Fire & Desires escrita por Pear Phone


Capítulo 4
Tears


Notas iniciais do capítulo

Bom, o capítulo passado se chamou Fears e esse Tears, sacaram? Não sacaram? Enfim, esse também ficou grandinho e compensa a incrível demora.



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Eu ainda estava tentando descobrir o que ele queria dizer com "você é diferente das outras", olhando pro nada como uma idiota faria. E, óbvio, em qualquer momento ele perceberia a minha atenção na parede.

— O que aconteceu, Sam? Está bem?

— Nada... — hesitei. — Você não acha que tudo isso é coisa de louco?

— Como assim?

— Eu e você... Eu deveria te odiar desde o primeiro momento em que te vi, como faço com todos os outros.

— Sam, você não precisa ser rude com as pessoas.

— Eu não queria, Freddie, mas elas são más comigo. Elas sabem que eu não tive uma infância saudável como a delas e vêem isso como forma de me magoar.

— Nem todos sabem do seu passado.

— Mas é evidente: meus pais nunca apareceram, eu não me importo com nada que acontece no mundo, sou insensata e arrogante... e mais outras trocentas coisas.

— Não te vejo como insensata. Você é mais sensata que todos eles, eu juro.

Ele não podia estar falando isso só pra me ver bem.

— Sério? — perguntei.

— Você não tem medo da vida. Se tivesse, não estaria vivendo como vive. — Ele me olhou de relance e voltou a focar no piano. — Você é única e não deveria estar chorando por isso.

Agora esse babaca estava me emocionando — isso porque eu o conhecia havia... três semanas? Queridas lágrimas, o que faço pra acabar com vocês?

— Eu não suporto ver você chorar — ele disse antes de envolver, mais um vez, seus braços no meu corpo um pouco timidamente.

— Não estou chorando por isso — hesitei —, nunca pensei que alguém pudesse se importar comigo.

E, realmente, eu sempre quis me sentir importada.

Era uma quarta-feira de verão, o dia estava quente e ensolarado. Eu o admirava da janela com os olhos marejados pelo sol, ou não. Lá fora, as outras crianças brincavam felizes na grama, mas nunca me convidavam para fazer parte de algum momento como esse. Elas me viam como a Samantha Puckett medonha, estranha e agressiva que não tem pais como todos os outros "normais". E diziam o tempo todo que eu não poderia fazer parte dos grupos ou ser amiga de alguém... porque eu não tinha o perfil adequado. Meus primos sempre riam quando Grace me trancava no quarto e mandava eu passar o dia todo lá, por ter me comportado mal. Nenhum deles me confortava ou perguntava se eu estava bem.

Nunca.

Eu nunca considerei de verdade minha tia-avó, a chamava pelo simples nome "Grace" e nada mais. Eu não podia me abrir com ela ou conversar sobre as atividades ou brigas da escola, ela sempre ressaltava que só cuidava de mim por ter um pequeno sentimento de pena. Além disso, adorava dizer que eu não era sua filha e não tinha direito ou opinião sobre as coisas que ela ou meus primos faziam na casa. Eles não viam que eu era apenas uma criança com sentimentos. Eles eram egoístas.

Ela sempre soube da minha ligação infernal com o fogo. Todas as vezes em que eu me comportava agressivamente com alguém, ela acendia uma vela ardente no meu quarto e me fazia olhar para o objeto por horas. Me trancava e saía, com um sorriso perverso no rosto. Eu sentia dor e reclamava, gritava e dizia que estava com fome, mas ela dormia despreocupada com minhas vontades. E, todos os dias, passou a me torturar com a mesma arma.

E, naquela mesma quarta-feira de verão, aproveitei a oportunidade de estragar ainda mais o meu dia, já que minha tia-avó não estava em casa. Corri pelas escadas que me faziam lembrar de cenas sombrias e aterrorizantes, liguei o som do rádio em uma orquestra angustiante e ergui as mangas do suéter que usava após andar até o balcão da cozinha. Naquele dia, apelei para medidas drásticas: peguei qualquer objeto cortante e enfiei na minha pele sem visar consequências. Depois vi o imenso corte e continuei fazendo o mesmo, continuamente.

As lágrimas se misturavam com o sangue e eu lembrava que era só uma criança. Uma criança traumatizada.

Mas, naquele mesmo dia, Grace descobriu que eu havia me mutilado. Eu tomei um banho e peguei uns curativos na gaveta do grande quarto — que antes pertencia aos meus pais — mas nada adiantou. Ela ameaçou que iria me internar em um manicômio e quase o fez. Porque, naquele mesmo dia, eu me permiti ameaçá-la também.

