Fire & Desires escrita por Pear Phone


Capítulo 24
Magnificence


Notas iniciais do capítulo

Oi, me desculpem e FELIZ DOIS MIL E QUINZE PRA TODO MUNDO QUE AINDA LEMBRA DA MINHA EXISTÊNCIA E DA EXISTÊNCIA DE FOGO E DESEJO!!!!!!!!
Eu amo vocês, sério, me desculpem pela demora, sério, é muito incontrolável, sério, minha irmã não faz ideia de que eu tô pegando o wifi do celular dela pra conseguir postar isso que eu passei escrevendo quase a viagem inteira, sério.

Não faltam 89247093570257 capítulos pra fic acabar, aproveitem, o máximo que eu dou até o grande final são... quatro? Ou cinco? Ou um? Depende do tamanho deles, eu prometo ser mais rápida e ágil por quem ainda se dá o trabalho de acompanhar. Nada de abandonar, ok?

O capítulo ia se chamar Black Beauty, que é uma música da fabulosa Lana Del Rey, mas na letra tem "Magnificência" e eu achei descrever melhor a situação. Hm... tirem suas conclusões, não avancem contra mim, apenas sejam pacientes. E APROVEITEM O PRIMEIRO DIA DO ANO.



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— ­E você se arrepende? — ele indagou. Eu suspirei.

Não respondi. E nem sequer ruído respondeu por mim. A pergunta não seria repetida, receava que não. No meu caso, o faria por orgulho, mas o pianista sempre teve plena certeza de que eu só responderia imediatamente caso não considerasse a questão importante o bastante. Se eu demorasse, então nunca era necessariamente por incômodo ou por alguma outra alternativa que insinuasse a possibilidade de ele estar me pressionando psicologicamente... talvez por vontade ou porque preferia assimilar e depois despejar as palavras todas de uma maneira que não soasse grotesca. Que soe no mínimo sutil, como tinha prometido para mim mesma em relação à minha companheira domiciliar. Mesmo que fosse o contrário de sutil, mesmo que eu estivesse tentando, esse não era o único obstáculo entre minhas conclusões e ele.

Se me arrependia de passar uma noite inteira acordada esperando a aurora? Não, claro que não. Mas não estava fazendo tudo aquilo simplesmente para enxergar o primeiro raio de sol que brotasse e atravessasse as cortinas da janela fechada, através da qual enxergaria só se deitasse na cama ao lado, na cama de Carly. Obviamente, contar sobre o encontro que poria em fim o anonimato daqueles panfletos dificilmente atormentava meu subconsciente: o mesmo encontro que, por acaso, eu faltaria. E muito menos estava desconfiada de que o remetente seria tão capaz a ponto de me fazer se surpreender com a visita ao invés de simplesmente se preparar para ela.

Mesmo que me perturbasse, eu não ia incluir o pianista nisso de nenhuma maneira aparente e nem deixava exposto, durante o caminho da nossa conversa, algo que projetasse um certo indício do que se passava no meio externo. Acontece que existiam milhões de dúvidas por trás do percurso na linha tênue em que caminhávamos. Essa, a linha prestes a arrebentar, era a mesma prestes a nos separar: um voltaria para o início e o outro seguiria em frente, buscando o fim.

— Eu sou uma coruja, Freddie... — Ele virou de lado e ficou me observando respirar e piscar para o teto. — E se você tem dúvidas sobre isso, então não deve me conhecer tanto. Eu sou uma coruja.

— Você pode até ser uma coruja — seus lábios se mexeram para começar a pronunciar a frase e eu pude processar que o hálito dele pela manhã nunca tinha sido tão mau assim, nem mesmo antes daquele aroma de café forte começar a pairar por ali da forma que já tinha me acostumado — mas é transitório.

— E com transitório você quer dizer...?

