A Rainha de Espadas escrita por ForLoversOnly


Capítulo 3
Rattus Norvegicus


Notas iniciais do capítulo

Conheçam um pouquinho mais da história que levou Katherine ao Trono:



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Um era herdeiro do Império, o outro um bastardo.
E era assim que os dois filhos do Imperador eram conhecidos naquele tempo. Nascido de uma prostituta que lhe deu, além da vida, um sangue manchado, o menino de olhos cinzentos desde o primeiro choro aprendeu que o seu lugar nunca seria ao lado de seu pai. Os seus passos se confundiam com as sombras da sua história, sem deixar nenhum rastro ou lembrança. Sua pele clara se distinguia de seus cabelos negros, assim como o seu nome se destacava no meio da multidão. Weazar, o filho ilegítimo do Imperador. Quanto mais James conquistava seu espaço na Terra Inglesa, mais o menino era esquecido pelos seus fajutos bajuladores, que sabiam perfeitamente como torná-lo invisível aos olhos dos Deuses e do mundo. Jameson, o Imperador, não podia negar a sua presença, embora tivesse implorado aos céus que a criatura tivesse sido levada junto de sua mãe ainda no parto, mas podia mantê-lo o mais distante possível, a fim de fazer o próprio garoto duvidar de sua existência. Os servos tornaram-se a sua família, os animais rastejantes seus únicos e mais confiáveis amigos, enquanto o Imperador era visto apenas de longe, como um daqueles gigantes quadros que ele podia admirar sem nunca ousar a tocar. Seu outro filho, James I, o grande herege, nunca teve permissão de se aproximar do meio-irmão, nem mesmo ter qualquer tipo de notícias sobre a sua vida, o que depois de alguns anos o fez se perguntar se Weazar não fosse fruto da sua imaginação.
Mas com o passar do tempo o Império ganhou seu novo Monarca e então nada foi como antes. James herdou toda a riqueza e o poder de seu pai, mas a sua maldade não havia afetado o filho que a Inglaterra colocou no trono. Weazar podia finalmente sair das sombras, mas o gosto da liberdade não foi o suficiente para sanar a sua sede de vingança contra quem o renegou.

– – -

Assim como em Tudor e York, WindCastle havia recuperado a sua graciosidade. Os primeiros flocos de neve daquele ano caíam sobre a maior cidade da Inglaterra, cobrindo com seu manto branco o verde que há pouco coloria as terras do reinado. O céu azul anil estava agora escondido atrás de densas nuvens cinza que impediam a luz de alcançar seus infinitos campos. Os longos mantos de couro e lã cobriam as peles castigadas pelo vento gélido, e as lareiras aos poucos iam se acendendo dentro de cada casebre por entre as Vilas. Os guardas pareciam estátuas no alto da grande muralha que cercava a cidade, que recebiam com jóia ao lado de suas candeias a neve que sobre eles aos poucos se acumulava. A noite ia lentamente invadindo as ruas trazendo consigo, além da tempestade, um ar fantasmagórico pela qual era conhecia nos tempos de inverno, enquanto as poucas pessoas que arriscavam divagar pela cidade, tornavam para suas casas. Em um dos cômodos mais afastados do grande castelo de pedras negras, Rei James e seus conselheiros aguardavam pela chegada de seu irmão e o Conde de Tudor, ansiosos para assistir ao desfecho de uma promessa que há muito lhes foram jurada. Naquela noite, cinco dos seus guardiões estavam presentes na Pequena Sala, acompanhados de outros dois que velavam a única porta de acesso.
E a lua já estava alta no céu quando o Conselho se completou.