Os anos passavam e, quando completei treze anos, não vi saída. Continuava me mutilando desde então, e não só me mutilando, eu também cheguei a me envolver com álcool, drogas e coisas incrivelmente mais pesadas que facas. Eu cheguei a descobrir como usar um revólver, depois de pesquisar sobre isso. Era só um estágio de depressão que acabaria dentro de um ano como um dos psicólogos que visitamos havia alertado. Foi a primeira vez em que Grace viu a necessidade de que eu me consultasse... Ela era uma tia-avó desnaturada.

E, então, pouco mais de um ano atrás, o meu aniversário de dezesseis anos chegou. Eu fiz a pior das coisas que poderia fazer. Eu coloquei um tipo de veneno em uma das bebidas de Grace e ela o bebeu. Dois meses depois, a morte aconteceu, constatada por um colapso. E pensar que a minha depressão poderia ser tão corrosiva aos demais me fez viver o resto de meus dias aceitando a solidão. Mas, não, eu não havia a matado, o veneno não surtiu efeito. Porém, eu ainda sentia como se tudo fosse minha culpa.

Alguns até mesmo diriam que ela havia morrido de velhice.

— Por que está fazendo isso? — perguntei ainda abraçada com Freddie, que se afastou e beijou o topo da minha cabeça antes de me encaixar novamente em um abraço.

— Porque eu sei o que você está passando.

— E por que sabe? — perguntei entre soluços.

— Porque eu nunca conheci meus pais.

Nesse momento eu arregalei meus olhos e parei de pensar apenas nos meus problemas na transição da infância para a adolescência. Eu comecei a pensar que ainda não havia lhe dado oportunidade de dizer alguma de suas experiências. Eu comecei a pensar nele.

— Você não tem pais?

Eu receava que deveria desfazer a aproximação em que nos encontrávamos, mas ele me apertou ainda mais contra si.

— Não, Sam. Eu passei minha infância inteira em um orfanato, privado do mundo.

Droga, Samantha, ele estava abrindo o coração e você não sabia o que dizer!

— Eu sinto muito, Freddie. Mas, não se preocupe, eu estou aqui com você.

E, dessa vez, ele ousou se afastar do meu corpo.

— Você pode contar tudo o que quiser — eu lhe dei certeza.

— Sempre me perguntava o porquê de meus pais terem me deixado. Todos os meus "colegas" do orfanato diziam barbaridades sobre isso, já que estavam acostumados com essa questão. Mas, quando eu tinha seis anos ou menos, acreditava que eles iriam voltar ou que estavam apenas me fazendo uma surpresa. Quando eu cresci, passei a perceber que essa fantasia era uma coisa infantil que eu persistia em criar. Eles nunca voltariam e nunca voltaram da forma que eu sempre sonhei. — Ele caminhou em círculos e voltou a se sentar ao meu lado. — Mas, além de toda essa decepção idiota, várias outras coisas aconteceram. Um dia, em uma aula de história ou sei lá, eu ouvi notas de alguma canção tocada em acústico e me vi hipnotizado pela música de todas as formas. Eu ensaiava as notas no dormitório único, à noite, quando era seguro. Eu não me preocupava com a escola, já que eu era o melhor dos alunos e sempre arrumava uma forma de conseguir boas notas sem me esforçar, então também matava aulas por essa razão. E ninguém desconfiava. Eu entrei num tipo de depressão.

— E isso não é bom? Você se tornou o pianista que é hoje, não?

É definitivo que não sou boa em conselhos...

— Mas todos me julgavam por isso, Sam.

— Eu juro que te ouvir tocar deixar qualquer mulher excitada.

O que foi que eu disse? Universo, não me controle!

— Bom, eu sei que você ficou excitada, mas não era bem isso que acontecia. — Ele disse sarcasticamente e eu revirei os olhos.

— Elas eram lésbicas ou o quê?

Ele riu com o meu comentário.

— Nunca pensei na hipótese — hesitou —, mas, como disse, não era bem isso. Eu tinha menos de dez anos!

— Qual é o problema? Eu já estava desenvolvendo hormônios com essa idade.

— Sam...

— O que foi? Nessa época eu já...

— Sam, isso é sério!

— Desculpa.

— Então, como eu descrevia, isso não foi um segredo por muito tempo. Elas diziam que o meu comportamento repentino era anormal e que eu era um garoto... estranho. Mas não estava falando das garotas, e sim das pessoas em geral. A própria diretora da escola conversou com o proprietário do orfanato sobre a possibilidade de que eu fosse uma criança "especial", sabe? Só porque eu arrumava uma forma de me expressar quando tocava.

