A Rainha de Espadas escrita por ForLoversOnly


Capítulo 4
Verde Oliva


Notas iniciais do capítulo

A pequena Kate voltou!



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Ela podia sentir o impacto de seus pés no chão, mas ainda assim era como se flutuasse. O longo vestido branco esvoaçava em torno do seu corpo pequeno, embora seus pulmões lutassem desesperados à procura de ar. O frio transformava suas lágrimas em pequenos cristais de sal, que se congelavam antes de percorrerem por completo suas largas bochechas rosadas. O longo cabelo castanho golpeava seus olhos com o forte vento que lhe ia encontro, mas ainda que libertasse a sua visão seria incapaz de enxergar qualquer coisa em meio a tanta escuridão. Tentou por infinitas vezes livrar os pés da lama densa que os cobria, mas seu corpo estava pesado demais para que conseguisse se mover. Para onde correria?, pensou apertando os magros braços nus em volta do peito. Fechou os olhos e tentou se agarrar em algo quente e belo que tivesse o poder de tirá-la daquele lugar, mas o medo havia sugado até mesmo suas lembranças. Não era a primeira vez que ela se encontrava naquele abismo profundo, mas pela primeira vez ela sentiu não estar sozinha entre as sombras.
Seus olhos se abriram como sob comando e à sua frente apareceu uma velha casa de muros brancos, aquecida por uma grande lareira que liberava uma opaca fumaça cinzenta por uma grande chaminé de barro. A lembrava alguns dos casebres que via espalhados pelo vilarejo onde habitava, mesmo tendo certeza de nunca ter notado tanto aconchego em algo tão simples antes. O frio estava aumentando. Ela precisava chegar até aquela casa e aquecer seus ossos no calor de suas chamas. Lançou um olhar ligeiro ao seu redor, esperando de alguma forma que aquela presença que sentia lhe concedesse a força que a levaria à sua salvação. Mas seus pés ainda estavam enraizados no chão e o frio continuava aumentando. O uivar do vento entrou em batalha com as batidas do seu coração que, aceleradas, lhe destroçavam o peito. Estava aterrorizada e prestes a abandonar suas forças.
— Katherine. — sussurrou a voz que a assombrava.
A menina estremeceu e suas pernas vacilaram, deixando aos seus joelhos o dever de suportarem a queda do seu corpo. A lama que banhou seus dedos tinha um avermelhado intenso como o sangue, mas o calor que emanava a trouxe de volta à realidade. Apoiou as mãos no chão e em um impulso tentou se levantar, mas nada conseguiu mover além de seus olhos ardidos. Agora, por trás da janela daquela mesma casa, a luz fraca contornava uma pequena sombra, que a fitava por trás da grande janela de vidro azulado. — A voz. — a resposta ultrapassou a sua pergunta. Suspirou fundo e soltou o pouco ar que havia recolhido, voltando a olhar mais intensamente para a janela. A sombra ainda estava lá.
— Olhe de novo, menina. — a voz sussurro no pé do seu ouvido. Ela obedeceu.
A luz se tornou mais intensa e a sombra aos poucos foi desaparecendo, dando uma forma menos espantosa ao que seus olhos enxergavam, ou ao que a sua mente tentava decifrar. Suplicou-lhes a verdade. Estava apavorada e ao mesmo tempo afogando em curiosidade. Há tempos o mistério por trás daquele fantasma a devorava. Sentiu seu corpo se levantar enquanto a figura tornava-se familiar diante de seus olhos. Parecia estar agora de frente a um espelho. Via a si mesma dentro da casa. Como é possível?,pensou atordoada.
A voz que a perseguia podia agora tocá-la e uma mão firme e gélida ela sentiu em seu ombro esquerdo. Deu por si que estava dura como uma estátua e tão reta como um dos muros de pedras negras que cercavam a sua cidade.
— DEIXE-ME ENTRAR! — respondeu a voz em um grito pouco humano.

– – -

— Princesa Katherine. — chamou por ela uma voz diferente dessa vez, doce e serena. — Senhora, acorde! — insistiu se aproximando, tocando-lhe de leve o braço.