— Feche as janelas. — ordenou James ao seu servo com o intuído de cessar o vento cruel que invadia a sala.
Weazar se juntou aos demais membros em volta da mesa, deixando Jaddah para trás ao lado da bandeja de vinhos. Na carta de convocação não havia nenhum detalhe sobre o motivo da reunião extraordinária, mas o irmão do Rei sabia perfeitamente o que seria discutido. Pouco menos de uma semana atrás, o Conselho havia sido informado que o rumor sobre uma rebelião ao Sul estava se espalhando por todo o território. Já conhecendo as intenções ainda não declaradas e pouco pacíficas de Tudor, suspeitou-se subitamente de que tal ameaça era mais do que havia chegado aos seus ouvidos. Era impossível esconder a preocupação sobre uma guerra interna, o que levou o Rei a optar por uma abordagem direta, a fim de evitar as conseqüências que um ataque traria à sua coroa.
— Senhores, irei dispensar as formalidades. — respirou fundo aconchegando-se em sua poltrona de veludo negro, dando sinal para que alguns de seus guerreiros se posicionassem ao redor da saleta. Jaddah e Weazar trocaram um breve olhar, permanecendo indiferentes à proteção do Rei. O Conde se aproximou e se manteve sobre seus pés, distante o suficiente para ouvir o que o seu senhor estava prestes a comunicar. Então o Rei continuou.
— Imagino que vocês já estejam cientes sobre os rumores de um atentado à coroa que se originou há dias no Sul da Inglaterra. — interpretou o silêncio como um sim. — Mas talvez a parte que vocês ainda não conheçam é que hoje um dos meus arqueiros capturou o suposto comandante dessa traição.
Fez sinal para Aslan, que ao mesmo tempo se aproximou e apoiou sobre a mesa um punhal enrolado em um pedaço de linho velho. A pequena arma estava ainda coberta de sangue, mas o emblema era ainda visível; uma serpente rastejante em um círculo de prata, marca da Casa Tudor. Embora a reação esperada fosse completamente diferente, Jaddah permaneceu com o seu forjado ar superior, movendo apenas os finos lábios em forma de um leve sorriso.
— O que seria isso, Majestade? Alguma brincadeira de mau gosto? — perguntou enchendo a sala com uma gargalhada vibrante. Era notável o ar amedrontado que se escondia por trás da sua ridícula, embora necessária, atuação. Sabia que não sairia dali do mesmo modo em que entrou.
— Sabe o que é a parte interessante, Jaddah? — questionou James fixando os olhos no pequeno punhal. — O homem que o carregava nos confessou ser apenas o peão neste jogo, porém negou dizer a verdade sobre quem lhe havia ordenado a minha cabeça. — levantou o olhar primeiro em direção à Weazar, depois ao Conde. — E tirou a própria vida antes que eu tivesse a chance de persuadi-lo.
Jaddah suspirou aliviado, recompondo-se em uma forma menos desesperada. Deu uma olhada em sua volta, os guerreiros ainda permaneciam em suas posições, como se nem mesmo estivessem presentes ou escutado qualquer palavra, mas sempre prontos para qualquer comando. Ele enfim puxou uma das cadeiras que encontrou suas pernas trêmulas, segurou o punho de sua espada com firmeza e cruzando as pernas disse:
— Vossa Graça, o prometo que nada tenho a ver com tamanha traição. Jamais seria capaz de por em risco a vida do homem que me deu tudo o que de mais valioso possuo. Garanto-lhe que o culpado não viverá o suficiente para completar seus planos. — com uma sutil reverência selou o seu breve discurso, esperando que os anos de amizade e confiança fossem suficientes para cessar qualquer suspeita que o Rei tivesse a seu respeito. Mas o mesmo rumor não alcançou a todos da mesma forma e nem tudo o que o defunto havia confessado tinha sido dito naquela reunião. James ainda sentia o perigo aguçar os pêlos de seu braço. A inocência de Jaddah o impedia de ver a verdade sobre a importância que alguém como ele teria sobre a coroa.
— Prendam-no! — ordenou o Rei.
O Conde foi arrancado de seu assento por dois de seus guardas, que o arrastaram como se fosse tão leve quanto penas de ganso. Os olhos do homem suplicaram aterrorizados ao seu cúmplice, que despejava tranquilamente o vinho doce em sua taça vazia. Weazar sequer desperdiçou um olhar, mas o sorriso que cobria os seus lábios era por si só uma sentença de morte.

