O Cavaleiro dos Lírios escrita por Kuro Neko


Capítulo 5
Lacrimoso




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O som o deixava cada vez mais louco. Há horas, dias, meses, anos não sabia o que era andar com os próprios pés, e os cascos dos cavalos batendo contra a lama era irritantemente repetitivo e ordenado. A cela pareceu até confortável na primeira hora de viagem. Não acamparam a noite passada temendo por jaguares que adoravam uma presa imóvel. Além disso, não conseguira dormir. Era acompanhado por não mais que vinte e cinco homens nobres e, na formação atual, permanecia na retaguarda. Os homens ao seu lado mostraram grandes olheiras.

— Quantos milênios de cavalgada temos pela frente? — Perguntou, movendo uma mecha de seu cabelo ruivo para longe da testa com o mindinho.

— Sente o cheiro dos mortos, senhor? — Respondeu Plunn, um homem corpulento que usava armadura de ferro padrão. Não usava nenhum tipo de elmo para poder mostrar seu cavanhaque negro, o único cabelo que possuía na cabeça. Ele o lembrou de um guarda que o acompanhara na infância, Willie. A melhor pessoa que ele já conhecera. Vivia contando histórias sobre as maravilhas que existem para lá do oeste, nas raças variadas, nas cachoeiras, nos mares, nos deuses e nas culturas. Ele o deixou para parear ideais com a Víbora Escarlate. Mas este era Plunn, um homem chato e ignorante. Ele cobria o flanco direito em seu garanhão marrom.

— Silêncio — Falou ruidosa e rispidamente o general Weldt Rain, da vanguarda e sem olhar para trás, com os seus cabelos embranquecidos ao vento. Sua armadura vermelha rubi chamava bastante a atenção — Já chegaremos. Isto é, chegaremos se nosso querido amigo Plunn mantiver sua língua dentro da boca.

Após certo tempo, percebeu que Rain tinha um péssimo senso de tempo, mas uma boa voz. O silêncio permaneceu, mas não haviam chegado ao destino tão breve quanto a previsão dele. Mais outro crepúsculo chegou, pintando o céu de um tom vermelho alaranjado da cor do seu cabelo. Desta vez, levantaram acampamento. E então tudo se repetia por um dia, dois, três, até que perdesse a conta. Os homens estavam cada vez menos disciplinados, quebrando a formação e tratando de assuntos triviais uns com os outros. Ele não fora diferente, vivia conversando com pessoas perto dele: alguns jovens falavam sobre refeições e celebrações que viriam e que já foram presenciadas por eles; os mais velhos referenciavam viagens mais desesperadoras que essa. Mas todos estavam com o pensamento positivo pois nenhum homem fora morto ou perdido. Houve jaguares no caminho, tigres e outros animais que nem sabia que existia. E sim, houve batalhas por comida, batalhas entre soldados e batalha contra enfermidades. Mas ele não participou de nenhuma delas. Na verdade, estava aproveitando bastante.

— Pararemos para acampar — Rain anunciou num tom que não admitia controversas.

Então todos se prepararam e, em pouco tempo, tendas surgiram por todos os lados e uma fogueira improvisada fora feita. Foi feito um estereótipo de acampamento. Não ia trabalhar para fazer sua tenda, pessoas eram encarregadas disso.

— Jin — Yuki o chamou, era o único que era autorizado a chamá-lo pelo nome — Esta tenda o agrada?

Era uma tenda improvisada feita de folha de palmeira que coletaram no caminho. Parecia bem simples, mas não ligou tanto. Recordou-se de seu velho pai, um vulto em sua memória, dizendo "Tenha soldados e eles lutarão. Tenha um arquiteto e ele construirá. Um soldado que construa não é bom soldado, nem bom arquiteto".

— Está perfeito, Cabeça. Obrigado.

Yuki fez uma cortesia exagerada e pôs-se a ajudar os outros soldados. Ele era mais novo que Jin e possuía cabelos e olhos claros. Era muito simpático e muito pouco enjoado, ao contrário dele. Percebeu em seguida que os galhos estavam provavelmente úmidos, aqueles da fogueira, uma vez que produziam fumaça mais negra que o convencional. Mais uma vez, lembrou-se que, na infância, várias dessas eram formadas em torno da muralha que cerca o seu castelo - do seu pai, na época. Não era uma lembrança que o trazia sentimentos alegres.