A menina abriu os olhos arregalados olhando assustada para a velha debruçada sobre a sua cama.
— Yellen! — disse aliviada, inspirando todo o ar que seus pulmões poderiam suportar, amparando-se nos braços da Ama que olhava para ela com preocupação.
Ela sempre odiou o cheiro de mel que os cabelos da Velha Ama exalavam, mas dessa vez aceitou de bom grado o doce sufocante que entrava sem permissão pelas suas narinas. A velha senhora jurava não ter mais do que quarenta anos, mas desde que Katherine ainda se alimentava em seus seios essa história era contada. As infinitas rugas profundas que traçavam o seu fino rosto não eram suficientes para esconder seus enormes olhos marrons, que sempre estavam sobre a menina onde quer que ela fosse.
Depois de uma longa noite entre as trevas e o frio intenso, a pele flácida e o sangue quente da Ama tinham gosto de refúgio.
— Está tudo bem, minha menina. — disse com aquela voz tranqüila mais uma vez. — Foi só um pesadelo.
A jovem se afastou à procura do rosto de sua bajuladora, balançando a cabeça como se tentasse tirar da própria mente as horas perturbadoras que havia acabado de viver. Deixou os olhos caírem sobre suas mãos, lembrando-se da lama que ainda há pouco as tingia de vermelho.
— Nunca é só um pesadelo quando eu estou com ela, Ama. — respondeu com voz trêmula.
— Ela? — indagou a velha, franzindo de leve a rala sobrancelha cinza que cobria seus olhos. A menina nunca havia lhe confessado nenhum detalhe sobre os recorrentes sonhos, e ela nada sabia além das sombras e do frio de que sempre se queixava. — Quem é ela?
Katherine encolheu os ombros em resposta à pergunta que ela mesma se fazia há muito tempo, livrando-se dos pesados lençóis que a prendiam na cama. O pesadelo daquela noite havia terminado, mas ainda se sentia sufocar dentro daquelas paredes.
— Preciso falar com meu pai. — disse levantando-se da cama. Yellen a segurou pelo braço e ela recuou no mesmo instante, olhando para a mulher ao seu lado como se ela tivesse lhe arrancado os olhos com aquele brusco e inesperado gesto.
— Seu pai não irá falar com você agora, criança. — disse acariciando-lhe o braço sobre as marcas vermelhas de seus dedos antes de libertá-la.
— Aconteceu algo? — Katherine olhou para a porta fechada e voltou a fitar o rosto da mulher que a observava de cima. A senhora pegou um longo manto esverdeado sobre uma das cadeiras e cobriu gentilmente os ombros da menina, que logo percebeu, com o seu calor, o quanto estava frio em seu quarto. Do lado de fora pouco se via com as nuvens baixas a cobrirem o Castelo, mas podia notar a neve fina que batia contra a janela do seu quarto. Parecia querer entrar a qualquer custo. De novo se recordou do sonho.
— São ordens vindas diretamente do Rei. — respondeu afagando com sua mão enrugada os cachos que pendiam alegres sobre os ombros da Princesa. — Não poderá sair do meu lado e…há guardas velando a porta do seu quarto. — fez uma breve pausa forçando uma leve curva em seus lábios que formaram um trêmulo sorriso contradizente aos olhos banhados e estranhamente tristes. — Princesa, houve um assassinato.
A notícia não a tinha atingido da mesma forma que podia ver nos olhos da velha Ama. Sempre ouviu falar de assassinos e mercenários, e em uma cidade tão grande como WindCastle, as fatalidades eram um dos assuntos mais comuns que percorriam as estradas. A única morte que seu pai lamentou durante toda a sua vida foi a de sua mãe, que os deixara no dia em que Katherine nasceu. Mas sobre a sua morte ninguém nunca dizia uma palavra, e a menina só conhecia o pouco que sua Ama a contava raramente em volta da lareira. Sabia da cor de seus cabelos e de sua imensa bondade, mas era como se esse fosse um assunto digno de punição. Todos se esquivavam de suas perguntas.
— Quem? — perguntou com certo receio.
— Conde Jaddah Hunt, senhora. O Guardião do Sul. — respondeu com um tom destacado. — E o assassino ainda está à solta.