As quatro paredes da prisão de WindCastle retinham Jaddah longe do seu reino e de seus planos contra o Rei, que o mantinha sob constante vigilância, impedindo-o de ter qualquer contato com o mundo para lá das pedras negras. Com o passar dos dias, a notícia sobre a captura de um traidor percorria todas as quarenta e sete cidades sob o domínio do Rei. Mas nada ainda se sabia sobre a sua real identidade. O bastardo da Inglaterra e o restante do Conselho permaneciam enclausurados junto ao soberano à procura de respostas. James conhecia Jaddah desde os seus primeiros passos e se recusava a tirar a vida de um homem que considerava mais do que um amigo em base a acusações de alguém que nunca havia visto antes. Aslan e Cotter eram a favor de mantê-lo sob custódia até que uma prova de uma fonte mais segura os confessasse um justo julgamento, mas Eckard e Hal acreditavam que a suspeita já era suficientemente mortal quando se tratava da Coroa. James ouvia pacientemente tanto a defesa quanto a acusação, mas após três dias nada havia ainda decidido.
— O que lhe passa pela mente, irmão? — perguntou o Rei a Weazar notando-o isolado na parte mais escura da sala de estar. O homem parecia admirado pela nevasca que caía sobre os telhados de WindCastle e cobriam com sutileza o pátio que os rodeava. Um longo silêncio se deu antes que as palavras encontrassem a pergunta do seu senhor, mas ninguém, além de James, parecia se importar com a revelação que elas trariam.
— Morte, Vossa Graça. — respondeu, enfim, com os olhos ainda fixos no horizonte. A manhã cinzenta e pitoresca havia finalmente chegado, e era a preferida do bastardo que por tantos anos habitou sobre o frio castigante do Norte. Por poucas vezes se sentia em casa e tentou aproveitar ao máximo o raro momento.
— Mas que provas realmente tenho de que ele mandou o assassino? — parecia ter dirigido a pergunta à si mesmo, na esperança que a sua consciência o desse a resposta que esperava.
— Está tentando se convencer de que ele é inocente, Majestade. — Virou-se o irmão finalmente, encontrando os olhos cheios de suplica do Rei, que se mantinha imóvel sentado em sua poltrona.
— Sabemos que o homem é uma serpente, meu senhor. Não nega de certo o símbolo de sua Casa. — intrometeu-se Hal na discussão. — A pele dourada e os trapos do assassino condenaram a alma do miserável. — bateu a mão sobre a sua perna, balançando a enorme cabeça como se julgasse a atitude estúpida do morto.
— E se sabe bem que no Sul ninguém é mais adorado do que Jaddah. — replicou Eckard. — Nem mesmo Vossa Majestade. — ousou.
O Rei fitou o rosto barbudo do comandante como se fosse uma história que ouvia pela primeira vez. Em outro momento o orgulho teria despertado a sua fúria sobre Eckard, mas a sua cabeça já estava sendo consumida pela dúvida de uma decisão que deveria ter feito dias atrás. Neste momento as criadas entraram com as bandejas de pão e peixe, apoiando-as no centro da grande mesa de refeições, deixando que os Senhores a atacassem como abutres sobre carne fresca. James sentiu o estômago se revirar ao vê-los devorar toda aquela comida. A fome, assim como o sono e o cansaço, já não era mais sentida em seu corpo. Precisava se concentrar na sentença.
— Talvez ele seja mesmo culpado. — disse quase imperceptivelmente entre o barulho dos talheres batendo contra os pratos. — Mas como qualquer homem que essa Corte tenha julgado, merece ser ouvido. — completou em um tom mais forte.
Os homens famintos abandonaram a farta refeição, anuindo em concordância com a primeira decisão feita após intermináveis horas pelo Rei. Weazar, entre todos, era o único com os olhos arregalados. Sua pele pálida era agora tão clara como o leite e apesar do frio que os abraçava, era possível notar pequenos cristais de água salgada se formarem em meio a sua extensa calvície. O nervoso repentino transparecia pelo tremor ligeiro em suas mãos, que foram de uma só vez apoiadas sobre suas pernas debaixo da mesa. O bastardo limpou a garganta com um pouco de vinho e antes que o Rei se retirasse para ir ao encontro do traidor, ele falou:
— Lhe dará o benefício da dúvida, caro irmão? — seus olhos cinzentos estavam mais escuros do que a noite. Adotaram uma sombra negra que aos poucos ía-os transformando. O homem se levantou lentamente, evitando qualquer vacilo que gritasse aos quatro ventos o seu medo. Aos poucos se aproximou do seu senhor, a passos pesados como o seu corpo gigante, que marcavam o piso úmido da sala. James o seguiu primeiro com o olhar, mas o encontrou na metade do caminho, apoiando sua mão sobre o seu ombro direito. Foi necessário erguer o braço bem mais do que ele teria suposto. Weazar sempre foi maior que seu Rei?
— Darei a ele a chance de se explicar, irmão. — franziu as sobrancelhas deixando seus pulmões se encherem com o ar gélido da sala. — Assim como a daria a você se o acaso pedisse.
Weazar o olhou perplexo, e o passo que deu para trás afastou de si a mão de James. O bastardo encontrou do lado de fora, pela janela que admirava minutos antes, a segurança que nunca encontrou dentro de si. A neve caía mais forte e o branco intenso escondia o que antes podia ser distinguido entre casas, estábulos e armarias. Nada se via e o silêncio era pela primeira vez perturbador.
— É demasiado generoso, Majestade. Mas peço-lhe que me deixe interroga-lo…para a sua segurança. — disse voltando a encontrar o rosto do meio irmão. — Não permitirei que Vossa Graça se aproxime daquele animal.
James recebeu de braços abertos aquele pedido. Nunca havia notado na voz do irmão nenhum tom de preocupação. Era estranho para seus ouvidos, mas imensamente acolhedor. Encolheu os ombros e abriu um largo sorriso, mostrando seus dentes envelhecidos como resposta ao que havia acabado de ouvir.
— Que assim seja. — disse dando dois leves tapas de aprovação no braço do caçula.
E o medo que o sufocava segundos antes havia abandonado o seu corpo, deixando as sombras retomarem seu devido espaço.

