Alarde dos corvos escrita por Jhonatan Nic


Capítulo 9
Capítulo 9 - Novo jogo, novas regras




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Deixamos enfim o mercado pela porta da frente.

Minha cabeça latejava só de pensar sobre tudo o que acabara de acontecer, ou talvez porque meu corpo estivesse completamente exausto mesmo. Ao encarar novamente o céu do lado de fora minha visão doía, mas não impedia de notar as pomposas nuvens bem distribuídas que enfeitavam aquele frio início de tarde.

Estava um lindo dia no fim do mundo.

Fitei por um instante a extensão da rua por onde muito provavelmente Érica e Clara haviam seguido em direção à casa, pois não via elas em lugar nenhum. Percebi a garota se distanciar por um momento, tirando do seu bolso um smartphone e começando então uma curta conversa bastante aborrecida com alguém, que pelos gestos deduzi que era para estar ali há muito tempo.

Olhei novamente ao longo da rua e diversos momentos começaram a se passar pela minha cabeça, como um flash-back inesperado; A promessa que fiz ao Caio de ajudar a procurar sua namorada -Giovanna-, a que havia feito para Tina quando a encontrei no banheiro chorando, de que tudo ia ficar bem. O sonho que tivera a dias e a frase "sorte sua que vou sempre estar aqui para te salvar", junto aos gritos de dor que acompanhavam essa frase ao fundo. Logo em seguida o funeral do meu pai a quase seis meses atrás, enquanto eu e Caio carregávamos o pesado caixão e as outras cinco pessoas nos acompanhavam.

Quando me dei conta já estava caminhando muito lentamente pelo asfalto, sem saber muito bem o porquê. Minha mente estava tão cansada e confusa que eu apenas queria chegar a algum lugar, não importava onde.

"Onde você vai ?" Ouvia a distante a voz da menina, que pareceu ecoar na minha cabeça.

Não houve resposta. Apenas segui andando a passos lentos, até que minhas pernas começaram a formigar e minha visão ficou turva; Caí de joelhos, perdendo então o resto dos sentidos e observando tudo ao redor se escurecer.

Depois disso o som de rodas.

Na verdade o som de rodas estava em segundo plano, ofuscado por um irritante barulho de bater de asas ritmado, que foi bruscamente interrompido por um som de golpe.

— Merda de flappybird. — Exclamou uma voz masculina na minha frente, que só pude observar de quem era quando finalmente abri os olhos.

Aparentemente eu estava na parte de trás de um daqueles caminhões cobertos semelhante aos do exército usados para transporte de soldados, sentando no banco direito e encostado à parede do veículo. Sentado a minha frente um rapazinho loiro jogava ao celular, não parecia ter mais que 14 anos e as mechas que lhe cobriam a testa pareciam atrapalhar constantemente a visão. Possuía quase todos os dedos enfaixados por esparadrapos gastos e vestia uma camisa branca simples, assim como a garota, com os números "251" pintados em tinta preta.

— Ah, você acordou cara. Disse ele se ajeitando no banco do lado oposto e guardando o aparelho no bolso. É verdade que você é um sem facção? Me perguntou com um ar impressionado, como se eu fosse alguma espécie exótica de animal.

— Ainda não entendo o que é isso de facção...

— O que você andou fazendo essa semana mano? Você é do interior e veio de uma excursão? Sabe pelo menos sobre os zumbis? Acho que você não é do interior porquê o pessoal do interior fala de um jeito engraçado e você não...

— Ei, ei, ei, vai com calma amiguinho. Interrompi da forma mais amigável possível, temendo que o garoto fosse falar durante o resto do trajeto, seja lá quanto tempo fosse durar. Uma coisa de cada vez ok? Eu sou o Jhon. Falei em tom calmo, estendendo minha mão.

— Ah, claro. Retribuiu o aperto de mão. Eu sou o 251, mas o pessoal me chama de Druida.

— Ok Druida. Eu passei esses últimos dias confinado numa porra de uma casa com mais nove pessoas por causa da transmissão do governo que mandou todos ficarem enfurnados em seus abrigos só pra depois simplesmente abandonarem a gente. Foi isso que aconteceu, típico do nosso país.