Era evidente o porquê de sua morte ter tocado tão de perto o seu pai. Lágrimas surgiram involuntariamente ao imaginar a vastidão da tristeza que estava sentindo o seu senhor naquele momento. Lembrou-se da saudade que lhe apertava o peito ao falar de sua mãe. Uma saudade fundada em histórias imaginadas e um amor que ela nunca chegou a sentir. Um amigo como Jaddah era para o seu Rei, não deveria fugir dessa realidade.
Um a um os peões irão cair – Lembrou-se de repente de uma das lendas que o Septão contava para assustar as crianças do vilarejo. As pobres criaturas corriam para suas casas assustadas, e alguns valentões riam das insanidades que escorriam pela boca do velho, mas Katherine sempre absorveu e respeitou cada palavra que dele saía. A Ama lhe proibia freqüentar as rodas de contos quando o assustador Montgomery se apresentava, mas a princesa nunca lhe dava ouvidos, e fugia de sua vigilância para ouvir os segredos dos Três Reinos. Talvez não fossem apenas histórias, guardou para si aquele pensamento. E se alguns de seus contos fosse verdade, este assassinato seria apenas o início de um grande Jogo da Morte.
Em suas dez primaveras, essa foi a primeira vez que os olhos verde-oliva da futura rainha se banharam em um tom cinza como os dias de inverno.

– – -

Os raios de sol pareciam evitar o contato com os muros de WindCastle naquela manhã, deixando a penumbra livre para atacar o Castelo. Um frio repentino zombava da primavera que havia acabado de agraciá-los com o seu verde e seu desejado calor, levando tudo ao redor do reino parecer acorrentado ao assassinato de Jaddah. Os animais no celeiro cantavam uma nova e insólita canção, amedrontados por algo que os olhos e ouvidos de seus mestres não eram capazes de perceber. A atmosfera velava em seu próprio modo a alma do Guardião do Sul, que aguardava para ser abraçado pela terra que tanto cobiçou. Do alto da Torre Leste a pequena princesa observava a confusão que enchia o grande pátio do castelo. Carroças cheias de verduras transitavam para dentro dos muros, seguidas pelas peças enormes de carne que o carniceiro carregava com dificuldade. Não era assim que Katherine havia imaginado um funeral. Os rostos horrorizados dos servos não a deixavam esquecer da vida que tinha sido roubada sob o teto de sua casa, mas suas mãos agiam ligeiras em preparação para o que parecia ser um grande banquete. A menina questionou a Ama sobre a finalidade de tudo aquilo, e a velha se limitou a dizer que barrigas famintas e importantes iriam se juntar à mesa aquela noite. A fumaça das chaminés que aqueciam as casas da cidade se misturava com a neve que caía cada vez mais pesada sobre eles, tornando difícil a visão até mesmo para olhos tão novos como os dela. Foi o soar grave de tambores que a fez notar que os portões principais se abriam, enquanto uma enorme carruagem negra passava lentamente por entre eles. Na sua frente, um cavaleiro de armadura prata e brilhante carregava um estandarte de veludo azul, com uma serpente entrelaçada no centro. O vento o soprava com toda a sua força, fazendo o réptil ondular em suas bordas de fio de ouro. — Condessa Martha Rodgers — disse a Ama ao se aproximar da janela. — e seu filho, provavelmente.
De repente tudo voltou a ter o ar tenebroso trazido pela morte. Katherine se esforçou para espiar dentro da janela da carruagem, mas eles haviam parado ao lado da armaria, e um muro de pedras a impedia matar a curiosidade. O rosto de Jaddah lhe era tão claro como o rosto de seu pai, mas por mais que se esforçasse era inútil tentar se lembrar de ter encontrado a viúva durante toda a sua vida. Ouvia tantas histórias. Muitos diziam que ela vinha de uma Casa conhecida pelas suas ruínas e fracassos, outros contavam que o único motivo dela se tornar uma Condessa foi o filho que ela teve em uma noite de verão muito antes do casamento. Por essa ou aquela razão, a menina sabia que era o suficiente para mantê-la distante do radar dos nobres senhores da Corte. Não conhecia a mulher das histórias e tampouco lhe importava o que era verdade, mas nutria igualmente uma profunda pena pela sua perda.