— Temporário. Nada com você é efetivamente fixo, coruja. — Ele se aproximou e tirou os fios de cabelo que atrapalhavam minha visão ainda direcionada ao teto, beijando meu rosto. — E você é uma coruja bem preguiçosa.

Em seguida olhei nos castanhos que faiscavam e era bem, bem diferente de quando ele não me olhava de volta. Eu podia sentir que havia... eletricidade.

— Sou mesmo, e daí?

— E daí que eu não sou otário, Sam. Eu sei que você ficou pensando no que me contou ontem sobre aquilo.

— Como se "o que eu te contei ontem sobre aquilo" explicasse muita coisa e justificasse o fato de você não ser otário.

— E nessa má justificativa que você apontou, a moral é...?

— Que você é otário, sim. É otário, não compreende que o motivo de eu não ter dormido é um só.

— E qual é, já que eu sou otário demais pra descobrir por conta própria?

— Não é você, logo não diz respeito a você. Eu não vou dizer, pianista.

Pude vê-lo quando suspirou e pareceu irritado por eu mostrar que não tinha tanta confiança assim nele.

Acabei rindo de sua decepção, usando meu senso cruel e impiedoso, mas era fraca demais e sabia que contaria cedo ou tarde. Porque, sim, era impossível não confiar naqueles olhos. Eu confiava neles. Confiava.

— É seu direito não contar. Mas quero que responda minha pergunta, ou nada feito. — Transpareci uma expressão curiosa, meio que para despistá-lo daquilo de se arrepender ou não se arrepender.

— Eu já respondi, sim. São umas cinco da manhã... — Evitei encará-lo quando fingi não ter entendido.

— Sam, não fui programado cientificamente com o propósito de repetir perguntas. Ou você fala sério, ou eu...

— Você o quê? — Quase gargalhei por dentro, embora por fora mascarasse o riso forçando uma reação assustada.

— Eu sumo de vez.

— Não sou eu quem vai passar fome no final das contas. Quem daqui é o morador de rua mesmo?

— Eu tenho mais do que você pensa.

— Tudo bem. E quem é o sequestrador, saqueador de cenários para recitais e aproveitador de cemitérios ligeiramente abandonados?

— Em minha defesa, eu não saqueei recital nenhum!

Estava sendo sarcástica mesmo. Ele, seguindo o ritmo, não transparecia seriedade alguma. Aquele piano não podia ser uma dádiva caída do céu, isso se o pianista ao menos tivesse religião.

Céus e mares se passaram. Ondas e correntes de ar.

— Depende. Acho que existe um resumo de tudo que fiz até hoje, e isso também resume meus arrependimentos. Eu me arrependo de ter sobrevivido àquele incêndio. Eu me arrependo de ter sido a razão pela qual pessoas maravilhosas, sensatas e cheias de positividade não estão aqui... e também me arrependo de não ter honrado o que podia por elas.

Com "pessoas" minha intenção não era incluir Grace... não era.

— Eu não sei por que céus você acabou de dizer isso, Sam. — E eu não entendia por quê, em nome do Universo, ainda aguentava as objeções dele. Respondi a pergunta e ainda não fui clara ou objetiva na medida exata?

Minha paciência foi carregada brutalmente, arrastada por uma correnteza forte. Ela se dividia, fragmentada. E depois ia completando o percurso na forma de ondas, uma após a outra, já estava longe.

— Porra, Freddie... Eu respondi essa droga de pergunta da forma que mais pareceu sóbria!

— Mas nunca estabeleci critérios pra você responder, não disse que tinha que partir de uma iniciativa sóbria ou coisa dessa. E eu não falei sobre quando éramos crianças, Sam, eu falei como se o início do seu "resumo" fosse nós dois.

— E teve a audácia de achar que eu entenderia?

— Tive certeza de que você se negaria a responder, mas respondeu do jeito errado.

