Fire & Desires escrita por Pear Phone


Capítulo 22
Heavenly


Notas iniciais do capítulo

Vocês vão entender logo adiante por que adiantei o tempo nesse capítulo, antes de começar a narrar segundo a ordem cronológica dos fatos... mas antes quero saber o que acham de eu ter aproveitado uma ideia que muitos me deram desde que eu comecei a escrever a fanfic. Estou postando por vocês.
Podem dizer o que quiserem lá no espaço de comentar, sem censura.
Caso alguma coisa esteja errada e eu acabe não vendo depois, me avisem e eu conserto.

Beijos (emoji coração que não daria pra colocar aqui).



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Ele me abraçou e em seu olhar não havia um único vestígio, por menor que fosse, de desejo. Pelo menos, não até ali. Quando adentramos o vão da porta do que eu ainda ousava considerar a casa dele, apoiei os braços no piano prateado, pegando o impulso necessário para que, em seguida, estivesse sentada bem ali em cima. Óbvio que eu fiquei esperando o pianista intervir, fazendo movimentos com as pernas e mordendo os lábios. Eu estava tentando provocá-lo, e queria ter sucesso nesse meu objetivo. Quanto antes ele cedesse, melhor.

"Mas o quê... Pelos céus... O que você pensa que está fazendo, Samantha?"

Eu ouvia cada palavra, satisfeita por ter sido notada. Inclusive quando teve a audácia de me chamar de Samantha. Eu não gostava de ser chamada assim, mas quando estava bêbada não me importava tanto. Não quando ele fazia isso, pelo menos. E, mesmo se não estivesse bêbada, não retrucaria. Estava ocupada o admirando, queria fazer amor com ele. Aquilo seria notório para qualquer indivíduo, já que, por algum motivo, ele despertava emoções que eu nunca havia experimentado só por existir. Respirar. E me encarar, aparentando um certo incômodo. Sei que estava nervoso por eu ter desrespeitado um de seus limites: nunca tocar no piano. Nunca sequer encostar no piano, exceto em suas teclas, talvez quando ele permitisse.

E, claro, nunca fazer o piano de assento, não importa em quais condições.

Fechei meus olhos e jurei poder ver o último momento antes de meus cílios deixarem de atrapalhar. Era incrivelmente caloroso o jeito que ele me encarava, de cima a baixo, como se estivesse obsessivamente preocupado em observar e emoldurar cada parte do meu corpo. E então seu olhar passou por uma espécie de transformação, foi chegando mais perto sem perceber. Se era realmente um jogo, eu entrei naquele jogo. Sabia que ganharia.

Poderia me encarar daquele jeito por horas, poderia desafiar o quanto quisesse. A Samantha dele não ia mover um mísero dedo daquele piano caso ele mesmo não se encarregasse disso, caso ele mesmo não tomasse uma atitude a respeito daquela tal desobediência...

Cruzei minhas pernas, esperando. Olhei dentro de seus olhos castanhos, que iam ficando mais negros conforme eu tentava provocar seus sentidos. Tirei a jaqueta que, alguns minutos atrás, ele tinha me ajudado a vestir, deixando grande parte da minha pele à mostra. Não me importava com meus próprios trajes: em vez disso, sentia um formigamento, como se eles fossem exatamente o que estava atrapalhando. E o figurino excelente, sempre bem arrumado dele... eu queria que todas aquelas peças de roupa se espalhassem para fora do caminho, meio que jogadas por outra parte daquele instrumento de prata. À luz do luar, era possível enxergar as sombras e analisar todo o contorno de sua silhueta. Ao invés de retribuir aquelas minhas provocações contínuas, só arqueou as sobrancelhas de uma forma sugestiva, porque, desde tempos mais remotos, vinha sabendo que aquele era um dos segredos para que minha sanidade dissesse adeus e seguisse, cruzando caminhos e ultrapassando barreiras, num ritmo incansável que fazia meu peito descer e subir. Quando a sensatez já estivesse longe do meu corpo, eu poderia concluir: nunca o quis tanto como agora. Mas eu não disse. Sempre estive carregada de certeza sobre o silêncio ser a melhor forma de desenvolver um diálogo... um diálogo... infinito.