— Por que não mandou eles se foderem? — disse indignada.

— Porque eu não sou tão corajoso quanto você. Eu... ainda era muito sensível pela perda de meus pais e isso me fazia inseguro. Eu sempre quis me sentir melhor do que eu me sentia e agir de uma forma mais autoritária. Eu sempre me senti um covarde sem poder mudar isso.

— Olha, estamos nos abrindo aqui, nós já choramos e já nos conhecemos como deveríamos. E, só pra você ter certeza... Você é muito mais do que pensa.

— Você, definitivamente, não é como as outras.

— Se eu fosse como as outras não estaria consolando um pianista em um cemitério, estaria fazendo qualquer coisa mais produtiva — ironizei.

— Não faça isso comigo.

Ele fingiu espanto e mágoa, mas aqueles olhos castanhos apontavam a emoção que ele estava sentindo.

Silêncio.

— Obrigada, Freddie. Obrigada por se importar comigo.

Afinal, não era tão difícil agradecê-lo.

— Vem aqui, loira. — Ele beijou a minha bochecha suavemente.

Como eu poderia ignorar o fato de que os lábios dele haviam entrado em contato com o meu rosto? Não quero parecer uma iludida, mas isso significou alguma coisa pra mim e tenho quase certeza de que não deveria.

— Ei, eu tenho um teste amanhã e não estudei nem um pouco. Sabe, já que hoje eu descobri o seu ex lado nerd, pode me ajudar?

— Claro. — Ele sorriu.

[...]

Coloquei as chaves do apartamento na cômoda de madeira e concluí que Carly estava tomando banho desde o momento em que ouvi o barulho do chuveiro ligado. Ela não ouviu quando eu empurrei a porta e também não a trancou. Antes que ela saísse do banheiro, arrumei um copo para a rosa roubada que Freddie havia me dado e deixei ali em cima.

Decerto, toda vez em que a olhasse, iria lembrar dele.

— Sam? — um indivíduo me encarou enrolado na toalha.

— Boa tarde!

— Não finja que está tudo bem. Onde estava? E o seu tornozelo?

— Como sabe do meu... — Encarei meu tornozelo enfaixado e logo desconfiei de como ela havia deduzido isso.

— O que aconteceu, Sam?

— Nada, Carlotta!

— Não fuja. — Ela corria atrás de mim, segurando a toalha no corpo.

Corri mais um pouco e continuamos nesse ritmo como duas loucas. Os passos já desagradavam os moradores dos apartamentos vizinhos, mas apenas ignoramos as reclamações.

— Tudo bem, eu vou contar. — Me dei por vencida. — Eu caí da escada no horário das aulas.

— Você caiu de verdade ou de propósito para não fazer o teste?

Ela me conhecia mesmo!

— É... digamos que parte foi verdade.

— Samantha Joy Puckett! Vá estudar agora e trate de sentar na cama. — Ela tentava simular uma voz autoritária.

— Por que não vai se vestir? — disse a fazendo corar.

[...]

— Então você já estudou mesmo? — Carly interrogou enquanto aconchegava-se na cama lendo um de seus romances.

— Sim.

— Eu sei bem o que esse "sim" quer dizer.

— E o que quer dizer?

— Que não!

— Mas é verdade, eu estudei.

— Como pode ter estudado se passou o dia fora?

— Como pode ter certeza de onde estava? Passei o dia na biblioteca — menti.

— Vou confiar em você, pela primeira vez.

Eu estava mentindo por uma boa razão. Eu nunca me permiti contar todo o incidente de meus pais para a morena, ela era inocente e talvez bondosa demais para entendê-lo.

— Por que fica lendo esses livros sem fundamento?

— Ah, Sam, se você se apaixonasse iria entender o quão admiráveis eles são.

— Pois, para mim, não existe nada mais errôneo do que se apaixonar por alguém.

E, com certeza, seria mais que errôneo se apaixonar por um pianista. Mas, não, ela não precisava saber de nada.

— Ei, você não é capaz de amar alguém! Não posso discutir sobre isso com pessoas inexperientes.

Por acaso ela era uma prostituta pra ser "experiente"? Carly, Carly...

— Eu sei o máximo que uma pessoa deve saber: nada.

[...]


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Notas finais do capítulo

Reviews? Agradeço a todos, nunca deixem de dar suas opiniões boas ou ruins, ambas têm o mesmo valor e serão bem recebidas.

OBS: Respondo todos.