Dentro da sua tenda, percebeu o tamanho da sua simplicidade. Era apenas formada por lençóis, cordas, um saco de dormir, uma pequena mesa sem cadeira mas com comida, e lama. Invejou os homens que estavam na tenda do general, discutindo seus planos diários, porque a tenda dele era praticamente uma coisa colossal. Não quis mais saber de nada, enfiou-se em seu saco de dormir e logo estaria adormecido. A lama do chão estava bem fria e aconchegante.

Tudo ia completamente bom e sereno. Mas nem minutos pareciam ter se passado e ouviu um grito vindo de lá de fora da sua tenda, e acordou com um pulo. Não se lembrava do sonho que teve, apenas de um coelho que ele tinha que caçar.

Uma melodia de aço era tocada, com passos pesados e falas sem sentido algum. Rapidamente percebeu que fora um ataque surpresa e se questionou há quanto tempo eles os observavam. Eram em vinte e cinco, mas aparentava ter uma multidão lá fora. "Estamos em desvantagem" pensou "Mas Weldt é um general experiente e não cairia por mãos de selvagens. E se falhar comigo, o punirei". Mesmo com a sua confiança no general, Jin livrou-se do saco de dormir e jogou-se no chão num movimento rápido. Tentou camuflagem, cobrindo-se de lama, mas não tinha tirado a armadura para dormir como de costume e pouco adiantava, apenas para enchê-lo de lama por dentro dela.

Enquanto percebia o grande erro que havia cometido, com a espada que trazia consigo a três metros de distância dele, um homem esguio, careca e de barba branca, trajando um manto branco que o desnudava ambos braços e sua cabeça. A ponta era arrastado pelo chão enlameado, portanto aparentava uma coloração amarronzada. Sua estratégia agora fora parar completamente de se mexer, fechar os olhos e fingir-se de morto.

— Poupe-me, criança — A sua voz era rouca e bem suave — Sei bem quando alguém está morto. Levante-se — Jin hesitou por um momento, mas levantou-se e limpou-se da lama do corpo após um momento, ainda que sem muito sucesso — Isso, assim está melhor. Vejo que seu corpo é bom e novo. Pena que o preço já foi pago.

— Preço? Que preço? — Respondeu confuso e meio tonto por ter acabado de acordar.

O homem abriu a entrada da tenda, gritou uma ordem em outra língua e dois outros homens, um gordo e outro magro, mas ambos vestidos com armadura, entraram, arrastando o general Weldt pelos braços. O jogaram no chão e Jin percebeu que haviam mais de dez adagas às costas dele, além de um grande corte na cabeça. O homem velho parecia satisfeito, afagando sua pequena barba branca.

— É um belo cadáver, não?

— Você... O matou — Ele não parecia respirar e estava sem sua armadura, apenas em roupas de dormir. Pintava todo o chão de vermelho-escuro.

— Ah, claro. Foi uma cortesia — Respondeu o homem com quem conversava, enquanto ele observava a face de Jin — Que expressão é essa? A morte é uma arte, ela torna verdadeiro qualquer sentimento — Ergueu as mãos ao ar e ficou a observá-las. Começou a achar que o homem era louco — Sabe, há vida na morte. O ódio é o amor negativo, mas amor. A morte é a vida negativa, mas vida — Ele disse essa última sentença com pequenos risinhos entre cada palavra — Mas já chega de conversa, venha conosco.

Viu que não tinha nenhuma opção, entretanto levantou-se do chão enlameado relutantemente. Um dos homens que trouxeram o general, o gordo, riu do modo como Jin tirou a lama que entrou na sua botina de couro, mostrando a falta de dois de seus dentes e voz rouca, mas grave. Ele possuía cabelo negro e encaracolado e também uma armadura completa de cobre ornamentada com ossos. O outro arrastava Rain para fora da tenda e não prestou atenção nele, e nem queria. "Weldt... serviu-me bem, até. Mas não tem mais uso pra mim assim".

Após montar em seu cavalo, novamente, estava carrancudo, triste, cansado e horrorizado. Seu acampamento estava devastado com tendas rasgadas e nenhum sinal de seus homens, além da fogueira ter sido apagada. Ainda era noite. O velho de antes se aproximou dele e disse:

— Não se preocupe, somos seus aliados. Preciso por meus homens para vigiá-lo? — "Aliados? O homem não tem juízo", pensou, mas balançou a cabeça assim mesmo — Ótimo. E não tema pelo grandão lá.

Se puseram em cavalgada. Todas as árvores cinzas à luz do luar se repetiam e seus movimentos pareciam ser em círculos. Nenhuma palavra fora dita até que um adolescente de cabelo verde-escuro fino quanto alga pareou seu cavalo marrom com o dele:

— Sabe para onde vamos, não sabe?