— Oh, a transmissão... Falou em tom pensativo. Sério que você caiu naquela merda cara? Me perguntou, mas com ar bastante sério.
Apenas observei com atenção a expressão em seu rosto, completamente confuso. A transmissão não havia sido real? Do que aquele cara estava falando afinal e porque usava um número como nome?

— Essa tal transmissão foi coisa dos Camisa Vermelha. Vou tentar te explicar como tudo isso começou, pelo menos tudo que eu sei. Disse ele enquanto ajeitava as mechas de cabelo que cobriam seus olhos. Logo no início dessa zona toda dois irmãos, Marcio e Teodoro, decidiram fazer uma busca pela cidade enquanto ainda era tempo, alojando os vários e vários sobreviventes em um dos fortes ali pelo litoral, não me lembro direito qual deles. No fim do dia houve uma reunião pra decidir onde seria a nova base porque não tinha mais espaço pra tanta gente no forte. Aí é que deu merda. Um grupo, liderado por Teodoro, queria ficar num galpão perto do litoral, porque o oceano seria um lado a menos pra se preocupar em relação aos zumbis; O outro, no comando de Marcio, preferia ficar no alto do Morro da Providência ou qualquer morro bem alto, porque seria mais fácil de controlar a subida dos zumbis e estariam todos mais seguros. Daí você já sabe né? Os dois irmãos brigaram e cada grupo foi pro seu lado, formando assim as duas facções: Os Camisa Vermelha e a Nova Esparta.

— Mas e sobre a transmissão?

— Ah sim, a transmissão. Prosseguiu. Pelo que eu entendi a primeira medida dos Camisa Vermelha depois de se separaram do outro grupo foi tomarem uma torre de rádio e forjarem essa transmissão pra que todos procurassem se esconder, com medo de que a Nova Esparta encontrasse novos membros muito rápido. Por causa disso a rivalidade só aumentou até hoje, então estamos tecnicamente em guerra, mas não foi nada declarado ainda pelo que eu saiba.
Aquilo havia me deixado mais confuso do que qualquer outra coisa. Não imaginava que tudo aquilo estivesse acontecendo na cidade enquanto estava preso naquela casa, forçado pelo medo. Por outro lado uma grande onda de raiva me consumia aos poucos. Havíamos sido enganados. Se não tivéssemos comida de sobra muito provavelmente morreríamos de fome e a culpa seria dos tais Camisa Vermelha.

— E quanto a esse lance dos números? Perguntei, tentando tirar a transmissão da cabeça.

— Números?

— Sim, os da sua camisa e da... Lembrei então da garota, que aparentemente salvou a minha vida e agora não fazia muita ideia de onde estava. Da ruivinha.

— Bom, quando entramos na Nova Esparta todos ganharam essas camisetas com os números. Devem usar isso pra controlar o número de pessoas e pra identificação, mas sinto que tem algo mais por trás disso, sei lá. Quando a gente recebeu eles disseram que o número é a nossa identidade, que nós morremos e passamos a ser aquele número de agora em diante. Um blá blá blá profundo.

— Então, já que obviamente o seu nome não é Druida, me diz aí, qual é ou era o seu nome de verdade? Fiz minha última pergunta, que foi acompanhada com um frear brusco do veículo.

— Chegamos! Disse ele com animação, levantando e pulando para fora com a energia de uma criança.

Encarando o lado de fora novamente não reconheci a rua em que estávamos, mas a julgar pelos tipos de edifícios e da maresia no ambiente eu tinha quase certeza que estava na zona sul da cidade. Ao olhar para direção da frente do caminhão vi a garota e um homem aparentemente muito forte caminhando a frente, o jovem logo atrás.

Ao fundo aquilo seria visível à centenas de metros; Um enorme muro branco pichado, com cercamento de arame precário e um portão azul -de igual proporção- de duas entradas, guardado por dois homens de fuzil, um de cada lado. Ambos também estavam com a tal camisa que me deixava muito curioso, só sendo possível ler a distância que começavam com "2".
Se virando, Druida fez com a mão para que eu me apressasse, me esperando até que eu pudesse alcançá-lo.