Ninguém conhecia melhor aquele castelo do que o filho ilegítimo do antigo Imperador. Weazar poderia se tornar apenas uma sombra quando quisesse, atravessando muros secretos e túneis abandonados dos quais ninguém jamais ouviu falar. A sua amargurada infância era algo que ele procurou durante muitos anos esquecer, mas o que aprendeu com cada dia vivido como o bastardo renegado da Inglaterra, era o único e mais valioso tesouro que possuía. Algo que ninguém poderia lhe roubar. Tudo o que precisava fazer agora era livrar o caminho até a coroa de todo o empecilho que o pudesse atrasar ou lhe custar a cabeça. Era hora de se encontrar com o Guardião do Sul.
A escadaria parecia não ter fim. Era essa a única passagem para a prisão que os olhos dos homens de WindCastle conheciam. Em sua forma espiral transformava cada degrau em uma longa viagem até a morte, de onde nem mesmo os fantasmas poderiam voltar a ver a luz do sol. As paredes da masmorra eram cubos de gelo no inverno ou verão, e de dentro não era possível ouvir nenhum ruído além do eco que até a mais leve respiração criava em seus extensos corredores. Mas não era por aquela entrada que Weazar pretendia encontrar o prisioneiro.
Do lado oeste do Castelo, nos limites da Grande Muralha, havia uma torre. As suas pedras cinzentas já não abrigavam nada além de pássaros que buscavam por refúgio e os ratos que fugiam do machado afiado do carniceiro. Era entre tantas a mais alta, embora ninguém parecesse notar a sua presença. Weazar se lembrava das longas noites passadas sobre o topo da torre, de onde podia contemplar as estrelas e manter o mundo fora do seu alcance. Há muito não visitava um de seus esconderijos favoritos, mas ainda se recordava da única porta de entrada e suas duas saídas. E era uma delas que o levariam ao seu destino.
A chuva caía fina quando ele atravessou o pátio em direção à torre, colorindo a neve branca de um marrom escuro que manchava a bota de couro em torno dos seus largos pés. Os comerciantes já haviam encerrado o expediente, e se dirigiam para suas casas a fim de esquentar a barriga com sopa quente. O silêncio invadia a cidade na mesma rapidez que a escuridão os abraçava. As sombras iam alastrando o esconderijo de Weazar por toda parte. Já estava invisível quando atravessou a velha porta da torre.
O ar pesado de putrefação tornava impossível respirar, mas poucos minutos se passaram até que ele encontrasse a passagem que o levaria direto aos corredores da prisão. As trevas eram a sua companheira aquela noite, embora pudesse sentir uma estranha presença à medida que ia se aproximando das grades onde o Conde estava sendo mantido. Talvez sejam espíritos, pensou aumentando a velocidade. Tropeçou em alguns ossos pelo caminho, mas era o frio que o incomodava. E lá fazia frio. A sua respiração ofegante jorrava nuvens para fora de sua boca, que ele apenas conseguiu distinguir quando uma luz fraca apontou no final do corredor. A escuridão era de longe o aconchego mais familiar que ele conhecia, mas até mesmo para o menino da noite as sombras que encheram o lugar pareciam assustadoras. A grande parede de pedra terminava em alguns metros a sua frente, seguida por barras de ferro maciço que ele deduziu fazer parte da prisão que mantinha o traidor da Corte. Seus passos tornaram-se lentos de repente, e ele forçou os olhos em busca de algum escravo ou soldado que se encontrasse adiante. Nenhum barulho se ouviu, e o único que ele conseguia ver agora era Jaddah agachado ao lado de uma cama de palha.
