O Cavaleiro dos Lírios escrita por Kuro Neko


Capítulo 8
Inesperado




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Não prestara atenção em quase nada. Tudo aquilo era demais para Ron. Lia os livros que Jeff, um rapaz de cabelo ruivo e cheio de sardas na face, lhe deu, mas não os compreendeu. No quarto que lhe fora dado, um pequeno no térreo de uma torre mediana de tijolos cinzas, havia uma cama de trapos costurados, um pequeno armário e uma mesinha com alguns livros. Não havia nenhuma janela e, portanto, a porta de vidro escurecido que ligava um pequeno corredor ao quarto vivia sempre aberta. O quarto em si não partilhava da luz do dia, apesar de alguns feixes escaparem entre os tijolos, então havia um lustre torto improvisado de madeira escura e farpada com velas acesas o dia inteiro. Ron tinha medo de o lustre cair enquanto ficava no quarto, mas lhe asseguraram que ele tinha essa aparência há muito e não tinha perigo algum de cair. No momento, ele estava deitado na cama lendo alguns rabiscos que Tristan Grande havia escrito em um livro de capa de couro.

— Ron? — A menina que ele pôs o nome de Almur estava na porta, vestida com um vestido curto, até um pouco depois do joelho, de seda colorida em branco, verde e roxo. Ron decidiu que para não haver muita confusão entre ele mesmo e a menina, decidiu chamá-la de Al. Na presença dela, não a chamava por nenhum nome — Como está indo?

— Vou bem até — Ron fechou o livro e se revirou em sua cama — Tráz-me alguma mensagem de… — vacilou por um momento, tentando lembrar o nome do homem — Granhord, certo?

— Quem é Granhord? Você quis dizer Ben Rerol, certo? — Almur acenou com a cabeça e levantou-se da cama — Não, nenhuma mensagem. Mas acho que deve ver seu amigo caolho, ele está agindo meio estranho.

Ron agradeceu e partiu em direção ao corredor. Jane não se encontrava muito longe dali, onde havia uma fileira de portas de carvalho. Cada quarto possuía uma identificação, isto é, um número escrito na porta. O de Ron era o número 5. O de Olho-bom era 3. No caminho para o quarto, percebeu que Al o seguia. Ele não se importou muito. Parou em frente a porta:

— Jane? — O chamou, batendo três vezes — Você se importaria se entrássemos? — Nenhuma resposta veio — Estamos entrando.

Ron abriu a porta lentamente. O quarto dele era idêntico ao seu, bem simples e todo organizado. Até o lustre torto parecia igual. Quando a porta se abriu por completo, observou Jane escrevendo algo na mesinha que havia no seu quarto também. Ron ficou lá, chamando-o inutilmente a porta. Foi só quando se aproximou e tocou seu ombro que ele se virou:

— Você — Ele fechou, em um rolo, a folha de papel que estava a sua frente. Pôs uma pena, a que ele usava, num tinteiro e voltou a falar — Que história é essa de Víbora Escarlate? — Jane se levantou calmamente. Ele estava trajado com vestes simples que geralmente são usadas em casa, mas usava um cinto de couro. Ron, cauteloso, deu um passo para trás — Por que não me disse nada? — Deu um passo em direção a Ron. Esse, por sua vez, deu outro passo para trás. Al não se encontrava mais no quarto, deixando-o apenas com Jane, que estava com os olhos irritados e com os cabelos negros meio suados. Deu mais alguns passos e, com sucesso, agarrou Ron pelos ombros e o encostou na parede. Deixou um pouco de ar escapar com o impacto. Olho-bom tinha uma adaga presa ao cinto, Ron podia ver agora, e ele tirou a mão esquerda que o empurrava para começar a alcançá-la — Você por acaso sabe de alguma coisa sobre…

— O que está acontecendo aqui? — Felix Estranho, o mentor de Ron que possuía grandes cabelos loiros e sempre estava de armadura de ferro, estava a porta junto com Al. Jane parou de puxar a adaga mas, em sequência, o deu um soco forte na barriga, com a mão que fora interrompida, que o fez cair no chão quando Jane o soltou. Nenhuma palavra fora dita. Ele apenas deixou o quarto, empurrando Felix e Al rudemente para o lado. Ninguém o impediu — Cuidado com as brigas que se mete, Almur. Ron, isto é. O pior inimigo é o amigo que sempre temos ao nosso lado. Vamos, levante-se. Temos muito o que aprender.

“Por que ele fez isso? O que ele sabe sobre essa Víbora?”, pensou Ron, enquanto Al o ajudava a levantar.