Uma batida forte na porta a fez desviar os olhos dos recém chegados, e logo um dos guardas reais chamou pelo seu nome.
— O Rei deseja vê-la, princesa. — disse um homem robusto como um urso, sem tirar a mão do cabo de sua espada. Abriu espaço para que a menina passasse e deu alguma ordem para o seu companheiro ainda do lado de fora. Katherine não conseguiu identificá-lo, mas ouviu de longe os passos que se afastavam.
Yellen se mantinha ao seu lado, como a sombra que ela nunca conseguia se livrar. Amava a velha Ama, mas raramente conseguia alguns minutos à sós consigo mesma. Embora naquele dia tivesse agradecido aos Deuses pela sua fervorosa dedicação. Havia algo sombrio que rodeava os muros do castelo.
Na sua frente um dos guardas abria-lhes o caminho, enquanto outros dois, idênticos a ele, guardavam suas costas. Katherine se perguntou se havia algo a mais por trás do assassinato do Conde. Estavam todos muito inquietos e ela nunca havia visto tantos guardas a acompanharem por WindCastle.
A longa escadaria os levou direto à Sala do Trono, onde seu pai se acomodava em seu manto de veludo vermelho como o sangue, carregando a cabeça de um enorme dragão em fios de prata sobre o seu gibão. Katherine correu por alguns segundos quando o avistou, até Yellen a segurar pelo braço. — Uma princesa não deve correr — disse ela entre os dentes. E de relance podia ver o senhor seu pai encher o peito com uma gargalhada. Voltou a caminhar como se estivesse com as pernas endurecidas, ao gosto da Ama, e o minuto que levaram até o Trono lhe pareceu uma eternidade. Seu Rei lhe veio em encontro ao vê-la inclinar-se em uma reverência, agaixou-se e deu-lhe um beijo estalado nas duas maçãs do rosto. Katherine evitou olhar ao seu redor, envergonhada, sabendo que havia ali mais guardas assistindo àquela cena do que ela teria gostado.
— Ah, como está linda a minha filha! — disse em um largo sorriso, acariciando levemente a longa seda lilás que tocava o chão, pairando os olhos sobre a pequena tiara de prata em meio ao marrom claro dos cabelos da princesa. Tantos elogios em público de certo não lhe agradavam, mas deixou fugir um sorriso doce que agradeceu em silêncio ao carinho de seu pai. —…me lembra tanto a sua mãe.
Um comentário inesperado. Ele jamais falava de sua falecida esposa, e quando acontecia era sempre ao pé da cama da filha durante algumas as raras noites, enquanto lhe contava breves histórias sobre como a beleza de sua mãe era invejada por todos e de como a sua generosidade o transformou. Não sabia se o que ele estava dizendo agora era a verdade, mas ficou grata por lembrá-la mesmo que vagamente.
— Quero que conheça alguém. — continuou após um longo silêncio. Sua feição mudou completamente. O sorriso desapareceu de sua face sem deixar nenhum rastro, e uma sombra cobriu-lhe os olhos.
A menina olhou para a Ama, que encolheu levemente os ombros, tão confusa e curiosa quanto a sua protegida, e aguardou, assim como ela, que o Rei prosseguisse.
Com uma pequena inclinação da cabeça, James chamou os guardas que mantinham selado o porta do Grande Salão, trazendo consigo faces desconhecidas que passavam por eles.
Uma mulher coberta por um véu tão negro como a noite segurava o braço de um jovem rapaz que caminhava à cabeça alta ao seu lado. A viúva do Conde, pensou Katherine direcionando mais do que apenas os olhos em direção aos convidados. A fina camada de renda escondia o rosto da mulher, mas pela sombra que criava ainda era possível notar a juventude em seus traços. Seu filho estava tão bem trajado quanto o pai em vida, com seu gibão azul escuro que lhe realçava a cor cristalina de seus olhos. A serpente negra lhe cobria o peito, destacando-se em uma linha dourada que brilhava por todos os lados. Ela caminhava com a cabeça inclinada para o chão, mas em nenhum momento ele desviou sequer o olhar, fitando o Rei à sua frente. Sua expressão era indecifrável, mas o maxilar parecia tão rígido quanto o elmo prateado que trazia debaixo do seu braço livre. Embora não tivesse notado nenhuma lâmina na cintura do homem, Katherine sentiu que ele era tão perigoso quanto qualquer guerreiro ali presente. E com essa idéia conseguiu desajeitosamente destacar os olhos do rapaz.