Tudo que percebi, nos minutos seguintes, foi que a vida podia ser resumida num eterno diálogo, nem sempre de mão única. Ele me erguia, não de um jeito muito calmo ou desesperado, e sim numa intensidade plausível. Eu poderia ceder e ficar de pé, postada bem à frente do espelho quebrado à esquerda de nós dois, com os cacos de vidro espalhados por aquela extremidade do cômodo. Mas decidi me recusar a estender os pés ou coisa parecida, posicionando minhas pernas ao redor do pianista. E ele segurou meus quadris com firmeza antes que inclinasse minha cabeça para fazer nossas bocas se encontrarem. Ele amassava meus lábios sem que houvesse demonstração de sutileza, deixando de ser tão breve. Depois, como de costume, fez que deslizassem furiosos pelos arredores do meu pescoço. E não parou por ali. Minhas mãos passeavam de sua nuca até seus ombros, e joguei minha cabeça para trás. Meus olhos, recentemente fechados, abriram por alguns instantes e contemplei o espelho rachado, que refletia nossa imagem e as sombras em volta de nós — parte delas era provocada por um tipo de lâmpada de luz fraca que pendia do teto. Eu estava prestes a explodir por vivenciar e saborear tantas sensações no que correspondia, praticamente, a uma fração de segundos: o tempo lá fora realmente não interessava naquela ocasião. Mesmo que estivéssemos sob milhares de camadas, sabia que conseguiria ser levada às estrelas bem ali dentro. Se ele pensava que estava disposto a desconsiderar suas próprias condições e me erguer novamente em direção àquela superfície prateada, eu não fazia ideia, mas tinha toda a certeza de que seus planos, como seu olhar, começavam a passar por transformações. As investidas que ele fazia jamais fariam surtir algum efeito desastroso... faziam com que eu lembrasse de quando estávamos a ponto de começar o que já estava começado ali, quando nos beijamos naquelas grades no entorno do cemitério. Eu gostava de ser explorada, afirmo com toda a convicção que passou a existir no meu interior a partir daquela noite, daquele cenário... e do que veio além da brisa vivíssima sobre nossas almas.

Nossas almas, que permaneciam acordadas e bem mais iluminadas do que qualquer um dos adormecidos para sempre.

Minhas pernas ainda roçavam nele, até que perdeu a firmeza com que me segurava pelos quadris. E aqueles meus pés descalços alcançaram o chão outra vez. Percebi que estava de pé com dificuldade, vestindo, aparentemente, uma calça jeans desabotoada e um sutiã, enquanto ele me encarava. Ainda estava vestido, embora com a camisa toda amassada.

Uma visão torturante.

Seria difícil não perceber o quanto eu estava ofegante, e nem tínhamos chegado lá. E nem sabia se, por um acaso, chegaríamos. Mas ele se aproximou outra vez, jogou algumas mechas enroladas do meu cabelo para trás, foi até meu ouvido e sussurrou de um jeito que me fez querer puxá-lo para onde quer que fosse e dar continuidade àquilo que eu mesma tinha provocado, com seus braços envolvendo minha cintura para que eu não me esquivasse.

"Você vai ser minha hoje, Puckett. É o que você quer, não é?"

Puckett soava inesperado para mim. Qual é, primeiro Samantha e depois Puckett? Por que ele sabia fazer isso tão bem?

Já sou sua.

Eu quase falei. Mas não podia, nenhum som seria emitido da minha garganta para fora, nenhum ruído. Quando ficou de costas para mim, senti meus sentidos se despedirem.

Fechei os olhos e pude retomar a sensação de estar sendo erguida, abrindo-os momentaneamente e sentindo um hálito viciantemente quente no meu pescoço. Fitei seu meio sorriso tão insinuante, e o retribuí.

Se ele me perguntou se eu realmente queria ser dele, era porque queria que eu fosse dele... e bem naquele piano prateado, onde tinha tocado Moonlight Sonata, For Elise, Ode to Joy e tantas outras para mim. Quantas vezes já não tinha passado a noite tocando aquele instrumento gigantesco e tão bonito? Só de imaginar, ouvia as notas fluírem entre nós. Abaixo de nós.

Quando acariciou a parte da minha pele que estava à mostra, esforçando-se para não ser brusco ou apressado demais, eu nem me lembrava das cicatrizes e outras marcas que tinha, mas ele pareceu surpreso. Talvez ainda não fizesse a mínima ideia do meu nível de mutilação antes, quando tinha perdido meus pais. Quaisquer que fossem as incertezas, acabariam ali. Depois do incêndio, eu era um ser renovado, de um lado mais sombrio e obscuro. Sabia o que ele estava pensando enquanto tocava cada um daqueles machucados: que iria fazê-los sarar, como se pudesse me remendar de alguma forma. Quando seus lábios faziam um movimento de vaivém por aquelas regiões, eu deixava de sentir a dor habitual, e, metaforicamente, deixava de apreciar a mesma aurora todas as manhãs. Era magicamente real, e eu nem sequer acreditava em mágica, mas acreditava na realidade que ele transmitia apesar das evidências de uma gravidade um tanto sobrenatural.