— Quem está aí? — perguntou o prisioneiro levantando-se bruscamente. — Quem está aí? — insistiu quando não obteve nenhuma resposta.
Pousou sua mão sobre a sua cintura, onde dias atrás sua espada se encontrava, mas nada sentiu além dos ossos afiados sob o pano fino de lã que os cobria. Seu coração disparou e suas pernas trêmulas vacilaram. Deu alguns passos para trás até encontrar a parede fria em suas costas e pediu aos Deuses para que não fosse outra aparição. A sombra o alcançou primeiro do que Weazar, que logo atrás vinha se aproximando a passos arrastados, curioso pelo o que encontraria jogado naquela cela. O sorriso malicioso ocupava toda a sua face, exaltando os olhos grandes arregalados pela excitação.
— Bastardo. — soou quase como uma pergunta. Após vários dias sem comida e apenas com a água que conseguia arrancar do gelo das paredes, ele havia aprendido a não confiar nas histórias que a sua mente lhe contava. Aguardou com a paciência que lhe era possível que o homem a sua frente se pronunciasse ou evaporasse, como tantos outros antes dele o fizeram. Os fantasmas do seu passado. E foi quebrado um minuto eterno quando a sombra confirmou o que ele esperava.
— Vejo que é mais forte do que eu imaginava, Conde. — disse Weazar ao se aproximar da grade. A luz fraca da candeia criava sombras negras como a noite em seu rosto, desfigurando a face comprida e realçando seus olhos cinzentos que, como duas luas cheias, fitavam o homem miserável a sua frente.
O prisioneiro sentiu seu corpo rígido aos poucos relaxar com o passar dos segundos, embora uma voz aguda lhe sussurrasse em sua mente que aquele não era o momento para agarrar-se a sua ingênua confiança. Seus pés lentamente abandonaram a chão frio que os castigava e o levou até as barras de ferro que o separavam de seu velho confidente. Suas mãos escondidas nas longas mangas do pano fino manchado que o cobria, foram aos poucos se desvendando, alcançando o metal frio que o mantinha preso em sua gaiola.
— Imagino que não tenha sido a sua consciência a lhe trazer aqui. — disse ignorando seu comentário.
A sede transformava em brasas as palavras que saiam ardentemente de sua garganta, mas ele se esforçava para manter a postura de Guardião do Sul. Embora esse título já não o definisse mais. Weazar mantinha-se calmo, com uma respiração tão tranqüila como as que enchiam seus pulmões durante o sono. A aparência selvagem de Jaddah e ar pútrido que queimava suas narinas pouco lhe disturbavam. Mantinha o olhar duro e uma linha reta nos lábios, tão frio como a noite que agora velava sobre WindCastle. O rastejar das criaturas que lhe faziam companhia ecoava entre os corredores, e ele se lembrou de que não estaria só por muito tempo. Devia se apressar.
— Sempre reconheci em nosso Rei sua inigualável força. — disse em uma voz baixa que foi o suficiente para os ouvidos de Jaddah a receber. — Mas sempre o repreendi por deixar suas emoções dominarem suas atitudes.
Ele fez uma breve pausa levando o olhar para a candeia que perdia vagarosamente a sua intensidade. Voltou a encontrar o rosto do condenado com um sorriso quase imperceptível em meio aquela escuridão.
— Ele irá generosamente lhe conceder a oportunidade de se defender. — disse enfim em um tom pouco mais grave imerso em puro desprezo.
O Conde apertou os dedos contra as barras a sua frente, tocando-as com a pele flácida de seu rosto. Um sorriso amarelo lhe cobriu a face por baixo da longa barba que a escondia, libertando um grito de jóia e alívio que fez Weazar olhar em direção a entrada dos homens de James sobre as escadas. Um longo momento se passou até que ele tivesse certeza de que continuavam sozinhos, voltando a se concentrar no homem cheio de esperanças a sua frente.