A menina deu um passo discreto para mais perto da Velha Ama quando os visitantes os alcançaram.
— Vossa Graça. — disse com uma voz rouca o rapaz ao inclinar-se em sua breve reverência.
A senhora sua mãe soltou-lhe enfim o braço, levando as mãos cobertas por uma grossa luva até o véu sobre sua cabeça, revelando finalmente a sua face. Katherine não se havia enganado, era realmente bela. Bela e jovem para alguém com um filho que era quase um homem feito. Leves rugas marcavam os cantos de seus olhos, mas eram imperceptíveis quando se notava o sorriso gentil que lhe cobria os lábios. A pele clara lembrava o povo do gelo, o povo do Norte. Era o doce oposto de Jaddah, conhecido pela sua estupidez e temido pela sua brutalidade. A viúva não trazia em seu semblante o mesmo luto que carregava em suas vestes, e deu a Katherine a tranqüilidade para se aproximar do pai e abandonar a saia da Ama.
— Majestade. — inclinou-se a senhora e um leve beijo recebeu no dorso de sua mão pelos lábios do Rei.
— Entristece-me as circunstâncias de nosso reencontro, Condessa. Mas lhe ofereço o meu teto e minhas mais profundas condolências. — forçou um sorriso e olhou brevemente para o rapaz ao lado de sua mãe. — …para os dois.
— Vossa Graça é muito generoso. Somos muito gratos pela sua hospitalidade e a usaremos de bom grado após tantos dias pelas estradas. — inclinou novamente a cabeça, dessa vez brevemente.
Katherine ouvia as palavras de cortesia de ambos, sem dedicar mais atenção do que deveria. Seus olhos foram feitos prisioneiros do único filho do Guardião do Sul. Com o momentâneo temor esvaecido, o rapaz ainda parecia nem tê-la notado, pequena e muda ao lado do pai, mas ele certamente estava interessado em cada gesto e som vindos de seu suserano. A serpente sobre o seu peito se mantinha imóvel, e ela notou que seus pulmões estavam tão petrificados quanto o seu maxilar sob a barba mal feita que cobria-lhe metade do rosto. Os cabelos estavam desordenados, provavelmente pelo estreito elmo cinzento que carregava. E seus olhos, tão azuis como o céu de verão e ao mesmo tempo tão cristalinos quanto os rios que corriam entre as florestas do Norte, traíam o seu semblante duro e carrancudo de tal modo que era impossível negar.
— Imagino que esteja ansiando por um momento à sós com seu esposo. Não lhe tomarei mais tempo. — disse com a tristeza lhe cegando os olhos. — Quero lhe apresentar minha filha. Temo que não a tenha ainda conhecido.
— A Princesa da Inglaterra. — sorriu a viúva olhando para baixo à procura do pequeno rosto de Katherine. — É uma honra finalmente conhecê-la. — segurou o vestido e inclinou-se à sua frente tão delicadamente como uma gazela.
— Princesa. — disse o rapaz, fazendo o coração da menina saltar em sua boca. Lhe estendeu a mão até alcançá-la, dando um suave e doce beijo sobre a sua pele clara.
Era difícil saber o que sentia naquele momento, mas decidiu que não era medo. Agradeceu como a Ama lhe havia ensinado, jogando ao vento todas as suas boas maneiras àquelas pessoas desconhecidas, voltando em seguida para o seu estado absoluto de quietude.
— Se me permite dizer, Majestade, o rosto de sua princesa é tão belo quanto o de sua mãe. — comentou a mulher quebrando o embaraçoso silêncio. E pela segunda vez em um dia havia ouvido falar de como se assemelhava à falecida Rainha.