Senti quando ele estava pronto para anestesiar todos aquelas dores imaginadas e, consequentemente, sentidas.

No meio daquilo tudo, desabotoei sua camisa um pouco devagar demais por não saber lidar com aquela quantidade absurda de botões por todos os cantos, e então ele arqueou as sobrancelhas, num ar de dúvida. Instintivamente, eu passei a fazer tudo com mais desespero, como se estivéssemos numa situação de risco. Depois que terminei e fiquei murmurando para mim mesma o quanto o adorava de todas as formas possíveis, ainda mais quase completamente nu, ele me puxou para que eu o beijasse de novo. Passei minhas unhas em suas costas e o trouxe para mais perto, podendo experimentar um pouco mais da sensação de estar o excitando tanto quanto ele me excitava. Pensar nisso me deixava descontroladamente extasiada, também.

As paredes, as sombras e todo o resto lá dentro tinha uma cor, por mais que apagada. Nós tínhamos cor. As rosas que o pianista acabara de colher exalavam um aroma pouco perfumado, mas elas também tinham cor. Até mesmo o teto, e principalmente o céu, que era o cenário do Universo... Mas eu ainda era capaz de desconsiderá-las quando ele estava ali em cima de mim, me fazendo sentir o que eu queria bem antes de ter entrado naquele beco meio apertado e sujo, contrastando entre as calçadas movimentadas, para sair bebendo, de dose em dose, mais do que quase duas ou três de mim podiam aguentar. A partir dali, tudo era preto e branco. Era preto e branco, era uma mistura de ritmos... Porque uma quantidade infinita de melodias soava no meu interior, e eram mesmo infinitas. Nunca acabavam, inaudíveis e independentes. Elas tinham cor e eu era incapaz de enxergar. Elas eram o meu mundo naquela hora, por isso era tudo na mesma cor que elas.

Percebi que era, de novo, o momento de agir como se estivéssemos em meio a uma situação arriscada, quer dizer, como se estivéssemos sendo constantemente observados. E era tudo preto e branco quando a cor surgiu. A cor surgiu por baixo daquela camuflagem que eu já tinha formado havia tempos, com tudo milimetricamente planejado para que seguisse no mesmo ritmo.

Mas os ritmos não seguiam uma ordem cronológica.

Abaixou as alças do meu sutiã e beijou meus ombros. Cada segundo era intensificado por uma lentidão que fazia meu corpo reagir de várias formas, em vários sentidos. Quando percorreu o restante do caminho até meus seios, sem deixar-se abalar pelo fecho, não pude conter um gemido baixo que estava prestes a escapar. Ele pareceu ter gostado de toda aquela minha ansiedade, prosseguindo e alternando as carícias, seguidas de suspiros abafados e entrecortados.

Ele me despiu completamente, e eu acompanhei seus movimentos.

Pensar que o meu coração, que anos atrás era duro como pedra, tinha amolecido e dissolvido completamente para ele... era como ter a certeza de que eu nunca estaria no controle mesmo, que nunca faria o incêndio parar, que nunca conseguiria salvar a vida daquele jovem casal emoldurado nos retratos enfileirados naquela cômoda de madeira situada na casa de uma velha distribuidora de bolinhos, e que só eles teriam a coragem suficiente para me tirar dali, não importa em qual geração. Seria assim se o tempo parasse.

E se voltasse, também seria do mesmo jeito. O porquê disso tudo era mais simples do que qualquer outra coisa: o que foi não volta, e imaginar como seria caso já não tivesse ido não faz nenhum sentido, o que torna a classificação da recuperação de algo passado uma questão inteiramente pessoal.

E o incêndio nunca ia parar, porque... Porque eu não queria que ele parasse. Queria que continuasse, que não tivessem vendido a casa ou deixado de vender, que eu tivesse passado por tudo aquilo e ainda me orgulhado de ter vencido minha tia-avó que mascarava a própria lucidez propositalmente. E que, anos depois, tivesse uma companheira de quarto, e que ela passasse por altos e baixos sem estar no direito de me contar, ficando de boca aberta só quando eu fosse visitar meus pais mortos num cemitério abandonado lá no fundo da cidade e acabasse dando de cara com a única coisa que eu não me arrependia de ter sofrido, de fato.