Mesmo depois de ter deixado o conjunto de quartos, a barriga de Ron ainda estava dolorida. Foi encontrar Felix ao lado de fora, sentado em um toco de árvore cortada, comendo mexerica. Quando tanto Ron quanto Al se aproximaram dele, apenas pediu para que Ron se sentasse ao chão, a frente dele, na grama e que Al os deixassem. Ela assentiu com a cabeça e partiu em direção ao centro da vila. Ron fez o que lhe foi pedido, também.

— Para começar, diga-me o que aprendeu até agora — Anunciou Felix.

— Primeiramente — Respondeu Ron, pensando no que dizer — eu soube que máscaras são benéficas quando se for realizar o engano.

— Muito bem. O que mais?

— Há um… — Não sabia o que dizer. Não lembrava de quase nada que tinha lido — O praticante deve sussurrar algo para a pessoa então…

— Não, não há sussurro algum. Sussurrar é o fator mais perigoso nisso tudo. O que mais? — Nenhuma resposta veio. Felix bufou e bateu levemente na coxa dele, revestida com a armadura, fazendo um som de desaprovação — Você leu os livros que eu pedi?

— Eu sim, mas…

— Parece que não. Isso não é brincadeira para ninguém, ainda mais para você que se diz cavaleiro e parece meu filho que é gordo. Leve isso mais a sério ou você vai ser o primeiro corpo a cair no chão. Volte aqui quando tiver entendido e crescido o suficiente para termos uma conversa decente.

Sem mais nenhuma palavra, Ron levantou-se e seguiu em direção a vila. Felix permaneceu lá, comendo o resto da fruta que comia antes. O caminho para vila foi tranquilo e agradável, passando por pessoas idosas, crianças, palhaços, trabalhadores, enfim, todos variados tipos de cidadãos e por construções de madeira, de tijolos e outros materiais. O sol brilhava naquela hora da tarde. Ainda assim, Ron ficou chateado o percurso inteiro. Se separara de Leonard, que era medicado dia e noite e não melhorava, de Flora, que era posta em repouso para recuperar-se, de Jane, que começou a agir estranhamente, e, acima de tudo, do irmão Almur, que havia sido levado pelo homem misterioso. “Ele teria sido brilhante no meu lugar”, recordou Ron. Lembrava-se, também, do irmão golpeando um boneco de tamanho humano que era posto a frente da casa deles. “O ponto fraco de qualquer oponente é aqui”, Almur disse, apontando para a coxa do inimigo, quando ele tinha se aproximado dele. “Golpeei-o aqui, e ele não terá como se movimentar direito. Só cuidado se ele tiver um escudo, que dificultaria tudo”, lembrou-se dele rindo, enquanto todo em suor, parando por um momento o treino e dando tapinhas nas costas do irmão. “Li isso num livro, uma vez”. Ron ficou se questionando se Almur conseguiria aprender facilmente a arte da camuflagem.

Foi só após passar a vila inteira que chegou onde queria: um lago. A grama ali era mais verde, pois o lago conseguia supri-la com água. Quando aproximou-se da margem e sentou-se próximo a água, conseguiu ver a forma de alguém que se banhava lá, numa parte mais profunda, mas não tão distante, do lago. A forma, quando foi avistada, estava quase invisível para ele, mas logo estava cada vez mais aparente e concluiu que ela estava emergindo.

Foi quando colocou a cabeça para fora d'água para respirar que Ron percebeu que era uma mulher. Ela possuía curtos e lisos cabelos negros que reluziam a luz do sol. Seu corpo inteiro estava desfigurado pela reflexão que a água causa. Seus olhos eram castanhos esverdeados e olhavam para ele agora.

Nenhum dos dois se moveu por um tempo, até que ela imergiu e foi nadando até ele. Quando ela percebeu que havia a altura necessária para se ficar de pé, ela começou a andar em direção dele. Estava vestida com apenas uma camisola grande e branca de lã. Possuía pele branca, um pouco rosada agora, e parecia ser mais alta que Ron. Parecia ter vivido uns dezoito anos.

— O que quer de mim? — Ela disse, amaciando o cabelo dela.

— Não quero nada de você. Quero apenas ficar aqui — Ron resmungou.

— Ninguém é louco o suficiente para isso. Todos sabem que esse lago é meu. Vou repetir, o que quer de mim?

— Já disse que nada. Já estou cheio desse pessoal daqui. Que Felix Estranho, Jane e todos os outros se danem — Ron pegou uma pequena pedra que encontrou no chão e jogou no lago — Me deixe em paz.