— Aqui é a base da Nova Esparta. Parece bem maior lá dentro, mas você vai ver. Falou em tom de voz baixa, como se o lugar fosse um assunto que precisasse de alguma precaução ao ser comentado.

Na entrada, os dois homens de guarda -275 e 282- cumprimentaram a garota com o mesmo temor que um funcionário cumprimenta seu chefe, mas mantendo um aparência severa e obediente ao mesmo tempo. O da direita abriu parte do portão ao seu lado, por onde todos nós entramos.

Uma vez lá dentro comecei a observar o lugar em detalhes, agora com os portões logo atrás de mim e um chão de concreto úmido sob os meus pés; Ao longo do local um enorme galpão, que provavelmente servia para se colocarem aviões, bastante movimentado e com um ar muito precário. Era possível ver os vários e vários sacos de dormir e lençóis no chão espalhados de um lado, com algumas malas e mochilas jogadas. A medida em que nos aproximávamos era possível ver as pilhas de caixas, latas e até mesmo alguns isopores pequenos, todos espalhados em cantos ou mesmo no meio do galpão, dentro de carrinhos de supermercado ou peças de carro aparentemente velhas.

Bem ao centro, alguns metros antes do galpão, algo que me fez questionar como eu não vi aquilo do lado de fora. Uma espécie de "mini-praça", na verdade apenas um círculo gramado com alguns bancos, arbustos e um grande mastro no centro. Mas não era o mastro que me chamava a atenção. Subindo o olhar vagarosamente, bem no topo do mastro, pude ver então a grande bandeira azul-ciano sendo tocada levemente pelo vento. Bem no meio, um ômega com um risco horizontal pintados em branco me hipnotizavam, me fazendo questionar o que poderia significar aquilo. Ao atravessá-la, um homem (que mais parecia um gorila de tão grande) nos aguardava em frente ao galpão. Vestia uma camiseta preta, diferente dos demais, com o número "300" muito mal pintado em tinta branca. Seus bíceps pareciam ser do tamanho da minha cabeça, e seus olhos pequenos tornavam seu rosto ainda mais hostil, me fazendo lembrar o Dogo Argentino que quase havia me matado a uma semana atrás.

— Parece que alguém voltou de mãos vazias por aqui. Disse ironicamente o homem a um rapaz magricela que passava ao seu lado, voltando seu olhar para a garota logo em seguida Tem alguma boa explicação pra isso Dantas ?

— Sim, senhor. — Respondeu ela em tom sério, parecendo odiar ter que chamar alguém de senhor. — E se quiser mesmo saber o seu irmão armou pra mim.

A expressão no rosto dele mudou de repente, dando a perceber que o assunto era um pouco mais sério do que eu poderia imaginar. O vento salpicava de leve o ambiente, fazendo o cabelo cor de fogo da garota roçar em seus ombros.

— Quando cheguei no mercado encontrei um dos homens dele amarrado numa cadeira. Achei meio suspeito então resolvi interrogar ele primeiro, quando algum filho da puta me acertou bem na cabeça e alguns outros ainda deram um jeito de liberar uma porta travada, deixando uma horda entrar. Alguém tá tentando me matar entendeu? Tem alguém aqui dentro de panelinha com eles pra me matar.

— Isso que você tá me falando é muito sério Dantas, você tem certeza disso?

— Você tem alguma outra explicação pra eles terem adivinhado que eu ia aparecer lá? Só pode ter sido alguém daqui. Alguém que sabia que eu estava indo pra lá hoje desde o início.

— Vamos conversar isso em particular mais tarde. Agora me explica sobre esse aqui. Disse apontando pra mim,me fazendo sentir como uma criança perdida.

— Ah sim, encontrei ele no mercado, não tem facção.

— Isso é sério? Questionou, se inclinando bem na minha frente e me encarando no fundo dos olhos. Você sabia que é o primeiro a aparecer pela cidade desde que isso tudo aconteceu garoto? Qual é o seu nome?