As conclusões, as mesmas distanciadas dele por limites e inseguranças que serviam de obstáculo, percorriam um trajeto com maior velocidade e faziam com que minhas ideias ampliassem gradativamente. Pude compreender: era acerca do dia, lugar e situação em que uma proposta impedida de ser dita pôde transformar a sobrevivência cíclica com a qual eu lidava desde que minha tia-avó Grace morrera envenenada.

Nós.

Ele podia estar tentando dizer que esperava as coisas circulando e, numa outra hipótese, circundando de maneira diferente, e eu fazendo o favor de estragar o momento, presumindo quem acabaria me encontrando às sete e cinquenta da manhã quando ainda não tínhamos passado das seis. Desperdicei mais um tempo refletindo erroneamente, mas algo me trouxe de volta.

— Se me arrependo de termos se envolvido ou se me arrependo de não ter desenvolvido uma relação carnal com você? — eu disse e, por algum motivo, fiquei excitada dizendo. — De ter ignorado o fato de sentir meu corpo flutuar à deriva do tráfego, agindo contra minha consciência, e de ter me apaixonado como jurei a vento, barlavento e sotavento que nunca faria?

— O que acha sobre começar a ouvir "centenas-de-milésimos-de-repetições-de-pronomes-e-consequentemente-de-preposições" agora? — Ele me puxou para cima e estava prestes a me fazer beijá-lo.

Navegando nos meus oceanos.

— Hoje você não diz nada. Eu digo. Pode me emprestar os pronomes que eu termino — comecei, sussurrando bem perto de seu ouvido — porque eu nunca confessei que, naquele dia, meu único plano era fugir. Eu era viciada, pianista, viciada na dor... e quando eu sentia aquelas lâminas atravessarem minha pele e via o sangue... ah, muita gente pode dizer que eu nunca senti. Eu sentia e eu precisava sentir mais, aquilo doía tanto. Mas só doía porque eu merecia. Eu merecia tudo aquilo aflorando da minha pele.

"E quando eu te vi... eu senti quase a mesma coisa. Eu sentia as lâminas, eu sentia... Não, não, eu não sentia as lâminas porque eu já tinha me livrado delas. Eu tinha você. Eu tenho você. Eu sinto você e não é um sentimento negativo, pianista, isso tudo só existe pelo fato da sua mente me encantar tanto quanto o seu corpo, e eu preciso disso como precisei daqueles remédios que me mativeram sob controle. Mas a diferença é que você... você não me mantém sob controle. Eu odeio ser controlada, eu odiava aqueles remédios, eu era dopada todos os dias por substâncias que me faziam implorar pela morte. E é por isso que eu não tenho medo de ser completamente viciada... em você."

[...]

Três batidas seguidas na porta. Jurava não ter ouvido, mesmo que associasse uma coisa a outra. Eram as esperadas quase oito, eu passava os canais da televisão freneticamente sem encontrar algum filme a altura. Ainda estava elétrica e precisava de um banho.

Tirei minha blusa, pronta para me despir toda e entrar no banheiro. A porta foi escancarada por alguém que não me lembrava de estar esperando... ou, como eventualmente fazia, tinha me esquecido de lembrar bem no momento em que devia. Deixei de prestar atenção ao convite subentendido.

A face já não era oculta. As vestes negras, jogadas pelo ombro.

Anonimato... eu não previ que saberia quem era do momento em que fizesse contato visual em diante, mas nada no mundo é casualmente predito. O Universo já trabalhava nessa causa por mim.

Azul-esverdeado. Ou verde-azulado. Tanto fazia desde que as respectivas matizes se confraternizassem num semblante, me fazendo recordar o homem que antes eu chamava de pai frente a frente e que agora faço a um mundo de distância. E o dono daquela variedade de tons, quem mais tinha aqueles olhos... bem, era só pensar um pouco. Alguém que sempre teve motivos. Alguém que sempre imaginou consequências.