Com o pianista, seus olhos castanhos misteriosos e o mais importante de todos: seu piano prateado.

Na primeira vez em que bati o olho nos dois, eu sabia que jamais esqueceria, e até repeti aquilo para mim mesma de noite... Durante toda a noite, na verdade. Se fazia um tempinho que eu não conseguia dormir, era por causa disso. E estava repetindo de novo ali, em cima do piano, quando estávamos bastante vivos um no outro.

E eu sabia que conseguiria ser levada às estrelas bem ali dentro.

Abaixo de nós, tocaria uma melodia celestial.

Sim, eu perdoo você, Freddie. Perdoo se você for capaz de tentar me perdoar.

[...]

Um mês e duas semanas bastante longas antes de passarmos aquela noite juntos, eu estava pensando em como faria para contar que uma velha tinha dito bruscamente que For Elise não era para mim depois de me obrigar a beber suas lágrimas e de me aprisionar por uma grande parte do dia em sua casa, deixando que eu fosse embora apenas ao entardecer, quando acordei e ouvi barbaridades. E que ela, por acaso, sabia de tudo da minha vida. E das coisas mais importantes na minha vida, também.

Mas eu estava enfurnada, terça-feira pela manhã ou coisa assim, no meio de uma aula de química... ou biologia, ou qualquer outra coisa impossível de se tolerar numa terça-feira. Pedi para ir ao banheiro e fechei o livro. Não voltaria tão cedo à sala, só quando tivesse vontade de buscar a mochila.

Desde muito tempo que eu não ia assistir a uma aulinha ou duas e já queria matar todas. Não era de se esperar o contrário, então sentei numa das mesas do refeitório completamente vazio, senão pelos funcionários que perambulavam como zumbis dos corredores onde ficavam os armários até o pátio, fazendo voltas e observando os arredores sem mostrar muita atenção. Eu não podia julgá-los por isso, já que toda vez que meu corpo atravessava o portão em direção às escadas, tudo na minha cabeça acabava parando em qualquer coisa bem distante dali. Qualquer coisa.

Não me surpreenderia se Freddie aparecesse subitamente bem no momento em que eu estivesse pegando meu celular e digitando o número dele. Eu, possivelmente, não seria atendida, porque eu era avisada constantemente que ele sempre saía para tocar piano pela cidade nessas horas, quando não estava comigo. E, segundo ele, era assim mesmo que conseguia pagar as roupas tão elaboradas que vestia. Ainda que não parasse quieto — tudo que ouvi sobre todos os deslocamentos pelos quais tinha passado davam num resultado numeroso até ali —, ninguém poderia considerar a possibilidade de ele ser um mendigo. Se ele era, então eu podia afirmar com uma certeza universal que era o mais lindo deles.

Não que eu conhecesse algum mendigo lindo além dele.

E, sim, eu queria que acontecesse assim, e que num passe de mágicas também pudesse perguntar se ele achava o comportamento da tal colecionadora de panfletos suspeito ou questionável. Mas algo de muito estranho me fez parar de pensar nele.

Algo de estranho. Relativamente estranho.

Uma pessoa, com um capuz preto, virada para meu lado oposto. Não pensei em nada de fantasmagórico ou aterrorizante, ou em um monte de órgãos ensanguentados. Nenhum ponto daquela vestimenta me trazia fantasias assustadoras, mas com certeza me faziam recordar um momento.

Quando estávamos beijando nas grades do cemitério, e havia alguém nos observando. E, quando estávamos deitados no gramado, as árvores e arbustos bem lá no fundo da vegetação que contornava os muros remexendo... E, de repente, como se tudo apontasse uma coincidência desagradável, aquela figura se escondia pelas paredes como se fosse o mesmo alguém; como se, de maneira nenhuma, pudesse ser descoberta.

Que jeito tinha dado para entrar na Ridgeway, afinal? E será mesmo que não era algum aluno, pago para fazer o que fazia, que pegava uma veste meio sinistra e colocava por cima de roupas comuns?

Eu e o pianista estávamos, sim, sendo frequentemente perseguidos e, de alguma forma, espionados. Desde aquela vez nas grades até a vez no gramado. Não podia ser um engano.

Porque as fotos familiares da casa abandonada também não precisavam estar emolduradas pelas paredes de um desconhecido casualmente, e eu estava decidida a descobrir quem tinha nos seguido até lá, à luz da aurora.


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