— Felix? Há! É por isso que está assim. Aquele troço horrível estraga o dia de todos. Mas ainda assim, não pode ficar aqui. Esse lago é meu.

— Dane-se o lago — Deitou-se no chão, enquanto a água dançava um pouco ao seu lado — Não vou usá-lo. Só tenho que pensar no que fazer agora.

— Mas ora essa. Chega ao meu lago, deita-se ai e ainda por cima fala mal dele? — Ela suspirou e cruzou os braços, tremendo um pouco pelo vento que se intensificou — Você não é daqui, é? — Ron balançou a cabeça — Então o que você está fazendo aqui?

— Eu diria se eu soubesse — Sentiu lágrimas brotando dos seus olhos e, rapidamente, pôs o braço direito a frente dos olhos — Todas as coisas até agora não tem nenhum sentido, tudo por causa dessa Víbora Escarlate — Não queria tocar nesse assunto, mas as palavras escorregaram.

— Víbora Escarlate? Aquela Víbora?

— O que você sabe sobre ela?

— O suficiente. Deixe-me te contar — Ron tirou o braço da frente do rosto, esfregou os olhos e sentou-se. A mulher fez o mesmo, empurrando o cabelo negro para trás da orelha no ato.

“Há milhares de anos, um homem recebeu um presente. Não um presente físico, mas divino. Ele estava destinado a ser o guerreiro perfeito. Ninguém poderia derrotá-lo. A pequena sociedade existente naquela época escutou sua fama e percebeu seu poder e, quando ele cresceu, decidiram venerá-lo. Anos se passaram e o homem recebeu o título de Governante de Todos. Mas todo esse poder o levou sempre a querer mais e mais e, como ninguém poderia vencê-lo, tornou-se conhecido apenas como Cruel nos dias atuais. O reinado desse só terminou quando a morte veio reivindicá-lo ela mesma. Livres do poder do Cruel, os homens escolheram outro em linhagem nobre para sucedê-lo.

O próximo rei era um homem ganancioso, mas honrado. Tinha um pouco de compaixão pelo seu povo, muito mais que o Cruel, e eles estavam satisfeitos. Dizem que ele reinou durante vinte e cinco anos, até o momento em que outro homem, com as mesmas características especiais do Cruel, progrediu, ele mesmo, até o trono e tirou o rei de lá. Chamou a si mesmo de rei e ninguém o contrariou.

Todos os homens, principalmente os mais velhos, ficaram receosos em ver a desgraça de Cruel ocorrer novamente. Então, foi criado uma sociedade secreta para derrubá-lo. Dizem que fora um velho que era mão direita de Cruel que a fundou. Ninguém sabe ao certo. Mas, ao conviver com o próprio rei, aprendeu apenas uma coisa com ele: animar os mortos. Após cinco anos do reinado desse Cruel, tão maldoso quando aquele, o velho, chamado na história de Quartzo, reanimou o único que poderia deter o rei: o Cruel original. Mas algo deu errado, pois geralmente quando se reanimava algum já ido, ele ressurgia em algum objeto. Armaduras eram usadas e foi usada naquela ocasião. Entretanto, Cruel tomou uma forma própria, algo humanoide revestido por algo negro, similar a um manto. Antes de ser morto por isso, Quartzo o ordenou para que tomasse a sociedade secreta e que derrubasse o rei.

Algumas semanas depois, estava feito. O rei caíra e Cruel havia retornado. Ele, agora não mais como humano mas como criatura negra, desejaria o trono para si mesmo de novo, se bem que estava preso a sociedade secreta. Com isso, reviveu Quartzo em uma armadura de madeira e, assim, criou-se os Mata Reis.

Vários reis viram, vários reis foram, até que decidiu-se acabar com a monarquia. Cada pedaço de terra havia um dono só, os Senhores, e, portanto, os Mata Reis não tinham mais reis para matar. O que os restaram era caçar os descendentes de Cruel, aqueles que herdavam o dom de dominar as artes ocultas. Devido as pirâmides antigas que eram construídas juntas a grandes totens de forma de víbora com vários detalhes em rubi em nome dos descendentes de Cruel, esses passaram a se chamar Víboras Escarlates. Há alguns anos, a Víbora Escarlate se chamava Haew Spring, um homem de pele escura que vivia aqui no norte. A história conta que houve Víboras que fizeram grande bens para a humanidade, mas Haew não era uma delas. Ele dissipou as artes ocultas, a camuflagem e a necromancia são exemplos, com exceção da arte da paralisia, e derrubava todos os Senhores que podia. Dizia que seu legado seria eterno e que tudo só poderia pertencer a um homem só. Ele devastou muitas cidades e vilarejos até que a sociedade secreta, Mata Reis ou Os Ceifeiros, como são conhecidos hoje, o encontrou.