— Mas que surpresa! Eu não sabia que se esgueirava pelo prédio semi-nua como uma prostituta, Samantha... mas é bom saber, daí convido meus amigos e eles podem fazer o que preferirem sobre essa curiosidade.

Eu não estendi meus braços para pegar a peça de roupa jogada no sofá em momento algum. Não corei de vergonha, só tive pena e andei até o banheiro.

— Fico vestida do jeito que eu quiser no meu apartamento, Derick. E esses seus amigos merecem um chute no saco, pode se atrever a deixar eles fazerem o que preferirem — ao pronunciar a ameaça, aumentei algumas oitavas da minha sonoridade habitual. Mas ele agiu peculiarmente, esperto e desesperado. Avançou para a porta antes que fosse fechada.

Tirou um revólver do bolso da calça jeans surrada e apontou para mim.

— Ordinária a vingança, não acha? — Voltei a encará-lo logo depois, nos poucos segundos em que estivesse confiante demais sobre ter me encurralado. Pobre alma, a dele.

— Me diz... desde quando você decidiu brincar com isso, hein? — Ele sorriu, desdenhando. E, subitamente, parou de apontar a arma para mim e devolveu ao bolso, andando pelo banheiro e permanecendo de costas por instantes.

— Sabe que essa não é minha? É daquele seu namorado babaca que saiu daqui faz meia horinha. Me diz... desde quando decidiu brincar com rústicos foragidos, Sammy? O que ele faz, te acorrenta num piano e...

— Ele não é nenhum filho da puta da sua laia, então acho melhor você se calar.

— Não vou. Porque você deve saber que aquele tipo é um drogado, não deve? Que deixou a família, que foi ingrato... e deve ser exatamente por isso que se entendem tanto. Anda lendo os panfletos com a cara da... como é o nome mesmo? Que se dane, aquela virgenzinha ingênua.

Naquela altura, já tinha idealizado um nocaute. O jogo viraria se eu conseguisse pôr as mãos no bolso dele e pegar a arma.

Não me dei a chance de desviar o olhar fixo nos jeans antes que Derick percebesse.

— É isso que você quer, Sammy? Quer me matar como aquele sem teto quase fez com a mãe e você com a própria tia-avó?

Eu o daria uma lição cedo ou tarde. Eu tremia de raiva e a mesma aumentava sem cessar cada vez que ele olhava, não se preocupando em disfarçar, para o meu sutiã.

— Acha que eu acredito? Se acha que pode me induzir a pensar da forma que você ditar...

— Não posso? Não mesmo, Samantha? Você tá cega. Ou melhor... se é que pensa que alguém sóbrio ou no mínimo sensato aceitaria te comer, então deve ser burra mesmo. — Sua voz chegou mais perto. Fechei o punho com força e minha respiração descontrolou. — Aliás, será mesmo que ele pelo menos te comeu?

Derick pôs o revólver entre nós e, caso eu movimentasse o braço e pegasse, poderia acabar com ele em menos de...

— Será mesmo que tem coragem, hein? Como teve o seu amante homicida de matar as pessoas mais próximas de si em troca de fumar uma coisinha aqui ou ali, já parou pra pensar a fundo?

Eu segurei a arma e apontei na direção dele.

— Vai, faça, já era de se esperar. Me mata, Sam. Já demorou demais, porque você é uma psicopata, não é? — cuspiu as palavras na ressonância mais grosseira e suja possível. — E vai passar o resto da vida na cadeia junto com o criminoso do seu amante.

Pressionei o gatilho levemente, a raiva domou meu corpo da mesma forma que domaria se estivesse assistindo a chamas e, visto desprevenido, o fogo consumisse o apartamento. Mas foi aí que decidi unir ponta a ponta: era o que ele queria. Derick jamais mereceria ir dessa para melhor. Ele era quem deveria sofrer desde o princípio dos princípios, e não eu.