— Sei. Estamos indo para Austap, a cidade...

— Vanel Red. O nome é Vanel Red desde que Maier Tom tomou o comando da cidade. Ele a tornou o núcleo da arte da necromancia.

— Maier Tom?

— Sim, o velho que você conheceu. Cuidado com o seu corpo, ele ama iludir à todos com a morte.

— Não entendo, como é que necromancia é permitida?

— Tem a ver com a Víbora Escarlate — "Ele de novo. Maldito seja", cuspiu no chão. O outro não pareceu ligar — Diz-se que Tom era um dos aprendizes dele, mas apenas aprendeu necromancia. Em resumo, a própria Víbora traiu a todos os aprendizes e, em resposta, eles decidiram disseminar as artes ocultas dele. Portanto, não se preocupe, o general morreu, mas não se foi.

Tudo parecia girar em torno dessa Víbora. Lembrou-se da sua infância, em que ele tinha sido o seu herói. Seu pai o trouxe a realidade, dizendo friamente "A Víbora não é nenhum herói, ele é um inimigo nosso e se você for que nem ele, terá o mesmo fim", relembrou que ele estava remexendo em alguns mapas sobre uma mesa de ébano. Na época, a Víbora vivia e ele não entendeu o que quis dizer seu pai. Hoje, já sabia.

Já era dia agora e, a este ponto, as árvores rarearam e mostraram caminho para a cidade, agora denominada Vanel Red. Suas expectativas estavam constantemente sendo quebradas. A princípio, imaginava uma pacata cidade comum, depois, uma cidade ornamentada por crânios e restos mortais, onde a luz do sol nunca seria capaz de alcançar, mas agora era parecia um pacata cidade comum. Enquanto todos desciam de seus cavalos, inclusive ele mesmo, pôde observar cinco construções pequenas e uma torre colossal, toda construída em madeira, de forma octogonal.

— Siga-nos, senhor. Quero te dar um presente — Disse Maier Tom, dando-lhe um sorriso gentil. Não sabia onde Yuki estava, mas tinha certeza que não estava muito longe dele. Afinal, nem todos tinham morrido nesse conflito, conseguiu identificar pelo menos oito pessoas junto com essas novas pessoas na cavalgada. Mas, ainda assim, tinha medo de perdê-lo.

A entrada da torre era colossal, a porta feita de um material que não reconheceu, mas foi pintado de cinza e era totalmente liso. Ao passo que entrava na construção, seus olhos se acostumavam a falta de claridade do local. Havia uma escadaria que podia levá-lo ao andar superior, mas ela estava selada, tornando-a uma escada apoiada na parede. No meio da sala, chamas crepitavam de uma grande fogueira. Todos formaram um círculo ao redor dela e ele ficou ao lado do garoto de cabelo verde de antes. Mais e mais pessoas entravam e o fluxo só acabou até Maier chegar, trazendo um retalho de dejetos naturais, tais quais galhos, troncos e ferro, de formato humanoide com dois metros de tamanho sendo arrastado pelo chão. Parecia e era uma armadura.

— Está vendo aquilo? Seu general dorme lá dentro. Veremos se vai acordar — Pronunciou o garoto, Alga, ia chamá-lo de agora em diante — Maier jogará o Reke, aquilo — Apontou para armadura — no fogo. Cada um de nós tem uma alma, e quando morremos perdemos nosso corpo e nossa alma viaja. Necromantes oferecem o corpo a alguém, alguma divindade, e, se a pessoa aceitar, receberá um novo feito pela natureza. Já está na hora, olhe.

Maier subiu o Reke com as duas mãos tão facilmente como levantar uma lança e o atirou as chamas. Seguiu-se um profundo silêncio em seguida, apenas o Reke estalando pelas chamas que alastravam por ele. Elas se apagaram um tempo depois e, das cinzas, se levantou o Reke por vontade própria. Estava todo envolto por cinzas, mas não queimado. Dois metros e colossal, chegou a dar arrepios.

— Weldt — Maier gritou para ele e se ajoelhou — Seu novo corpo é seu para usar.

— Sabe — Alga falou — Muito cuidado com ele. Não comerá, falará, respirará, sentirá nem nada nunca mais. Será cada vez menos humano e cada vez mais Reke. E não tenha dúvidas, Maier o ensinará a arte. Você gostaria de aprendê-la?

Weldt parecia dirigir o olhar a Jin, que ficou fascinado.


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