Hoje, diz-se que há uma nova Víbora Escarlate. Aliás, dizem que ela está aqui no Campo das Árvores Mortas, mas eu não acredito muito nisso”.

Ron parou por um segundo, tentando engolir tudo aquilo. “Os Ceifeiros, foram eles que levaram Almur. Mas por que não eu?”, perguntou a si mesmo. As águas pareciam tão calmas, o dia estava tão agradável mas ele mesmo chegou a tremer um pouco.

— Você está bem? Parece meio pálido. Já te contei tudo o que eu sabia… então eu acho que é justo você sair do meu lago, não acha?

Ron entupia-se de perguntas como “E se eles vierem atrás de mim?” e “Como é que eu posso salvar o Almur agora?”. Não tinha escutado o que a mulher tinha falado e ficou ali sentado na grama sem ao menos piscar. O tempo se passava e a mulher, já seca há algum tempo, saiu dali vendo que não teria a privacidade desejada. Nuvens cobriam o sol naquele instante.

— Highwood — Disse uma voz atrás de si. Ron virou-se e encarou Jane com um rosto preocupado. Ele estava vestido simples, mas tinha estava com o seu machado de guerra. A roupa dele eram as mesmas que usava quando escrevia no quarto dele. Se aproximava cada vez mais, passo a passo — Sabe, há alguns dias eu o chamaria para um treino, eu e você. Façamos isso agora. Aquele que morrer perde.

Ron levantou-se rapidamente, assim como Jane avançou também. Com o machado de guerra na mão esquerda, ele saiu correndo e foi desferindo um corte horizontal nas costas de Ron. Se não fosse por um pulo que Ron deu a frente, o corte teria pego em cheio e causado grande estrago. A ponta da lâmina do machado raspou em sua roupa de algodão e fez um pequeno arranhão que sangrava e ardia. Ron, sem saber o que fazer, apenas correu um pouco em direção ao lago e parou quando a água alcançou os tornozelos.

— Sabe, você deveria estar me agradecendo. Você é uma pessoa boa — Jane disse, avançando para ele outra vez, levantando o machado na mão esquerda. E agora, o que faria? Ele ainda tremia e estava pálido. Rápido demais, Jane o segurou com a mão direita, que tinha apenas três dedos e, com o braço esquerdo a frente e pondo o machado à direita do rosto, estendeu o braço dele e deferiu um corte horizontal da direita para a esquerda. O machado entrou no braço esquerdo de Ron, na parte de cima, até chegar ao osso. A dor era grande e Ron gritava de dor. Desesperado, jogou o machado para longe e, subitamente, lembrou-se do irmão: “Golpeei-o aqui e ele não conseguirá se movimentar direito”. Achou a coxa de Jane e deu um chute. Olho-bom gritou de dor e, por estar perto dele, Jane segurou o braço esquerdo de Ron e, com o outro braço apoiado em seu ombro, fez uma alavanca que inverteu o lado do antebraço dele. O cotovelo dele quebrou um com estrondo. Ambos caíram no chão depois disso. Provavelmente, o chute de Ron deslocou a perna de Jane.

O braço esquerdo de Ron ardia num tom de vermelho. Lágrimas saíam dos olhos dele, espontaneamente, e, pela dor, permaneceu no chão, com os olhos fechados.

— Adoraria acabar com você aqui mesmo, vingar meus parentes, meus dedos, meus olhos e minha terra. Mas, oh Deuses, você é só uma criança. Vá para casa e nunca mais saia de lá. Se eu te ver mais uma vez, termino o que comecei aqui — A voz era de Olho-bom. Ele parecia estar em cima dele.

Logo depois, começou a chover. Os passos de Jane ficavam cada vez menos audíveis e, portanto, ele estava indo embora. Ron ficou no chão, contorcendo-se.

Ele desistiria ali mesmo. Não se importava mais com essa história de Víbora Escarlate, dos Ceifadores, de cavaleiro, de inimigos, de destino e de tudo mais, apenas queria que tudo aquilo acabasse. Mas não podia simplesmente desistir.

Almur contava com ele.


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Notas finais do capítulo

Toda história precisa ficar mais séria chegando a um ponto. Esse ponto é agora.
Não pense que tudo será cinza e negro daqui para frente, mas se as aventuras fossem todas fáceis demais, não teria graça nenhuma em conclui-las, certo?



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