— Você já era — finalizei. Sorriu sarcástico, achando esboçar o último sorriso de sua vida. Não foi. Eu consegui deixá-lo inconsciente rápido demais para que o idiota intervisse, mas não morto, e tive receio de ligar para a polícia. Não o fiz. Vesti a regata. Achei que o melhor seria encontrar Freddie e entregá-lo o revólver, além de exigir dele uma explicação convincente sobre o porquê de ainda andar para todos os lados com aquilo.

Ou simplesmente tirar a prova de que toda aquela acusação de Derick não era ensaiada. Sem sombra de dúvida, tomei uma decisão inevitável: fui ao cemitério.

Fui ao cômodo onde Freddie passava as noites, ignorando o túmulo de meus pais quase como se não os reparasse. E não havia ninguém. Não havia nada além do piano prateado exposto como se o pianista tivesse acabado de tocá-lo, e um último panfleto em cima do instrumento.

"Tudo que você sempre quis saber esteve aqui... enterrado e incapaz de significar alguma coisa."

Foi quando vi correspondências revelarem-se embaixo do piano, pedindo para que eu me ajoelhasse e as pegasse para correr meus olhos pelos símbolos e letras descritos ali. E também pude enxergar alguns cigarros recém-enrolados espalharem-se, provavelmente escondidos junto com as cartas. Dentre todos os outros túmulos, aquele era o maior e mais espaçoso, com a maior capacidade também. Mesmo que não fosse profundo como habitualmente, indicava o fim de alguma coisa que, com quase toda a convicção, não voltaria.

Peguei o conjunto de papéis e fitei as rachaduras no teto, que deixavam a claridade desorientada entrar. A luz provinha do céu praticamente descolorido, lembrando um tom escuro de âmbar. A lâmpada pendurada não funcionava, eu não sabia onde ou como ligá-la. Decidi sair do cômodo e ler ao ar livre, por fim.

A primeira das folhas, no meio das inúmeras cartas, retratava um único poema que não recebia nome algum.

No meu Universo, existem aqueles que vivem para contemplar

e que acordam todos os dias como se pudessem ler as próprias almas,

procurando no espelho a mensagem convertida

no reflexo do presente.

No meu Universo, existem aqueles que vivem vidrados na morte

e pensando, inutilmente, que nada mais acontece

senão a dúvida incontestável.

No meu Universo, existem aqueles que vivem para o pessimismo,

que escolhem desvanecer na metade do caminho

a se arriscar num bombardeio relâmpago,

e são justamente esses os que acabam mortos, estirados nos destroços

antes mesmo de serem atingidos por bombas.

No meu Universo, existem aqueles que vivem para a música

e que vivem para trazer a memória dos concertos já perdidos

e que tocam para concluir a metáfora antes das estrofes alternarem

e que tropeçam quando percebem que alguma melodia se perdeu na letra

e que caem quando percebem que alguma letra se perdeu na melodia.

Porque, no meu Universo, esses que vivem para a música

fazem dela algo só deles.

Mas eu...

eu não viveria para a música

quando viver dela é mais do que apenas existir,

quando ela é por quem faço o que por outra jamais teria o prazer,

quando ela é quem posso

chamar de lar.

Quanto às cartas, não estavam endereçadas. Mas eu pude ler, numa delas, o sobrenome da mulher. O mesmo do pianista. Se sua mãe tinha morrido, qual a chance de mandar cartas? A data estava ali, impressa. Eu me senti intensamente enganada, algo que analogias não simplificariam.