— Meu sobrenome é Jhon, senhor. Respondi com a voz meio falha, tanto pelo medo quanto pelo nervosismo. A voz do sujeito era macia, mas o olhar me fazia imaginar que o cara poderia me fatiar em dois a qualquer momento.

— Se for ficar, Bem-vindo à Nova Esparta, Jhon. Me cumprimentou com um aperto de mãos que esmagou meus ossos. Eu até te apresentaria todas as pessoas daqui, mas tenho que resolver esse assunto sobre o que aconteceu no mercado. Tá vendo aquele rapaz ali no fundo do galpão? Apontou para um senhor careca mexendo numa caixinha cinza. Diga que o Teo te mandou pra pegar a sua camisa, número 246.

Ficamos apenas Druida e eu parados no mesmo local, enquanto os dois se distanciavam em direção aos portões. "Número 246" eu repetia na minha cabeça, imaginando que os número talvez fossem contados de trezentos para baixo. Andamos até o homem careca, que pegou uma camisa branca de uma caixa de papelão ao lado e pintou os números com graxa de um potinho que tirou do próprio bolso, tudo isso sem dizer uma palavra.

O lugar por dentro era movimentado e barulhento. Se a ordem numérica estava certa, haviam 54 pessoas contando comigo. Poucas mulheres e quase nenhuma criança, mas a grande maioria muito jovem e de aparência muito abatida. Poucos conversavam entre si, provavelmente porquê alguns estavam ainda se conhecendo, entretanto podia se perceber uma ou duas famílias comendo salsichas em lata, com fogueiras improvisadas ainda acesas por perto. Continuando minha observação sobre pessoas ao redor acabo tendo uma pequena surpresa ao reconhecer alguém conhecido; Mais uma pessoa que também era da turma, Gabrielle.

Me aproximei de onde estava sentada, não me notando imediatamente por estar lendo algum livro ao lado de uma mochila ensanguentada. Além da camisa branca com os números "298", vestia uma jeans surrada porém ainda com ar de nova. Seu cabelo pendia preso como sempre, mas seus cachos escuros não pareciam tão vívidos como antes.

— Gabi? Indaguei, mas já tendo certeza que era ela.

— Jhon!? Me olhou surpresa, como se estivesse vendo um fantasma. Como você veio parar aqui?

— Longa história, depois de conto. Mas diz aí, como você conseguiu sair do Campus?

— Ah, isso? Falou com ar de desprezo. Eu só toquei o sinal de lá pra atrair essas coisas e saí pela entrada principal.

— Pera, você tocou o sinal!?

— Sim ué, por que? Disse sem saber que havia salvado várias vidas, inclusive a minha.

— Nada não, só pra saber mesmo. Menti. Por dentro eu estava muito agradecido, mas não queria contar sobre nada disso agora.

Conversamos durante um tempo sobre tudo que havia acontecido até então. Contei sobre a casa, a transmissão, o que aconteceu no mercado, tudo exceto sobre o sinal. Após um tempo Druida apareceu com alguns lençóis pra mim e os apresentei, o que foi suficiente pra que ele se juntasse a conversa e ficássemos o resto da tarde falando sobre isso tudo.

À noite arrumei meus lençóis perto de algumas caixas de isopor, de onde peguei uma lata de refrigerante. Os dois lençóis eram bem fininhos e estavam furados, mas nunca tive o habito de reclamar sobre nada, ainda mais nessa situação. Enquanto bebia ironizava quantas vezes já havia quase morrido aquela semana, o que talvez comparado com o resto da minha vida não tivesse lá sido grandes coisas. Lembrei então dos outros, provavelmente seguros na casa de tivessem sorte. Comecei a me perguntar se talvez não tivesse sido melhor avisar que havia mais gente sem facção por aí e que eu sabia onde estavam. Senti um pouco do gosto de culpa, imaginando que poderiam ser confundidos pelas facções por inimigos ou talvez coisa pior. Mesmo que não fosse conseguir dormir pensando nisso aquela noite, havia tomado uma decisão;

Tinha que ir até lá e trazê-los para a Nova Esparta.


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