— Sabia que o bom e velho James Houghton não me deixaria virar comida de rato neste cubo de gelo. — respondeu Jaddah cheio de excitação. — Quando poderei vê-lo?
Fitou o rosto de Weazar, que se aproximava lentamente de alguns centímetros. Era possível notar as marcas profundas envolta dos olhos, como se eles tivessem sido engolidos por um abismo negro. Seu hálito emanava um odor forte de rum, mas Jaddah inspirou profundamente agradecendo aos céus por um cheiro familiar em meio a tanto horror. Os lábios de seu aliado eram no início uma língua reta comprimida, que aos poucos foi mostrando os dentes brancos como a neve em um sorriso largo e maldoso. O Conde sentiu um arrepio subir-lhe a espinha, diferente de todos os que o frio lhe havia causado desde o primeiro dia naquela cova. O medo o assombrava e nada restava da confiança que há pouco sentia pelo o homem que deveria salvar-lhe a vida. Ele quis correr para bem longe, mas logo se lembrou do metal e o labirinto de rochas que o cercavam. Então suas pernas estremeceram e ele sentiu uma pontada fria na barriga vazia, lhe embrulhando o estômago. Suas mãos abandonaram as grades e seu rosto se afastou tão rápido quanto as batidas do seu coração. Mas antes que pudesse dar algum passo, um golpe súbito o trouxe de volta ao mesmo lugar. A ferrugem das barras riscava o seu rosto, criando linhas vermelhas que se destacavam em meio a pele pálida. Nenhum som escapou da sua boca, mas por dentro conseguia ouvir o barulho estrondoso que sua garganta tentava soltar. Nunca havia sentido tanto medo em toda a sua vida. Nem mesmo os dias trancado naquele cubo, sem a luz do sol ou o canto das aves, o tinham aterrorizado daquela forma. Era esse o rosto da morte, pensou. O medo o mantinha seu refém e o homem que o segurava contra as barras parecia se nutrir do desespero que jorrava de seus olhos. Foi então que uma luz diferente cruzou-lhe a face. Não era amarela como a candeia que lhes dava a visão, mas era bem mais forte e nítida. Um rastro de luz cinzenta-azulada percorreu a forma da lâmina do punhal que Weazar carregava agora em uma de suas mãos, e Jaddah pode sentir o frio cortante que dela vinha quando foi-lhe acariciado a garganta. Perguntou-se se não era tarde demais para suplicar misericórdia aos seus Deuses, mas o pensamento logo o abandonou quando uma dor cruciante o trouxe de volta à realidade. Ele iria morrer. O homem em quem havia confiado o traiu e agora tinha sua vida escorrendo na ponta de seu punhal. Todo o poder que buscava parecia não ter importância agora. Weazar percorreu seu pescoço com o aço, deixando-o repousar sobre o seu peito esquerdo e então sussurrou com a mais tranqüila das vozes:
— Diga a quem te receber do outro lado que ainda tenho trabalho a fazer por aqui. — deu uma risada sufocada que nunca atravessou a sua boca.
E a lâmina perfurou em um único golpe o seu peito.
O sangue escorria pelo gume afiado, banhando a mão do mercenário enquanto ele a retirava lentamente do coração que aos poucos ia se acalmando. Weazar soltou os trapos que mantinham o homem sobre seus pés e finalmente ele conseguiu encontrar o chão, se afogando em uma poça de sangue quente que escorria vivo de seu corpo.
— E o rato matou a serpente. — disse o bastardo se perdendo nas sombras.


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Notas finais do capítulo

No próximo capitulo nossa Rainha estará de volta!



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