Pensei, refleti. Não cheguei a nenhum outro sentimento que ultrapassasse a fúria. Em que condições se auto-nomearia otário... nada mais cômico! E bem quando eu tinha sido durante um tempo infinito. E ainda seria caso um bandido infeliz (e, infelizmente, classificado como meu consanguíneo) não viesse me obrigar a dar satisfações sobre todas as mentiras acobertadas pelo meu... namorado? Sentia não estar naturalmente predestinada a dividir minha sobrevivência antes dos cinquenta, isso se conseguisse durar até lá. Nunca quis envelhecer, sempre quis desmanchar como papel. Sozinha. E era daí que vinha a metáfora dos barquinhos: queria ser destruída. Acertei em cheio sem premeditar, porque o pianista jamais iria se voluntariar a ser um dos candidatos a cumprir esse feito por mim. Onda após onda, gradativamente, aumentando oitavas de vez em vez, passo sobre passo, permanecia me destruindo sem piedade alguma, roubando minhas horas e meu tempo, fazendo o desejo consumir e moldar meu pensamento. Porque não pensei que fosse tão doloroso andar pelo mundo convivendo com pessoas, me decepcionei ao tentar enfiar agulhas em nuvens. Dali em diante, não havia pelo que correr atrás. Ficaria parada defronte duas lápides amigáveis, convidativas até o entardecer, e devolveria seus cigarros enrolados, os que ele jamais acenderia perto de mim, os que ele jamais ao menos esclareceria para mim. E as cartas... só não as jogava fora porque toda a confusão e mágoa que eu persistia em nutrir não valia mais do que o afeto sentido por um fumante. Ou, talvez, num talvez bem inválido e longe, a única opção que ele tinha era o arrependimento do qual me persuadia a ter. E, num talvez ainda mais recheado de longevidade, e não de distância, minha descoberta não soasse bem para ambas as partes.

Conjeturar causava a impressão mais equivocada para alguém desfrutando das águas inacabáveis e fosforescentes, no auge da percepção. Então, nadei pelo meio e caminhei pela orla dos meus oceanos. Abrir um espaço pequeno na mente entre a admiração, o desespero e angústia, reluzindo e irradiando brilhante como a sensação maravilhada de acompanhar a espuma alva borbulhar, transbordar e dissipar como faria a névoa no céu, é praticamente uma tarefa digna de ser exibida caso concluída. Alguém como eu, alguém tão perdido, não pediria que erguessem um mastro celestial em comemoração.

A aurora já tinha ido, sem me esperar. E, no lugar de todas as cores, eu via um céu obscuro e carregado. Caminhar pela orla nunca se aproximaria de pintar o céu friamente. A magnitude do problema acentuava. E o único motivo era entender tudo que um mero pianista podia fazer comigo.

Naquela manhã-quase-tarde, eu não pensava assim. Não juntava metáforas marinhas enquanto estudava a paisagem diurna, as pessoas e seus falsos estereótipos, sabe-se lá quais. Não surtiam efeito. O tudo do qual eu precisava, depois de atrair uma fumaça tóxica no meu entorno, era um bom diálogo de mão-única. Falando com o céu chuvoso, tenebroso.

— TÁ LEGAL, UNIVERSO, LARGA DE SER SACANA! VAI SE FODER, UNIVERSO, VOCÊ ME TRAIU, UNIVERSO... — Só não acumulava interrogações e exclamações porque bem ali, no ponto onde me encontrava, não discernia chuva de seres humanos. As gotas pingavam lentamente e, no meio das plantas costumeiras, ao longe, postava-se de pé um ser vivo cheio de histórias. Uma árvore, a copa larga, no meio de tudo, no meio do nada. Fui até ela, porque me protegia da chuva. Pus as mãos nas costelas e alonguei meus braços e pernas. Sentei ali. Ora relampejava, ora nenhuma luz riscava o horizonte. Nada tão pequeno para evitar um desvio ocasional. Vi o nevoeiro espumado ir dissipando-se num mar acima da minha cabeça, a única, curiosa e transbordante fosforescência tornava o obscuro um fenômeno.

E eu pensei... no quanto ele era bonito.


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Notas finais do capítulo

Fosforescência, pra quem não sabe, é um fenômeno de luz bem legal, recentemente eu li um livro com o termo e nada melhor do que imaginar num contexto.

Espero que tenham gostado de ler como eu adorei escrever.



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