— Sim. Uma beleza indescritível. — concordou o rapaz ao sentir os olhos de sua mãe sobre ele. Não soou tão sincero como deveria, mas pouco importava à menina. Tudo o que ela mais desejava era poder retornar ao seu quarto e esquecer daquele estranho encontro.
— Meu Senhor, correndo o risco de parecer ingrata, gostaria de solicitar um minuto junto de meu falecido esposo o quanto antes. — disse com uma voz amável a viúva.
— Gostaria de ver também o assassino de meu pai, Majestade. Imagino que o tenha sob custódia. — retrucou o jovem em um tom tão audacioso quanto indelicado. E bem se sabia sobre a intolerância do Rei com falta de cordialidade em sua Corte.
— Temo desaponta-lo, meu jovem. — respondeu amargamente, dando pouca importância à insolência do herdeiro da Casa Hunt. — Minha guarda não foi capaz de me trazer a cabeça do infeliz que tirou a vida de seu pai.
— Meu pai vem de terras tão distantes à pedido de seu Rei e Vossa Graça não só permite que lhe seja arrancado a vida, mas também não sabe quem cometeu o ato? — disse levantando a voz. Os guardas que os havia acompanhado se aproximaram mais do que lhes foi ordenado. A velha Ama agarrou a mão da menina e se afastou de alguns passos. O terror ocupava o mesmo rosto que havia dado a Katherine a tranquilidade minutos antes.
— Richard! — gritou sua mãe. — Perdoe-o Majestade. Compreenderá que estamos cansados da viagem e a morte de meu querido esposo ainda está fresca para nós. — segurou o braço do filho no mesmo lugar onde suas mãos se encontravam antes, e voltou a se dirigir ao Rei diante de si, impenetrável pelas acusações.
— Não me agarrarei às palavras de seu filho. Conheço os efeitos que a morte pode ter sobre um coração despedaçado. — disse serenamente, chamando com um gesto de seus dedos os guardas prontos para o comando.
— Acompanhe-os até os aposentos onde se encontra o Guardião do Sul e deixe-os a sós.
— Sua generosidade me comove, meu Senhor. — disse a viúva tomando a mão do Rei contra a sua, selando a discussão com uma reverência que pareceu aos olhos da princesa um tanto exagerada, diferente da cordialidade que havia prestado ao entrar no Grande Salão.
O seu filho havia enterrado os olhos sobre o homem de manto vermelho, mas seguiu os passos da mãe como se nada tivesse acontecido. O tormento dominava o seu rosto e afundava seus olhos em um mar de escuridão que fez Katherine estremecer.
— Ama. — a chamou assim que os dois cruzaram a porta de entrada. — Leve Katherine para o seu quarto e não a deixe sair de lá até minha ordem.
— Mas pai! — lamentou a menina saltando do seu lado. — O senhor disse que eu poderia sair para ver a neve hoje.
— Não discuta comigo, Kate. — acariciou-lhe a bochecha. — E obedeça a sua Ama.
— Não tirarei meus olhos da princesa, meu Senhor. — respondeu a velha.
Como se fosse possível, pensou a menina cruzando os finos braços envolta de si a fim de se livrar da mão de Yellen. Sabia que era inútil ir contra a vontade do pai, e seria bem mais fácil para ela fugir quando ele tivesse certeza de que se encontrava enclausurada entre as quatro paredes de seu aposento. O Rei a deixou com a Ama e chamou Aslan, que havia acabado de entrar no salão. O velho confidente do Rei tinha um ar cansado e estranhamente agitado, e trazia consigo um pedaço de papel branco selado, como as cartas que Katherine via na Sala de Estratégia do pai. O Senhor do Norte as deixou e se entregou a um longo sussurro com o conselheiro, mas se certificou de que as duas já estivessem em direção à ala superior do castelo, seguido por seus guardas. Foi quando o olhar dele se afastou da pequena princesa, que a menina se aproximou de Yellen perguntando com a voz mais baixa do que de costume:
— Me foge o lema da Casa Hunt. Você se lembra, Ama?
— “No sangue de meus inimigos jaz a doce vingança.” — respondeu apoiando sobre o ombro da menina a sua mão nua.
E um leve arrepio ela sentiu novamente.


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