascinados. Eu já estava ficando, err, assustado.

Olhei para meu lado, Michaella parecia também ter gostado de olhar para a grama. Então eu dei um sorrisinho em sua direção, e acho que ela percebeu, pois começou a se conter para não rir.

 

I'm tired and I'm weak, but I'm strong for you
I wanna go home but my love gets me through
lalaalalalaalalalalalala
lalaalalalaalalalalaaaaa

 

Todos me aplaudiram, todos mesmo. E isso foi estranho.

 

“Hãm, obrigado, acho”, eu disse corado.

“Você foi, você foi... Divino”, entoaram Clarisse e suas amigas. Elas tinham um sorriso bobo nos lábios.

“Vou explorar por aí, a não ser que vocês decidam começar a cantar Barney, e eu adoraria ficar pra ouvir”. O tom de Michaella demonstrava um pouco de raiva, ela se levantou e se dirigiu para as árvores atoladas atrás de nós; “vem comigo, Rick?”.

“Ficou com ciúmes, gatinha?”, um garoto disse. Eu me senti furioso, e já estava me levantando para segui-la, mas Clarisse agarrou-se em meu braço e me puxou para o lago, junto com suas comparsas. Senti Michaella bufando pelas costas, mas eu não seria atrevido o bastante para dizer “não” a aquelas garotas (eu fiquei com medo, na verdade).

Por uma sorte maravilhosa, consegui me esquivar e fiquei sentado na beirada da ponte, olhando o reflexo que o sol fazia na água do lago. O dia foi se passando, eu simplesmente nem havia prestado atenção nas horas voando, o tédio simplesmente parecia ter me esquecido, e quando fui me dar por conta do horário, era quase pôr-do-sol. Corri para dentro da mata procurar por Michaella. O ônibus já deveria estar esperando os alunos retornarem, e ela não deveria ter entrado tão profundamente.

Andei um pouco, e havia uma gruta grande, aberta e escura. Pelo que eu me lembre, só havia algumas rochas naquela direção, mas decidi procurar lá dentro.

“Michaella?”, entoei, um pouco mais alto quando não obtive resposta.

Então, repentinamente, ouvi: “RICK? Rick, você está aí?”, era a voz dela, que parecia muito preocupada. Na direção de origem da mesma, ouvi o barulho de passos em madeira, como se fosse uma escada velha sendo pisoteada após 100 anos. Desesperei-me, e comecei a andar cada vez mais ligeiramente em direção a escuridão.

Entretanto, uma sombra se formou ao meu lado, e escutei o barulho de patas de cavalo vindo atrás de mim, da entrada da gruta. Tentei me esconder, mas logo, uma figura grande, parecida com uma pessoa com corpo de cavalo, parou em minha frente.

“Vamos, herói, aqui não é o seu lugar”.

“Quem é você? Minha amiga está lá dentro, moço, me ajude!”.

“Não posso, e você deve vir comigo”.

“Minha amiga está lá dentro!”. Meu déficit de atenção fazia com que eu não percebesse que o indivíduo não iria me ajudar. Ele costumava me deixar mais burro quando eu estava nervoso, e eu definitivamente estava nervoso.

Levantei-me e tentei correr para o escuro novamente, mas fui segurado por um braço forte, e quando me dei por si, estava ficando tonto, fui colocado na garupa do corpo do cavalo (sim, eu não sabia dizer até o momento se havia algum gás da caverna me influenciando, mas estava vendo um homem-cavalo), e quando me dei por si, desmaiei enquanto o mesmo galopava para fora, pela noite fria de New York.

 


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